Desde o dia 7 de outubro, os bombardeios israelenses matam de forma incessante e indiscriminada mulheres, crianças, civis palestinos, funcionários da ONU, e jornalistas de diferentes nacionalidades. Com a nova etapa da guerra, a expressão “terrorismo de Estado” ressurgiu no debate público. Agora, para classificar a ofensiva das Forças de Defesa de Israel. Mas há um conceito de terrorismo de Estado? Quais são os caminhos possíveis para compreendê-lo? Por que o caso de Israel pode ser qualificado como terrorismo de Estado?
Nas diferentes definições e acepções sobre o conceito de terrorismo político apresentadas no Dicionário de Política, de Bobbio, Matteucci e Pasquino (1998), o conflito entre israelenses e palestinos é citado como exemplo. Autor do verbete, o cientista político italiano Luigi Bonanate (1998) fornece alguns parâmetros, ainda que iniciais e difusos, para definir terrorismo de Estado. Segundo Bonanate (1998), as ações militares praticadas pelo Estado de Israel, correntemente definidas como “ações terroristas”. como represália ao que se considera “terrorismo” palestino, devem ser analisadas à luz do direito internacional bélico.
Bonanate (1998, p. 1.244) argumenta que “o aspecto terrorista deste tipo de ação [semelhante à praticada por Israel] deve ser buscado na forma indiscriminada dos resultados”. Em outras palavras, para definir se o que Israel pratica é terrorismo de Estado, deve-se avaliar as consequências das operações militares contra os palestinos.
O autor estabelece, então, uma analogia entre as ações corriqueiras e tradicionais do Estado de Israel contra o “terrorismo palestino”. Cita, como exemplo, o “bombardeamento ‘terrorista’ durante uma guerra regular (pensemos no bombardeamento de Dresden em fevereiro de 1945 e nos bombardeamentos dos Estados Unidos no norte do Vietnã)” (BONANATE, 1998, p. 1.244).
Tomando como referência essa noção introdutória de terrorismo de Estado oferecida por Bonanate (1998), analisando a atuação histórica de Israel, e particularmente as ações militares praticadas desde o dia 7 de outubro de 2023, é possível afirmar que são indiscriminados os resultados da resposta israelense à ação do Hamas?
De acordo com o Ministério da Saúde em Gaza, até 19 de fevereiro, pelo menos 29 mil palestinianos foram mortos na Faixa de Gaza, na atual incursão. Cerca de 70% dos mortos são mulheres e crianças. Outros 69 mil palestinos teriam sido feridos. Todos os dados são da Agência de Assistência da ONU para Refugiados da Palestina (UNRWA, 2024).
Desde o início da operação israelense, 1,7 milhão de pessoas, mais de 75 por cento da população, realizaram deslocamentos forçados no interior da Faixa de Gaza (UNRWA, 2024). E 158 funcionários da Agência foram mortos, até 19 de fevereiro.
Retomando a discussão conceitual, Bonanate (1998, p. 1.244) afirma que, em situações como os ataques de Israel contra os palestinos, e de bombardeios indiscriminados em guerras regulares entre estados, “o direito internacional bélico propõe como critério para distinguir entre “‘lícito’ e ‘ilícito’ (terrorista) o objetivo militar ou civil da própria ação”. No entanto, pondera que, por ser um critério “de difícil aplicação”, que “não encontra paralelo na praxe dos Estados”, “parece mais correto fazer referência ao terror como instrumento a que recorre um Governo regular, na ocasião no poder” (BONANATE, 1998, p. 1.244).
Ou seja, a compreensão do conceito de terrorismo de Estado invocado recorrentemente, e no contexto atual, deve ser buscada nos atos internos de um determinado governo, em contexto histórico definido. O que nos leva à ideia original de terror: “instrumento de emergência a que um Governo recorre para manter-se no poder” (BONANATE, 1998, p. 1.244). O exemplo clássico é o período do “Terror”, durante a Revolução Francesa. Bonanate (1998) nos diz, portanto, que o terrorismo surgiu originalmente como uma ação de Estado, ainda que ao longo do tempo a prática e o conceito tenham se afastado desse pressuposto.
Mais recentemente, autores têm refletido sobre esse instrumento a que determinados governos recorrem, em situações históricas específicas, para classificá-lo como terrorismo de Estado. Bauer (2005) denomina “regimes de terrorismo de Estado” aqueles implantados pelas ditaduras cívico-militares, após golpes de Estado, que atingiram os países do Cone Sul, durante as décadas de 1960 e 1980.
Esse terrorismo de Estado seria resultado de ditaduras caracterizadas pela militarização, atividade repressiva e controle coercitivo pelo Estado, baseadas em doutrinas de segurança nacional, que buscaram o aniquilamento das respectivas oposições políticas (BAUER, 2005). Nesses regimes, a perseguição sistemática, o sequestro, a tortura, o desaparecimento e a morte de oponentes passaram a ser regra. “A evidência da repressão empregada pelo estado terrorista criou essa ‘cultura do medo’, na qual a participação política ou a simples contestação poderia ser equiparada ao risco real de sofrer essas práticas” (BAUER, 2005).
Usando o caso de Israel como paradigma, Miniuci (2021) questiona se é possível considerar duas formas distintas de terrorismo os homens/mulheres-bomba palestinos e a ações militares das Forças de Defesa de Israel (FDI). Na avaliação dele, “apenas se diferenciam pela figura dos perpetradores” (MINIUCI, 2021, p. 173). Para Minuci (2021), o que distinguiria atos idênticos de violência, com vítimas civis, promovidos pelo Estado ou por grupos terroristas, não seriam os atos em si, mas a legalidade. Cumpridas algumas condições, atos praticados pelo Estado são considerados legais pelo direito da guerra. O terrorismo, ao contrário, sempre será considerado ilegal.
Todavia, uma das condições que permite falar em terrorismo de Estado é justamente o uso ilegal da força. “Jamais encontraria sustentação legal, nem mesmo no direito da guerra, um atentado cujos perpetradores, matando ou ferindo pessoas indiscriminadamente, pretendessem atingir mediatamente, como medida de contraterrorismo, uma organização proscrita” (MINIUCI, 2021, p. 185).
A referência neste trecho é ao ataque cometido pelo governo francês contra um local sagrado dos argelinos, durante a guerra de independência da Argélia. Mas se encaixa perfeitamente às ações militares de Israel, que atingem indiscriminadamente a população civil palestina da Faixa de Gaza, sob a alegação de aniquilar o Hamas. Nesses casos, o Estado foi e é o perpetrador do uso ilegal da força.
Mas todo conceito é concomitantemente uma construção linguística e histórica. A partir da sua formulação em termos linguísticos, é possível refletir sobre a realidade histórica (KOSELLECK, 1992). Portanto, a teoria dos conceitos é válida para refletir sobre o conceito de terrorismo de Estado.
Novas realidades históricas e novos conteúdos podem produzir novos conceitos, mantendo-se a expressão adotada anteriormente (KOSELLECK, 1992). Por exemplo, as recentes ações militares israelenses contra Gaza poderiam suscitar um paradigma inédito para refletir, reforçar, ampliar e até redefinir o(s) conceito(s) corrente(s) de terrorismo de Estado, sem renunciar à expressão linguística já utilizada.
Se, contudo, o conceito não existisse, a situação histórica e a realidade concreta permitiriam o seu engendramento. Foi assim com o conceito de genocídio. Embora largamente praticado em diferentes momentos e lugares ao longo da história, só foi formulado do ponto de vista linguístico e passou a existir como conceito a partir de 1944 (Holocaust Encyclopedia).
Os conceitos se modificam conforme o tempo, por isso mesmo são históricos, únicos, e associados à época de uso, a exemplo da ideia de cidadania (KOSELLECK, 1992). Zizek (2023) recorda que, “nos anos da luta judaica contra os militares britânicos na Palestina, o próprio termo ‘terrorista’ tinha uma conotação positiva”. A história dos conceitos demonstra que existe um eterno embate entre os fatos históricos e a sua tradução em termos linguístico-conceituais.
Ainda assim ou por conta desse pressuposto, há os que não reconhecem o conceito de terrorismo de Estado e aqueles que se negam a empregá-lo especificamente no caso de Israel. Lidar com realidades, situações e eventos inéditos, submetidos “à mesma linguagem, ao mesmo conjunto ortodoxo de conceitos e categorias” é um dos desafios impostos à história dos conceitos (KOSELLECK, 1992, p. 145). Seria esse o impasse no caso de Israel e a dificuldade de enquadrá-lo como terrorismo de Estado?
Koselleck (1992) recorda que não havia uma maneira de classificar o fascismo, na linguagem conceitual corrente, quando o fenômeno surgiu. Nos anos recentes, o aparecimento de líderes políticos, partidos e movimentos que se assemelham ao “fascismo histórico” tem imposto desafio semelhante (TRAVERSO, 2019). Ou seja, como classificá-los? Fascismo, neofascismo, pós-fascismo, extrema direita, nova direita? Traverso (2019) opta pelo pós-fascismo, sob o argumento de que esse conceito permite traduzir o fenômeno em termos cronológicos, com as respectivas continuidades e rupturas diante do “fascismo histórico”.
No caso específico de Israel, a princípio e em princípio não parece fazer sentido a adoção de outro conceito senão o de terrorismo de Estado. Embora os governos, governantes, as armas, as tecnologias de guerra sejam outras, sejam únicas e se modifiquem constantemente desde a criação do Estado de Israel, em 1948, há muito mais continuidades que rupturas na guerra contra a Palestina. Trata-se, na realidade, de um fenômeno que deve ser interpretado na ótica da longa duração. Não há mudanças significativas em décadas de ações militares israelenses contra a Faixa de Gaza e a Cisjordânia que justifiquem empregar conceito distinto ou abandonar o que já se utiliza, que sequer goza de consenso.
O terrorismo de Estado já existe como formulação linguística e contexto histórico, conforme propõe Koselleck (1992). No entanto, a conjuntura de consequências indiscriminadas da ofensiva israelense tem gerado novos aspectos, como a atenção internacional, e a intensidade da condenação feita por países, instituições e pessoas. Além disso, efeitos paradoxais, como o recrudescimento de manifestações antissemitas em diferentes partes do planeta, dirigidas a quem alega estar lutando contra o antissemitismo do Hamas. Antissemitismo que, por sua vez, tem sido instrumentalizado pelo atual governo de Israel para contra-atacar os que o acusam de praticar terrorismo de Estado. Não resta dúvida de que a conjuntura é oportuna para aprofundar e aperfeiçoar o conceito de terrorismo de Estado.
Referências
BAUER, Caroline Silveira. Terrorismo de Estado e repressão política na ditadura cívico-militar de segurança nacional brasileira (1964-1988). In: XXIII Simpósio Nacional de História – História: Guerra e Paz – ANPUH, 2005, Londrina. Disponível em: https://anpuh.org.br/uploads/anais-simposios/pdf/2019-01/1548206571_7214a67b6d61f14b269a62b618314a72.pdf
https://www.corteidh.or.cr/tablas/r30012.pdf. Acesso em: 18 nov. 2023.
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco (org.). Dicionário de Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 11a ed., 1998.
BONANATE, Luigi. Terrorismo. In: BOBBIO, MATTEUCCI E PASQUINO (org.) (1998). Dicionário de Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 11a ed., 1998.
KOSELLECK, Reinhart. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 134·146. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/reh/article/view/1945/1084. Acesso em: 18 nov. 2023
MINIUCI, Geraldo. Terrorismo de Estado. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, [S. l.], v. 116, n. 2, p. 173-189, 2021. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/196155. Acesso em: 15 nov. 2023.
United States Holocaust Memorial Museum. Introduction to the Holocaust – What is Genocide? Holocaust Encyclopedia. Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/what-is-genocide. Acesso em: 22 nov. 2023.
UNRWA – Agência de Assistência da ONU para Refugiados da Palestina no Oriente Próximo. UNRWA situation report #80 on the situation in the Gaza strip and the West Bank, including east Jerusalem UNRWA, 21 de fevereiro de 2024. Disponível em: https://www.unrwa.org/resources/reports/unrwa-situation-report-80-situation-gaza-strip-and-west-bank-including-east-Jerusalem. Acesso em: 21 fev. 2024.
ZIZEK, Slavoj. Israel e Hamas: onde está a verdadeira linha divisória? Blog Boitempo, 13 out. 2023. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2023/10/13/israel-e-hamas-onde-esta-a-verdadeira-linha-divisoria/. Acesso em: 21 nov. 2023.
Créditos na imagem: UNRWA photo by Ashraf Amra
https://www.unrwa.org/newsroom/photos/war-gaza-100-days-100-photos
Ramon Lamoso de Gusmão
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