Amigos e chegados costumam rir, afirmando que a cidade paulista de Itararé possui a virtude de gestar pessoas com dons e sensibilidades atípicos. Sensibilidades para com o mundo, a sociedade, a cultura e as artes – tanto para a sua conservação, como para a sua derrocada.

A cidadezinha fica na divisa dos estados de São Paulo e Paraná, tendo sido palco de alguns eventos históricos relevantes no começo do século XX, alguns, apenas no campo das anedotas e míticas de seus populares.

Como uma prateleira de livros raros e almejando serem lidos, alguns parecem se sobressair dos demais: são cantores, poetas, pintores, escritores e, por que não, raras personagens do universo da política (a política com P maiúsculo, não a eleitoral e partidária. A este respeito, recuso qualquer comentário. Nem uma linha sequer).

Alguns destes nascidos no século passado, como veremos, se sobressaíram de tal maneira que o eco que retumbam no presente é primoroso e intenso, mesmo com as folhas do calendário tornando-se mais numerosas a cada ano. A presença de tais indivíduos parece próxima, tão próxima que parecemos senti-la. Almejamos tocá-la.

Essa presença ganha contornos mais nítidos em períodos de efeméride. O Brasil “comemora” os 60 anos de um golpe de Estado militar que fora deflagrado entre março e abril de 1964. Mais um, na sucessiva caminhada do golpismo tupiniquim, e não por isso, menos importante.

Na realidade, recuperar à contrapelo a trajetória pessoal, política e intelectual de um sujeito da região interiorana, dada ao esquecimento, acaba revelando a força da historiografia brasileira em escrutinar o seu passado autoritário e brutal, palpável e narrável não apenas em suas metrópoles, mas em rincões não explorados.

Distante do rigor acadêmico de revistas de corte científico, recuperarmos o possível dentro dos limites da parca documentação nos contornos do tempo presente, acendendo uma centelha de esperança a partir de uma narrativa leve e comprometida. “Esperança”. Palavra indigesta para os dias que correm.

 

O interiorano cosmopolita

Próximo ao Paço Municipal, em frente a atual Biblioteca Pública, levantou-se o teatro municipal da cidade junto a bela casa de Cultura – demolida há tempos para reerguer-se em momento indefinido.

Espaço dedicado aos mais diferentes espetáculos que poucas vezes aconteceram, o teatro ganhou notoriedade e zelo no período que teve início no ano de 2013, sendo interrompido no ano de 2016, instante político de ruptura que a cidade não chegou a compreender ou sustentar. Não por acaso, à época de sua inauguração, a ele foi concedido um nome: Teatro Municipal Sylvio Machado.

Aos que o desconhecem, a trajetória e memória de Sylvio Machado poderiam ser alocadas de forma cuidadosa nesta seleta prateleira de pessoas extraordinárias sobre a qual comentamos, que vez ou outra surgiram naqueles perímetros. Aquela prateleira que guardamos os nossos livros mais queridos, documentos antigos e peças de valor inestimável.

Sylvio nasceu no ano de 1918, um ano após a Revolução Russa que abalou os alicerces da sombria região dos czares, do outro lado do mundo. Revolução cuja essência iria para sempre intriga-lo.

Completou os estudos primários no então Grupo Escolar de Itararé, atualmente conhecido como Escola Tomé Teixeira. O ginásio completaria em São Paulo, no renomado Liceu Franco-Brasileiro. Alguns anos depois, e já em seu segundo ano, teve de abandonar a faculdade de Medicina que cursava na cidade de Curitiba, capital do Paraná, em razão do óbito de seu pai.

Sua vida transcorreria para sempre na mesma cidade, falecendo no dia 23 de setembro de 1983, deixando constituída uma enorme família, vasta rede de amigos e admiradores. Sylvio, contudo, deixaria também legados consideráveis para além de seus filhos, netos e bisnetos: os seus livros.

 

Os livros deste homem

Penso que uma das maneiras mais instigantes de se conhecer um sujeito do passado seja a irrequieta e poeirenta exploração daquela acomodação de sua casa: entre os sedimentos do tempo e a madeira envelhecida, é no misterioso cômodo de uma biblioteca pessoal que conhecemos alguém. São os títulos, as palavras e os rabiscos deixados, fotografias perdidas entre páginas, marcadores e passagens de viagens feitas e não feitas, detalhes mais simples e as anotações mais esdrúxulas, onde a diferença se impõe e espécie de “glória” ressurge.

Em uma de minhas últimas férias da graduação, ainda me formando o pesquisador que pretendia ser, resolvi higienizar, examinar, organizar e realocar as inúmeras obras deixadas por Sylvio Machado em sua notável biblioteca, na residência onde morou por muitos anos na região central de Itararé.

Nas dezenas de prateleiras, obras relevantes e conhecidas de públicos intelectuais diversos – algumas já carcomidas por cupins, mesmo com o cuidado de alguns familiares ao longo do tempo. Sabemos que o tempo é imperdoável e dele nada escapa. Ou não? Existiria algo que do tempo escape, se esvaia e circule sempre em sobrevida? Ideias seriam a prova do tempo?

Algumas fontes evidenciam que Sylvio tornou-se um homem notório na cidade onde viveu muito em razão de seus princípios e valores, retirados de suas obras, revistas e documentos diversos. Notório para uns e alvo para outros.

 

O homem perseguido

Nos autos da secretaria de Segurança Pública da Delegacia de Polícia de Itararé, ele apareceria no ano do golpe militar, 1964, como o “mais esclarecido e fanático” dos homens de sua comunidade. Segundo o documento do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), ele seria aquele que teria maior “influência sobre os demais”. Já o inquérito instaurado em 21 de maio daquele ano, justificava a sua “intransigência” contra a Lei de Segurança Nacional que imperava em um país marcado pela exceção.

Tirando o linguajar intrinsicamente policialesco e persecutório característico de documentações militares e digno dos autos da segunda metade do século XX, Sylvio estava elencado juntamente com um seleto grupo de habitantes de Itararé como “subversivos da ordem”.

Por uma infinidade de fontes orais, testemunhos e fotografias advindas de familiares, sabe-se que não era “fanático”, mas crítico, e “intransigente” apenas para a soldadesca arregimentada dos interiores. Indago como um sujeito do caráter como era apontado o de Sylvio pelos citadinos de Itararé, querido na comunidade em que vivia e por um grande número de pessoas, seria assim caracterizado: intransigente e subversivo da ordem. Mas o que Sylvio almejava subverter?

Em sua biblioteca, na quarta prateleira à esquerda, debaixo para cima, Sylvio guardava inúmeras peças literárias de valia única. Raridades que desnudam seu sistema de pensamento.

Entre romances de Jorge Amado, a extensa “História da Civilização”, obras de Darcy Ribeiro, revistas de Política Internacional editadas pela Paz e Terra, e ensaios acadêmico sobre as mais diferentes temporalidades, como as obras do medievalista Jacques Le Goff, além de livretos de soviéticos como N. Efímov a inúmeros autores brasileiros estudiosos do militarismo como Hélio Silva, assim como uma infinidade de textos de história brasileira sob o ponto de vista dos “vencidos”, como as de José Honório Rodrigues, carioca lembrado pelo radicalismo e seriedade de suas produções.

Escritos que esgarçavam a cruenta história nacional, dos idos coloniais até seu tempo vivido, presente que o acusava “fanático”, mas que havia instaurado a censura dos meios de comunicação, fechado as portas do Congresso Nacional, destituído ministros e um presidente, torturado centenas, atemorizado atores, cantores e compositores, colocando um cabresto na frágil trajetória democrática do país.

 

Fuga, censura e acusações

Amedrontados, Sylvio, sua esposa e alguns poucos escolhidos abririam fossa profunda no quintal de casa, no centro da cidade, sacrificando dezenas de livros acusados de “subversivos” da ordem. Enterrados e cimentados também em uma segunda fossa aberta num campo de futebol, as páginas se desintegrariam.

A residência de Sylvio e sua esposa Josephina há semanas estava sendo rondada por soldados desconfiados. Precavidos, e temendo a segurança de seus filhos e amigos próximos, ele fugiria dos olhares da polícia local – intimamente ligada a uma rede de inteligência militar que se fiara por todo o território nacional, refugiando-se em lugares distantes, de chácaras e sítios à grande São Paulo.

Pelas viagens que realizava, antes e depois da partida um tanto forçada, além dos contatos que cultivava, foi contagiado por publicações que circulavam entre intelectuais e grupos políticos dos centros urbanos, textos de difícil acesso nos interiores – as “armas” da crítica disponíveis.

No Diário Oficial do Estado de São Paulo datado de dezembro de 1965, na seção Justiça Militar, Sylvio aparece como “réu de processo de crime de subversão”. Contudo, não era ele o principal alvo constatado naquele Diário, mas seu amigo próximo, o itapevense Camilo de Mello Pimentel, há 50 quilômetros dali.

Os militares acusavam Camilo de estar envolvido na ocultação de “farta quantidade de impressos, livros, revistas e jornais de caráter esquerdista”. O Diário concluía que muitos dos livros e revistas de esquerda, principalmente o intitulado “Brasil Urgente”, seriam remetidos a Itararé, para ninguém menos que Sylvio Machado.

Ao retornar da estadia fora da cidade, em 1965, fora recebido pelos cidadãos mais chegados e outros conhecidos com brados de alegria. Consciente, se apresentou na delegacia para cumprir as formalidades burocráticas requeridas: era sabido que as denúncias perpetradas na delegacia e a sanha de perseguição que recaía contra ele (e tantos outros pelo Brasil), além de infundadas, careciam de sentido real.

 

Despeço-me do bisavô Sylvio

Sempre quando penso em Sylvio, meu bisavô, que pela infelicidade do tempo nunca cheguei a conhecer, me recordo da canção de Caetano Veloso, “Um comunista”.

Na bela e extensa letra dedicada a ninguém menos que o militante baiano Carlos Marighella, o compositor é incisivamente poético ao afirmar que em um período sombrio como aquele vivido por Sylvio, ditado pelo autoritarismo e o arbítrio, a maioria dos comunistas guardavam sonhos, paixões e utopias rumo a uma nova sociedade sem grilhões e opressões.

Meu bisavô também era um sonhador, e a certeza que tenho é que sonhava com uma cidade e país mais justos, livres e solidários.

Da escrita deste texto ao momento de suas modificações, uma década se foi. Itararé presenciou a derrubada de símbolos importantes, a descacterização de seu museu municipal – que carrega o nome de seu amigo igualmente perseguido, Camilo de Mello Pimentel –, e a ascensão de políticos liberais caricatos que avançam sem tréguas com o advento da extrema-direita neofascista.

Lá, como em muitos outros lugares, não há mais espaço para “Sylvios”, apesar de contar com um cem número de pessoas brilhantes, comprometidas e que tentam modificar o futuro, tornando-o menos insuportável para uma coletividade sem esperanças.

Um dia, bisavô, alcançaremos este horizonte que sonhou. Esteja aonde estiver, acredite nessas sinceras palavras.

 

 

 


NOTAS

Este ensaio foi escrito no período que antecede o interregno de brutalidades que viveríamos com o advento do neofascismo brasileiro e uma pandemia de proporções apocalípticas. Ao relê-lo, notei que a escrita, apesar de terna e esperançosa, carecia de modificações gramaticais, por certo, além de uma revisão drástica de categorias outrora utilizadas para apreender um personagem histórico tão próximo e, ao mesmo tempo, tão distante. Passada uma década do texto original, a partir de meus descaminhos e encruzilhadas, formação e desenvolvimento acadêmico, político e pessoal, me transformei noutro autor – mais realista, objetivo e menos sonhador. A história a baixo segue os vestígios de um bisavô que nunca conheci, leitor voraz, comunista perseguido, pai dedicado e sujeito espirituoso, dizem as boas línguas e fontes documentais. Na efeméride dos 60 anos do golpe militar, tento então, “recuperá-lo”.

 

 

 


Créditos na imagem: Fotografia em papel pertencente ao arquivo pessoal do autor: Sylvio Machado (data incerta).