A educação não pode temer o debate, “sob pena de ser uma farsa”, dizia Paulo Freire em Educação como prática da liberdade. Lançado em 1965, o livro reflete o ambiente político de democratização e mobilização social do início dos anos 1960, antes do golpe que mergulhou o Brasil em uma ditadura. Era preciso alfabetizar as massas para que pudessem participar da cidadania eleitoral, mas era necessário que essa educação fosse crítica e com potencial transformador, para que as camadas populares pudessem exercer essa cidadania de forma consciente e autônoma em direção à sua emancipação. Para Paulo Freire, uma educação que promovesse a criticidade, na qual os sujeitos indagassem de forma crítica as condições de sua existência, seria fundamental para uma mentalidade democrática.
A universidade, do mesmo modo, não pode temer o debate, muito menos a luta política. No atual contexto de reconstrução democrática, a luta pela educação pública deve estar no centro da pauta de uma universidade, espaço onde, inclusive, são formados os trabalhadores da educação nos cursos de licenciatura. A luta pela educação faz, portanto, parte da universidade. E por que não a luta política em defesa da própria universidade? Poderia uma instituição pública de educação superior, cuja finalidade é a construção e universalização do conhecimento em diálogo com a sociedade, ser indiferente à luta pela garantia de que essa educação seja plenamente pública, gratuita, democrática e de qualidade? Poderia a comunidade acadêmica ignorar esse debate se nele está implicado a própria resistência da universidade pública como um instrumento efetivo de transformação social? Seríamos indiferentes somente se nossa educação superior pública fosse uma farsa.
Fazemos esta reflexão como historiadores. René Rémond, na obra Por uma história política, demonstra a modificação do viés pelo qual a História leu os acontecimentos políticos, passando de uma narrativa elitista, “condenada pelo ímpeto das massas e o advento da democracia”, para uma “nova” história política que pretendeu integrar todos os atores do jogo político, incluindo o povo. Essa mudança de perspectiva não se explica somente por fatores internos do campo da pesquisa histórica, mas da própria expansão da democracia na segunda metade do século XX, pois a História não está alheia ao tempo em que é escrita. O conhecimento histórico produzido atualmente, e de modo geral o campo das Humanidades, não se furta a novas interrogações colocadas na urgência, como salientou Arlete Farge em Lugares para a história. Esse conhecimento é reformulado e revisitado incessantemente, porque reinterrogado pelo presente, o que não retira seu estatuto de fiabilidade com base em protocolos, ou métodos, que evitam as falsificações ou negações do passado. São os desafios ético-políticos do presente que forjam as questões que o historiador dirige ao passado.
Nos últimos 20 anos, participamos do processo de popularização da universidade pública. Os filhos da classe trabalhadora, historicamente apartados do processo de construção intelectual, tornaram-se os protagonistas da produção do conhecimento, especialmente no que diz respeito às Humanidades e às licenciaturas. Essa transformação no perfil das universidades, fruto de políticas públicas, integra um projeto fundamental de fortalecimento mais efetivo da democracia, na medida em que está em jogo a formação de uma nova elite intelectual, cuja responsabilidade é a de imaginar e a de construir o Brasil do futuro, tendo como meta a eliminação das desigualdades sociais, raciais e de gênero profundas que ainda atravessam nossa realidade.
Para que esse processo prospere (considerando ainda os ataques que a universidade sofre quando a democracia está em risco), é fundamental que professores, estudantes e a comunidade acadêmica de modo geral discuta a relação que queremos construir com o conhecimento. De que maneira a classe trabalhadora vai sustentar esse lugar e essa abertura de mundo junto à universidade se não abraçando a luta política para garantia de direitos fundamentais como condição do conhecimento produzida por ela?
Luta política e conhecimento sempre andaram juntos, embora nem sempre, a ciência convencional tivesse admitido. Nos últimos anos, no entanto, vemos intensificar no campo intelectual o que Marcelo Rangel, denomina giro ético-político. Esse processo caro à temporalidade contemporânea e associado aos desafios da democracia hoje revela que o conhecimento quer mais do que simplesmente conhecer, ele busca a valorização da diferença e a produção da justiça como condição final de sua prática. O conhecimento quer garantir a emancipação das opressões e a democracia, se a compreendermos como um modo de vida baseado na tensão produtiva junto à diferença.
O giro ético-político, indica, portanto, um acirramento da tensão na própria noção de ciência e de conhecimento – uma tensão que quer garantir condições de possibilidade para que múltiplos modos de existir e de praticar o olhar sobre a existência se manifestem. Não se trata de negar uma relação mais pragmática e técnica com o conhecimento, porque a universidade é o lugar que tem a responsabilidade social de produzir ciência, de conhecer as coisas, de explicá-las, problematizá-las e de apresentar soluções. Mas sua função não se encerra nesse papel, do contrário a universidade perde o que tem de mais potente. Nas palavras de Rangel, a universidade precisa ir em direção a um ambiente que permita “certa aproximação comunitária em relação a afetos (empatia, tenacidade, fúria) que torne possível que a gente insista na tarefa difícil de abertura franca e da relação intensa junto a outras e outros, um ambiente propício à ousadia”.
A universidade na construção pelo conhecimento libertador, para retomarmos Freire, não teme correr riscos intelectuais e, sobretudo, a luta política, porque são deles que emergem o caráter de possibilidade da vida, da transformação e do movimento da história a partir da diferença. É pela luta política que a universidade realiza a tarefa árdua da imaginação, do acolhimento dos corpos, dos afetos, das dúvidas, do atravessamento dos desafios sociais e históricos e pela qual realiza a abertura para mundos que estão por vir.
Referências
FARGE, Arlete. Lugares para a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
RANGEL, Marcelo de Mello. A universidade porvir. As humanidades hoje. Ensaios Filósoficos, n. 28, 2023-2. [No prelo].
RANGEL, Marcelo de Mello. A urgência do giro ético-político: o giro ético-político na teoria da história e na história da historiografia. Ponta de lança, UFES, v. 13, p. 27-46, 2019.
RÉMOND, René (org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV, 2013.
Créditos na imagem: Grupo de Projeções da Escola de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais. Estudante: Theo, Igor e Flávia. Projeto Gráfico, coordenação e pilotando a projeção: Prof. Mário Geraldo. Registro Prof. Zé Rocha.
Thamara Rodrigues
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