O debate em torno da fome e da insegurança alimentar na América Latina, especialmente no Brasil, sofreu mudanças importantes. Enquanto nos tempos de Josué de Castro (2001) a fome era relacionada à falta de acesso a alimentos, devido as condições socioeconômicas desiguais impostas a maioria da população, hoje enfrentamos outro fenômeno: a fome de nutrientes de qualidade. Em escala planetária, transformações mais recentes não trazem bons prognósticos.
O sociólogo Ziegler (2013) questiona os dados atuais sobre desnutrição populacional, particularmente quando ressalta que a produção agrícola mundial permitiria alimentar duas vezes a população do planeta, entretanto, essa produção é sequestrada por apenas dez mega corporações. Paradoxalmente, são estas poucas empresas as responsáveis pelo aumento do consumo vertiginoso de alimentos “ultraprocessados” — abundantes em gorduras, açúcares e sódio. Tais ‘alimentos’ alteram os padrões de saúde da população, com o aumento das doenças crônicas não transmissíveis. Essas transformações na dieta resultaram na emergência de “novas fomes”, agora não mais marcadas pela subnutrição, mas pela má nutrição.
Os ultraprocessados, altamente promovidos pela indústria alimentícia, tornam-se populares devido à sua praticidade e acessibilidade econômica. Porém, estudos recentes mostram seus impactos nocivos à saúde física e mental. Entre os efeitos destacam-se a perda cognitiva em massa, como evidenciado por Cardoso (2022), e o surgimento de doenças como diabetes e hipertensão. A proliferação desses “alimentos” também altera drasticamente os hábitos alimentares regionais, contribuindo para a decadência das tradições culinárias locais.
Dados do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (NUPENS-USP) indicam que o consumo médio de ultraprocessados no Brasil é de 20%. Embora esse percentual seja consideravelmente menor que em países desenvolvidos (onde ultrapassa 60%), o Brasil representa um mercado emergente para a indústria de ultraprocessados, com potencial de expansão. Em países como o México e o Chile, onde foram adotadas políticas como a taxação de produtos ultraprocessados, já se observa uma redução significativa no consumo desses itens.
É preciso urgência em adotar medidas mais enérgicas na vigilância e controle da disseminação dos ultraprocessados no país, especialmente entre jovens e crianças. Em 2023, novas regulamentações sobre rotulagem de alimentos aprovadas pela Anvisa marcam um avanço, contudo ainda são medidas insuficientes para frear o incremento desse tipo de alimentação, especialmente em ambientes escolares.
A jornalista e pesquisadora Juliana Dias dedica-se a difundir os estudos sobre comida, gastronomia e patrimônio cultural, alertando para as graves ameaças ao desenvolvimento de um sistema alimentar saudável e sustentável. Ao participar de campanhas para preservação das culturas alimentares, – sob pressão do agronegócio, industrialização obsessiva, padronização do gosto e normas sanitárias obsoletas -, propaga a defesa do patrimônio alimentar. Pois, como se vê, é fundamental enfrentar as contradições do sistema alimentar moderno para preservar o que se come, quando se come, com quem se come. Por conseguinte, nesse contexto, a Lei 7180/2015 surge inexoravelmente como um reforço fecundo nesse enfrentamento necessário.
A Lei 7180, sancionada no estado do Rio de Janeiro em 2015, reconhece a gastronomia como um patrimônio cultural e visa promover os modos de vida alimentares tradicionais. Ela estabelece um marco referencial que pode ser utilizado para combater a homogeneização da culinária e a perda de identidade cultural imposta pela globalização alimentar. No entanto, até o momento, esta legislação ainda é amplamente ignorada em iniciativas de promoção da alimentação saudável.
Como se revela evidente, especialmente quando se dedica a pesquisas sobre alimentação no contexto escolar, que a sociedade depende da escola para a educação alimentar das crianças. Por esta razão, observa-se o avanço de pesquisas acadêmicas, congressos científicos e debates com lideranças políticas internacionais; alertando para a gravidade e urgência da situação.
Assim, ao valorizar ingredientes e práticas locais, a Lei 7180 pode se articular/integrar ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), conforme o Decreto nº 11.821/2023, ao estabelecer diretrizes para a promoção de uma alimentação saudável no ambiente escolar. A inclusão da Lei 7180 potencializa a oferta de alimentos regionais nas escolas, com incremento da história cultural da gastronomia, contribuindo para a formação de hábitos alimentares saudáveis desde a infância.
A culinária, como destaca Montanari (2009; 2013), é uma forma de expressão cultural tão relevante quanto a linguagem. E como salientou Lévi-Strauss: “a cozinha, como a linguagem, constitui uma forma de atividade humana verdadeiramente universal: assim como não existe sociedade sem linguagem, não existe nenhuma que, de um modo ou de outro, não cozinhe pelo menos alguns de seus alimentos” (Lévi-Strauss, 1979, p: 25). Portanto, a culinária e a gastronomia refletem as identidades de grupos sociais e preservam tradições ancestrais. A crescente substituição dos alimentos tradicionais por produtos ultraprocessados ameaça esse patrimônio, mas felizmente há sinais de resistência. Poulain (2004) aponta que, apesar do avanço do fast-food, as tradições à mesa continuam a resistir, especialmente em famílias que priorizam a comida caseira. Destaca-se no Brasil as ações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) nessa mesma direção.
Pesquisas em ciências sociais evidenciam como as tradições culinárias podem servir de ferramenta de proteção cultural e promoção de saúde. Estudos recentes mostram que a literatura gastronômica, numa perspectiva interdisciplinar, aliados a experimentos em laboratórios dietéticos, podem fomentar a valorização da cozinha regional e recuperar hábitos alimentares saudáveis (GOLDEMBERG, 2011).
No entanto, é preciso abordar a paisagem alimentar considerando os desafios econômicos da socialização (laço social) no Brasil, destacando o aumento crescente dos gastos e custos para manter uma vida social ativa. As despesas com lazer, como shows, cinema, academia e restaurantes, têm um impacto significativo no orçamento, especialmente para as classes C e D. Em 2019, o Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) indicou que aproximadamente 13% da renda mensal dos brasileiros é destinada a gastos com lazer, como entretenimento, atividades culturais, viagens e saídas para restaurantes. Estes dados demostram que os gastos com lazer consomem uma parte considerável da renda das pessoas, já que a maior parte do dinheiro é destinada a necessidades básicas como aluguel e alimentação.
A disparidade econômica entre as classes sociais, evidencia que os mais ricos gastam mais em lazer, enquanto as classes mais baixas enfrentam enorme dificuldade para socializar. Além disso, a diminuição de espaços públicos gratuitos, como parques e praças, que antes facilitavam interações sociais sem custos, aumenta ainda mais o fosso da desigualdade. Essa redução leva as pessoas a buscarem alternativas pagas, como shoppings, baladas e restaurantes, tornando a socialização cada vez mais um privilégio. O lazer acaba circunscrito a espaços exclusivos de consumo, nos quais carece de socialização democrática entre as classes sociais; modelo que se reproduz nos atuais festivais gastronômicos. A falta de opções acessíveis para lazer e a mercantilização das relações afetam principalmente os jovens de baixa renda, que gastam uma parte significativa do orçamento com lazer, limitando as oportunidades de criar e manter amizades, assim como de conectar-se as saberes e conhecimentos comunitários e públicos.
Os sistemas de produção e consumo de alimentos são influenciados por questões políticas e sociais, e há uma crescente necessidade de dietas mais autênticas, verdadeiras, seguras e sustentáveis. Diversos movimentos ativistas, com o apoio de produtores locais, emergem em resposta a estes desafios, promovendo novas formas de consumo alimentar e defendendo a biodiversidade e a justiça social. Não obstante, estipula-se que até 2050 esses movimentos, apesar de importantes, não oferecerão soluções plenamente integradas para alimentar a população global de maneira sustentável.
A tecnociência também apresenta novas alternativas, como os alimentos produzidos em laboratório. Porém esses produtos artificiais, não são neutros e mantêm padrões de consumo insustentáveis, beneficiando grupos econômicos dominantes. A refletir criticamente sobre os sistemas alimentares percebe-se a necessidade de resistir a práticas insustentáveis, e pensar sobre o futuro das relações humanas com a natureza e a comida.
Michaela DeSoucey (2010) introduziu recentemente um conceito relevante, o gastronacionalismo, vinculando a produção e o consumo de alimentos a sentimentos nacionais, sustentando o poder afetivo do apego à cultura nacional. Enquanto isso, no Brasil, a política de segurança alimentar foi quase destruída durante os governos de Temer e Bolsonaro, ao privilegiar a exportação de monoculturas em detrimento da soberania alimentar e da promoção da rica cultura culinária do país.
Recentemente recuperando a administração pública federal, no governo Lula III, espera-se que a culinária e gastronomia sejam enfim utilizadas para impulsionar o desenvolvimento inclusivo, democratizando a gestão dos acervos tradicionais e continuidade da herança cultural. Para tal é preciso também enfrentar uma certa frivolidade na gastronomia, defendendo que os chefs atuem de forma ética e inovadora, abordando questões históricas, sociais e políticas, como imigração, urbanização e industrialização acelerada e o consequente colapso do sistema agroalimentar.
Destacam-se nessa trajetória de promoção da comida de verdade, iniciativas solidárias como a Gastromotiva e a Favela Orgânica, que enfrentam a fome endêmica e promovem alimentos de qualidade para minorias desfavorecidas, conectando a gastronomia com ativismo e performatividade política.
O cenário atual da alimentação no Brasil exige uma abordagem política e cultural robusta, para enfrentar os desafios trazidos pela difusão dos alimentos ultraprocessados. Como se constata aqui a Lei 7180 apresenta-se como um instrumento promissor para fomentar a recuperação das tradições alimentares regionais e garantir a soberania alimentar no estado do Rio de Janeiro. Contudo, é necessário um esforço coletivo para que essa legislação seja amplamente implementada e para que políticas públicas priorizem uma alimentação saudável e culturalmente significativa para a população. Promover a cozinha brasileira e latino-americana, como um espaço de resistência cultural e saúde, é essencial para reverter a tendência atual e fundar uma sociedade mais conectada com suas raízes, menos vulnerável às estratégias de mercado da indústria de ultraprocessados.
Referências:
CASTRO, Josué de. Geografia da fome. Apresentação de Milton Santos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
CORREA, Alexandre Fernandes; BARROS BURITI DE, Laís. A Paisagem alimentar macaense em tempos de aceleração histórica: gastro-anomia e perdas culinárias na cozinha fluminense e brasileira nas comemorações do bicentenário. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, [S. l.], v. 19, n. 2, p. 373–391, 2022. DOI: 10.35355/revistafenix.v19i2.1122.
DESOUCEY, Michaela. Gastronationalism: food traditions and authenticity politics in the european union. American Sociological Review, 75(3), 432–455, 2010. DOI: 10.1177/0003122410372226
LÉVI-STRAUSS, Claude (1968). O triângulo culinário. In: SIMONIS, Yvan. Introdução ao estruturalismo: Claude Lévi-Strauss ou “a paixão do incesto”. Lisboa: Moraes, 1979. p. 169-176.
MONTANARI, Massimo. Introdução. In: MONTANARI, Massimo (org.). O mundo na cozinha: História, identidades, trocas. São Paulo: Estação Liberdade/SENAC, 2009. p.11-17.
MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. 2. ed. São Paulo: Senac São Paulo, 2013.
POULAIN, J-P. Sociologias da Alimentação. Florianópolis: Série Nutrição, EDUFSC, 2004.
ZIEGLER, J. Destruição em massa. Geopolítica da fome. Trad.: José Paulo Netto. 1. ed. São Paulo: Editora Cortez, 2013.
Créditos da imagem de capa:
Reprodução: depositphotos.com / beats1
Alexandre Fernandes Correa
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