Sobre o fenômeno da viralização

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A velocidade, a falta de conscientização e de responsabilidade na elaboração dos conteúdos produzidos na internet, a reprodução massificada e sem ponderação dos posts, dos vídeos, das notícias, das imagens e afins, os rumores que se criam e se desfazem instantaneamente, acompanhando as dinâmicas do que é chamado de tempo real, atravessam o universo da informação. Podemos falar que estamos ante o fenômeno da information disorder. Não seria inoportuno apontar que se verifica um verdadeiro curto-circuito político, tecnológico e cultural que avança pelas lides do ciberespaço, pressionado por fenômenos contemporâneos como o da pós-verdade, da desinformação e do negacionismo, que muita das vezes agem de maneira combinada. Vania Baldi é esclarecedora quanto a essa disposição, que se intensifica no âmbito digital, quando aponta que esse movimento em curso “espelha a falta de atenção, de regulação sobre a qualidade dos conteúdos noticiosos e o modelo de negócio subjacente, acompanhando um clima cultural aparentemente cada vez menos disponível a uma reflexão aberta e ponderada sobre as várias questões sociais que marcam os desafios do nosso presente” (BALDI, 2018, p. 5). Os debates contemporâneos, tanto na esfera pública quanto na digital, carecem, pois, de referências concretas, lógicas, ajuizadas e até mesmo mais aprofundadas para se fazerem mais consistentes em termos de circulação informacional. Esse é o fenômeno da viralização, que consiste na replicação, sob orientação maquínica e atravessada pela razão algorítmica, de informações em larga escala no ambiente virtual.

O tecido social, e isso também se aplica ao ciberespaço, apresenta-se polimorfo, pluricromático e não linear, em que as ações, os gestos, as atitudes e as performances seguem caminhos multidirecionais. A esfera pública digital, fomentada por informações virais, é um espaço de polêmicas intermináveis, mas sem aprofundamento e, muitas das vezes, transformando-se em lugar de reafirmação de posições, e não do diálogo propositivo, diferencial e ativo. O fenômeno da viralização retira, em muitos casos, a concretude dos problemas da experiência histórica propriamente dita, sendo que a maioria das pessoas, pensando mais naquelas que se movimentam pelo virtual, mas sendo algo que se encontra também no offline, tendem a agir pelo hábito, de maneira automática, forçados pela razão algorítmica, fechando-se em bolhas de audiência, em grupos com convicções e (re)sentimentos parelhos e conectados. Pode-se dizer que é elaborada uma espécie de sintaxe das relações sociais digitais, mas que se projeta pouco estruturada e racional, não sendo difícil de se ver a polarização entre grupos e entre indivíduos, que mesmo se expressando sobre a mesma realidade criam interações, versões e narrativas do mundo “alternativas” e irreconciliáveis, como se essa mesma realidade fosse algo “factualmente menos interessante, acessória e secundária (SUNSTEIN, 2017).

A viralização é contrária à complexidade do tecido social, pensando em suas mais diversas camadas justapostas: econômicas, demográficas, ambientais e interculturais. Como bem aponta Vania Baldi: esse fenômeno cria debates sem diálogo. A realidade, transformada facilmente em post replicável, tende a perder a sua ancoragem no mundo, transformando-se em um decalque de afirmações de posições irrefletidas. Ela, ainda caminhando pela disposição viral, torna-se abstrata, fácil de interpretar, de resolver, sem contar que o poder maquínico dos algoritmos inviabiliza a percepção do real percebido através dos detalhes, das nuances, das distorções, das diferenças, dos fragmentos, das inconstâncias, dos contrastes, das dissonâncias, das imperfeições, das contradições. As controvérsias no espaço público, que poderiam ser dinamizadas e pluriversalizadas no virtual, ampliando a dimensão democrática da realidade, e seu agenciamento comunicacional vertido socialmente, favorecendo o caminho do bem comum, acaba por ser um espaço em o que está em jogo é a disposição por ganhar e/ou confirmar convicções pré-estabelecidas, disposições de afeto e de pensamento que já existiam e que se sentia.

Tal fenômeno entrega interpretações prontas sobre a realidade, freando um fluxo mais orgânico da passagem do virtual para o atual, da potência ao ato, da ideia ao real. É uma prefiguração, em muitos casos, absoluta; reafirmativa. O problemático é que isso, sendo observado através da replicação massiva dos posts em escalas verdadeiramente estratosféricas, oblitera a verificação factual. Podemos dizer que a viralização alimenta a pós-verdade. Se cria, então, um verdadeiro ethos do conhecimento do ciberespaço atrelado ao instintivo e às emoções. Estas cada vez menos diversificadas e abertas à mudança muito em razão da pressão dos algoritmos. “Descobrimos, assim, de uma forma nova e inesperada, que a sociedade da informação e do conhecimento tem gerado, também, um processo antirracionalista” (BALDI, 2018, p. 6). Além do fenômeno da pós-verdade ascendente na atualidade, e concebido, aqui, como um movimento em que os fatos objetivos, formadores de opinião, se atrelam mais ao apelo emocional e à crença pessoal, podemos entrar no perigoso terreno do registro cultural das chamadas “fake news institucionalizadas”.

Interessante notar, nesse sentido, que os comentários, as discussões, as postagens e a replicação em si de informações, que são minimalistas em termos de viralização, não se operam de modo totalmente indiscriminado. Existindo, mesmo, uma lógica em sua disposição. Assim, a viralização emerge mais contundentemente sobre temas e sobre notícias específicas, numa predisposição à reificação. Elas orbitam a agenda midiática, permitindo toda sorte de “memetização”, geralmente acionando pré-conceitos, em seu sentido mais originário, contra determinados atores e determinados assuntos sociais. A viralização tende à irreflexão e à imprudência, fomentada pela razão algorítmica, sendo fato e indicador de um universo comunicacional orientado pelo simulacro.

O ambiente virtual, de uma maneira ou de outra, é pressionado pela viralização, alterando a sua movimentação originária de democratização da informatização. A replicação irrefletida das informações, vertidas em posts, oblitera os vetores circunstanciais de interação contextual. O fator intenção do autor, ou o lastro experiencial, torna-se manipulável. Claro que há o horizonte da apropriação e da criatividade. Não é algo, cabe salientar, totalmente passivo, mas o problema que se apresenta é o da adequação dos conteúdos em posição simétrica com a suas, em um gesto combinatório que tem em vista não outra coisa que aquilo que lhe agrada e lhe convém, retirando, paradoxalmente, o valor crítico do processo interativo de apropriação, que não deixa de ser uma espécie de atualização. Sem contar que a viralização também é fato e indicador da aceleração do tempo digital, na medida que há pouca retenção informacional e, menos ainda, elaboração reflexivo-conceitual, quer dizer, de assimilação (in)formativa mesmo. Algo que perverte, como assinalado anteriormente, os horizontes de democratização da informação que foram projetados com a emergência do ciberespaço como arena pública.

O fenômeno da viralização pode levar, nesse sentido, à dicotomia, ao dualismo, à polarização, à radicalização e à fragmentação do discurso, havendo uma combinação entre marketing, alteração do real, afirmação de conhecimentos pré-estabelecidos, invenção factual em modo de fake news, o que vem, certamente, a desafiar a construção de uma realidade democrática, cidadã e inclusiva mediada pelos vetores digitais, instância que se apresenta, no limite, como uma fisiologia do espaço público contemporâneo.

 

 

 


REFERÊNCIAS:

BALDI, Vania. A construção viral da realidade: ciberpopulismos e polarização dos públicos em rede. Observatório Journal, special Issue, 2018.

SUNSTEIN, C. R. #Republic: divided democracy in the age of social media. Princeton: University Press, 2017.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: GETTY IMAGES.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Piero Detoni

Historiador, professor e psicanalista. Graduado e mestre em História pela UFOP, doutor em História Social pela USP e pós-doutor em História pela UNICAMP. Realiza pesquisa de pós-doutoramento na UFRRJ com bolsa Faperj Nota 10. Em sua tese de doutorado, abordou a experiência historiográfica no IHGB na Primeira República. Estuda, atualmente, a recepção da filosofia de Friedrich Nietzsche no Brasil. Tem interesse nos seguintes temas: Teoria da História, História da Historiografia, História Intelectual, História da Leitura e da Recepção, Ensino de História, além de História do Brasil Republicano e História Moderna e Contemporânea.

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