silêncio me devora

quando rasga por dentro

sorte apesar do pouco fortuno

hoje olho e enxergo o intento

tá no gene ser apimentadoce

mel e fumo, cana (de engenho)

farinha e charque pra comer,

bico fechado se olhar for atento,

passada estridente já pressente

e não conte sobre esse dendê

hoje olho e consigo entender

apimentadoce arde olho de peixe

entre os e alguns medianos

com muita fé, talvez o caminho

pai celeste, maria e amém

a primeira vez que vi mar foi

num viaduto: Barra de São Miguel

no carro de painho, também um Miguel

quando espuma me contava segredos doces

nas cachoeiras do Pontal do Coruripe

de mãos dadas com vovó

até o encontro e licença do mar

e depois disso os córregos viravam rios

e mesmo o Lago da Perucaba teve maresia

se to aqui me desviei de sagrado y feminidade,

profano e cotidiano que me contam a verdade

nos piores dias o máximo que se podia fazer

era correr na bicicleta de todos até onde

na rua de barro eucaliptos balançavam

(-me eu não lembrava) y aí asfaltaram tudo,

novos desconhecidos de novo

(e mesmo assim eu não lembrava)

que mais nada mais crescia além daquelas árvores

me procuravam por horas y em cima do pé de caju,

mas o esconderijo tinha suas vantagens

deixei as bonecas de lado aos 6 anos de idade

soube que outra prima precisou faz e omesmo aos 4

atravessando a cidade no pedal

fim de tarde, fui ver uma amiga

 

perto de onde morava e sem sinal

das mentiras que se sobrepõem no final

já tive mais motivos pra fugir

me quedaram pior por mais

em pura maldade e eu não notei

em puro mal, sinal tava claro

tendo vista da Deputado José Lages

quem diria, mas já morei em outro bairro

com o mesmo nome desse outro arrombado

Arnons de Mello e Silvestres Péricles do baralho

mas subindo escadas do Janaína eu já sabia

que respirando disso tudo

trago outro minister na memória,

se o sangue é seco pra sobreviver

energéticos dos freelas

nas madrugada por proceder

luzes acendem e apagam no bloco do ZeTê

2 da manhã a caminho do único posto

sozinha me afugentando de porquês

noites de pandemia ensacadas em sobrados

apenas se restaura ecos de memória

qualquer pessoa de coragem sem medo

faz-se também meio burra e imprudente

aqui onde me rasgo de verdade e vontade

do meu bloco muros e farpas indicam o óbvio

nem aqui se pode correr da verdade, mas tentativas

seguem como tempo correndo de meu rosto

como essas lágrimas seguras que perderam o timing

 

escrevo às 03:26 porque sinto morte nos rondando

 

maceió, a terra que tapa o alagadiço

chove como não choveu no ano todo

engenheiros que não respeitam o sentido

concreto no lugar de riacho, restinga e mangue

dunas virando fumaça com incentivo e alerta,

aperto e apreensão até passada a chuva certa,

é comunidade por si conferindo o estrago

pois todo ano, sempre o mesmo resultado

alagamento, deslizamento e buraco

é sábado de carnaval e há chuva no horizonte

 

vejo que as tartarugas tomam formas

mas nossas ondas nos consomem

profunda demais pra piscina rasa

com medo demais do fundo da mãe Mundaú

8 ou 80 sem supor que x e 8x são iguais a 0

mas da caça no concreto oxóssi não se esconde

enquanto tenho descrito essas trombas

de tantas lombras, tantos bondes

depois analiso com uma lente e reflito que

não seria simples lembrar dos olhos de vovó

apesar de suas flores e plantas ainda existirem

o sorriso era verdadeiro, mas sempre pra dentro

leite morno com açúcar e canela como ceia

de quem sabia o que era não ter de comer

cafuné suave e abraço caloroso com ternura

afetada pelos afetos, me transporto em silêncio

às ruas de Palmeira dos Índios, onde me dou conta

do sanque no chão sob as placas de ruas

que nas guerras entre Góis, Mendes e Gomes

não é simples nascer em uma zona de divisa

próxima ao primeiro impeachment do Brasil

sendo neta de uma mulher negra de olhos azuis

sua mãe se foi e seu pai não se acometeu do banzo

correu pra Maceió e sumiu por seis meses,

fugindo da falta de trabalho, acalento, trabalho

até os sacos de comida acabarem e vó,

filha mais velha da casa, a que já trabalhava

precisar fazer o que era mesmo preciso

até bisa voltar, mas parecer que nunca estava

além de trabalhando, erguendo, construindo

casas pequenas e médias típicas de classe média,

de mudança em mudança viviam àquela vista

andando por lá me pergunto

quais janelas e portas tiveram suas medidas

e assim conseguiu os bons casamentos de suas filhas

acho que se soubesse o que viria teria feito diferente

depois que também se foi, meu avô Miguel começou

com os… infindáveis sumiços —

Dielza conta que vó Ilda chorava muito,

mas que o amava de verdade apesar do aquém

uma vez meu pai me perguntou

no calor de uma briga chuvosa

se eu achava mesmo que vô

nunca tinha sido

(sexualmente — palavras dele) violento com alguém

 

(eu tinha 14 anos)

aos 24 me pergunto

o que o silêncio não vai dizer

quando os poucos de pele escura

numa família inteira branca violenta

aprenderam cedo a disfarçar

que parca herança de meu pai e minha irmã

ainda se perde ao revindicar o afeto no relento

ao contrário vó Lindinalva, que nunca vi chorar

mas que sempre disse ser viúva apesar de amar

assim como tantos, ela e vô Adelmo viajaram

de Arapiraca, interior de Alagoas pra São Paulo

fugindo, de novo, da falta de trabalho e da fome

vô foi o homem que no começo prometeu o contrário

meu tio Marcelo diz que vó já chegou em Arapiraca

fugida com o olho roxo e o nariz quebrado

foi trabalhar lavando roupas e quando retornou

Adelmo pegou as crianças e voltou pra Maceió

ainda no banheiro da rodoviária teve um mal súbito

tio e mãe encontrados por vó uma hora depois de tudo

os filhos de vó Ilda vieram pra Maceió não por sonho

correram de Arapiraca porque possibilidade era pouca:

sonharam além de comerciante, professor ou religioso

os filhos de vó Nalva também foram embora em sonho

vinte anos depois vim em fuga (e expulsa)

porque nascer sem ser quista já me era pouco,

e hoje entendo que mesmo pimenta é doce

até o plástico verde que tá em todo lugar

é o mesmo que sufoca também meu pulmão,

o fumo que as mãos antes de mim debulharam

ainda faz adoecer e ranger meu coração

que o cloro que faz o filtro e o papel do cigarro

também me traga as veias e articulações

zumbindo como nordestino, o povo continua

entre interior e capital, capital e sudeste,

com pés no massapê e na engrenagem do busão

da areia fofa no fundo mar que constrói emissários

que tapam minas e em Ipioca criam novos buracos

mas se a engilhadez da lama ou frio alto dos prédios

que um dia foram baixos e conseguem arranhar céus

todos hoje em dia veem essas construções

e sentem o baque do vento e do frio

o mesmo que matou meu avô naquela estação

 

quando a tuberculose que também se transformou

em câncer no pulmão, em álcool no meu fígado,

circulando os fantasmas que vó não quis enxergar

e que hoje me fazem falsa vidente ou esquizoide

desse maldito inferno disfarçado

de circularidade e falsa onda sonora