No filme Nise: O coração da loucura lançado em 2016 com direção de Roberto Berliner, é abordado como a construção do imaginário na sociedade e no âmbito científico das pessoas com doenças/distúrbios psíquicos afetava diretamente na forma que elas eram tratadas e nas suas relações interpessoais. Além disso, o impacto desse tratamento influenciava o próprio olhar sobre si mesmo enquanto sujeito de sua própria vida. É perceptível que a psiquiatra Nise da Silveira ao trazer uma nova ótica sobre o assunto, sofreu uma grande retaliação por parte dos colegas de trabalho, o que pode ter uma dualidade de opiniões; seja por se tratar de uma maneira mais humanitária ao lidar com os clientes ou por causa do seu gênero – sendo a única mulher a ter um grande cargo no hospital -. Posto isso, durante todo filme fica explícito o quanto o parecer do médico era importante para a família que por vezes não tinha ciência de como era o tratamento no local ou como o próprio desconhecimento social sobre o assunto fazia com que o mínimo sinal de um comportamento fora dos padrões impostos à sociedade fosse reprimido.

A partir disso, é necessário apontar o abuso de poder presente dentro do hospital que é retratado, tendo em vista como os médicos usavam da ciência para embasar os métodos desumanos, logo, não se comprometendo de fato com a saúde mental do paciente, mas realizavam atos sádicos a fim de afirmar que a partir do seu conhecimento científico ele era capaz de curar a loucura imposta. Entretanto, como aponta Nise da Silveira, não se cura o que não é doença, além de que as opções de tratamento oferecidas incluíam tirar parte da humanidade dos indivíduos, como por exemplo, a capacidade de sentir afeto e de serem quem realmente são. Ao encontro dessas ideias, o autor Byung-Chul elabora em sua obra “O que é poder?” as formas em que o poder se manifesta e se perpetua, uma destas é a partir da manipulação e da violência para coagir o lado oprimido e com isso, na verdade, não há um poder estruturado. No filme, o poder que os médicos acham ter não existia de fato e eram apenas resquícios de uma estrutura opressora que se manteve, era a partir da coerção que os médicos domavam os pacientes e como homens cis e brancos podiam exercer seus privilégios sob a única psiquiatra mulher dentro do hospital. Ou seja, o uso da violência para domar essas pessoas comprova que o poder não era efetivo já que necessitava de formas de opressão para se concretizar.

Posto isso, quando é necessário o uso da força é porque há a necessidade de coagir o lado que está sendo dominado, tendo em vista que apenas o poder de dominação não seria suficiente para manter a ordem da barbárie. O desejo institucional de domar esses indivíduos que não tinham suas vozes escutadas, só mostra como suas figuras eram vistas de formas animalescas e bárbaras, logo, na perspectiva dos médicos podiam ser tratados de qualquer maneira. Portanto, um dos motivos principais da presença de Nise incomodar tanto seus companheiros de trabalho se dava já que ela acreditava e estava disposta a oferecer uma abordagem justa e humana, o que afetava e questionava diretamente a estrutura tradicional presente.

Rompendo com os paradigmas opressores a psiquiatra apresenta abordagens mais humanitárias ao tratamento dentro da terapia ocupacional. Ao apresentar aos clientes a oportunidade de desenvolver e reacender o lado artístico, o salto em relação ao comportamento foi notório. Quanto a isso, fica evidente, assim como parafraseia Ferreira Gullar: “A arte existe porque a vida não basta”. Diante disso, o filme mostra como o acesso à arte fez com que aquelas pessoas conseguissem se expressar e se reconectar com o próprio eu. Isso se mostra, por exemplo, quando Fernando Diniz ia realizar a lobotomia, mas quando sua mãe viu sua pintura e houve a mediação entre ela e Nise da Silveira, a família voltou atrás na decisão pois conseguiu perceber a partir de suas obras e da conversa com a psiquiatra que a dor de Fernando, era por amor. O mesmo ocorre em Emygdio de Barros que por causa de seus transtornos foi deixado à mercê pela medicina tradicional, entretanto, ao receber um tratamento adequado por Nise da Silveira conseguiu a partir da arte se expressar e desenvolver um lado que mal sabia existir, se mostrando um grande talento na pintura brasileira. No que tange à contemporaneidade, romper com estigmas que visam apagar corpos, afetos e mentalidades se faz necessário para que estruturas genocidas deixem o poder. A psiquiatra se mostrou atemporal ao sugerir uma visão alternativa à que estava vigente, que considera ambos os lados como sujeitos atuantes da sua própria história. Visto isso, a arte devolve aos indivíduos o prazer de uma vida mais digna – além do sexual -, já que o tesão por ela se dá também a partir do sentimento de se sentir pertencente, pois antes eram reprimidos por não responder às expectativas sociais. A sociedade cobrava dessas pessoas uma normalidade inexistente, elas muitas vezes estavam delirando e reproduziam comportamentos de anos deste “tratamento” repressor.

Destarte, as violências apresentadas e que fogem do âmbito fictício abrangem muitas vivências. Grande parte dos empecilhos encontrados pela psiquiatra partiam do fato que ela era mulher e esse sexo sempre foi visto como intelectualmente inferior; as retaliações se davam também porque mesmo sem oprimir e violentar os pacientes, os avanços eram inegáveis, assim como eram fundamentados pela ciência. Com isso, as reavaliações das teorias – tendo em vista que o científico e o social estão interligados – se tornam valiosas para que não se perpetuem esses movimentos. As mudanças só acontecem a partir de demandas e lutas sociais constantes, assim como na obra que mesmo com resultados positivos da psiquiatra, ela ainda sim sofreu uma perseguição. A partir de uma intenção de utilizar o seu conhecimento intrínseco ao seu afeto, Nise conseguiu transpassar a vivência daquelas pessoas, reconectá-las com suas famílias e passados, mas além disso, proporcionou uma compreensão de que suas deficiências não os limitavam, posto isso, não havia a necessidade de se preocupar com uma cura mas sim com o processo que agregaria a diversos âmbitos – intelectuais, motores, afetivos -, visto que grande parte dos pacientes sofreram traumas e suas ações eram reflexo disso. Por fim, ao se propor a pensar na relação entre a ciência e o social, Nise da Silveira salvou diversas vidas de uma visão injusta que tinha o intuito de apagá-las, mas suas artes resistem. Lúcio Noeman. Adelina Gomes. Carlos Pertuis. E todos os outros.

 

“A dez mil modos de pertencer a vida e lutar pela sua época.”

 Nise da Silveira.

 

 

 


REFERÊNCIAS:

BYUNG-CHUL, Han. Lógica do Poder. In.: O que é Poder?. Petrópolis: Editora Vozes, 2020.

NISE: O coração da loucura. Direção de Roberto Berliner. Produção: Raccord produções. Brasil, 2016.

TRIGO, Luciano. ‘A arte existe porque a vida não basta’, diz Ferreira Gullar. G1, Paraty, 07 de agosto de 2010. Disponível em: https://g1.globo.com/pop-arte/flip/noticia/2010/08/arte-existe-porque-vida-nao-basta-diz-ferreira-gullar.html. Acesso em: 02 de junho de 2025.

 

 

 


Créditos na imagem de capa: Criada por Pietra Almeida Henriques.