De quantas Marias nos fazemos? Sobre o esperançar e a historiografia escolar digital

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Esperançar. O título proposto visa falar não apenas à razão mas, sobretudo, e de forma indissociável, ao coração de cada leitor do momento presente e mesmo aos que irão ler esse texto no futuro, um futuro que pode ser amanhã ou um futuro daqui a muitos e muitos anos.

Falando em futuro: qual é a perspectiva de amanhã que temos nesse presente desconcertante? O que tem nos tocado? O que tem nos afetado? O que temos nos permitido afetar? Que efeitos devastadores a pandemia da COVID-19 tem deixado como rastro perverso que atinge as entranhas da alma das diferentes gerações? É possível ver algo positivo em tudo isso?

Esperançar é lembrar do centenário de Paulo Freire que nos convoca, de maneira singular, à luta, à ação, ao bom combate, expressões essas que nos são caras como professores de História. O nosso combate é via conhecimento, é mobilizando conteúdos para que esses tenham sentido e significado aliados a uma sociedade democrática em que a aprendizagem signifique o respeito à presença e à experiência de cada um (MARTINS, 2020).

Esperançar é “vestir o capacete”, como nos lembra a psicóloga Ana Teresa Camasmie (2019), e ir em busca do que nos falta, entendendo que nada nem ninguém nos completa integralmente porque essa integralidade mora dentro de nós mesmos. O conhecimento histórico, todavia, potencializa o olhar para o outro em passadidades que ora nos incomodam, ora nos chocam, ora nos dão alento para querer construir, juntos, outras possibilidades de futuro.

Permitam-me abrir um parêntese para contar uma história. Esse parêntese, talvez, seja o ponto mais importante do texto. A história se passou no município de Colorado do Oeste, Rondônia, região norte do Brasil. Essa história tem nome e este não poderia ser mais emblemático: Maria. Mariquinha, como gosta de ser chamada, 82 anos, nascida em Minas Gerais e há 40 anos morando no norte.  Como postei em minhas redes sociais no dia 31-03-2021, são os olhos como os dela que nos inspiram não apenas a falar de esperança, mas de sentí-la, de vivenciá-la, pois os livros da vida são feitos por histórias fortes e cheias de fé e afeto. É disso que precisamos hoje, inclusive em nossos fazeres profissionais, atualmente atravessados, em grande medida, pelas contradições da tecnologia digital.

Nos conhecemos ao “acaso” ou na “sorte”, como queiram chamar, em uma conversa informal ou, como diriam os mineiros, em uma “boa prosa”, infelizmente privada de abraços devido ao perigo do vírus. Passei em frente à sua casa depois de uma andança pelo bairro e o que recebi foram insumos para o meu fazer historiográfico, ouvindo sobre a cidade, sobre as pessoas e seu duro cotidiano. Contei a ela que sou professora de História, que essa oralidade pulsante me nutria de sabedoria, de vontade de prosseguir contando e ouvindo histórias. Pedi permissão para tirar uma foto com ela, afinal, patrimônios vivos precisam ser documentados.

Uma amiga, também professora de História, me perguntou via Whatsapp após ver a foto com Dona Maria: “Como usar o touch screen para acessar os arquivos desses olhos? Qual local preciso dar click para chegar às memórias que encharcam essas retinas? De quantas Marias nos fazemos? E quantas Marias nos construíram?”.  A relação que tenho estabelecido com a poesia e com a literatura tem me demonstrado que nem tudo se explica pela razão. O alcance dessa vivência é, em si, um ato poético silencioso.

Quando comento do esperançar como direcionamento do nosso olhar ao Ensino de História e ao mundo digital quero justamente demarcar a importância social, cultural e política da gente fixar esse sentido humano nas pesquisas e práticas que envolvam a relação com o conhecimento histórico, mais ainda no que tange ao conhecimento histórico escolar, e à historiografia escolar digital. É sobre esse ‘ensinar digitalmente de forma humanizada’ que quero frisar, tentando provocar a reflexão sobre que tipo de profissional queremos nos formar/transformar.

Esperançar é dialogar, é querer construir coletivamente, é saber, como dito por Caroline Pacievicth (2020), que as nossas utopias não são do reino do impossível e que elas podem ser um caminho para enfrentar o peso do presente contra os afetos tristes. O Ensino de História é campo de pesquisa e nossa epistemologia nos convida a olhar, olhar-se, olharmo-nos. O mundo digital precisa do sentir, sentir-se, sentirmo-nos – caso contrário, ficará difícil continuarmos atravessando a rotina de aulas remotas. Para isso, faz-se mister parar e refletir. Dona Maria foi a protagonista da mais recente aula de História que tive: é preciso sensibilidade para captar os ensinamentos que extrapolam o campo do dito/escrito e dos códigos binários.

Repito o que escrevi em minha tese de doutorado, recentemente documentada em livro: “Somos resistência” (COSTA, 2021). Resistir não é negar a realidade, é esperançar.

 

 

 


REFERÊNCIAS

CAMASMIE, Ana Tereza. Palavras para a alma. Catanduva: Infinda, 2019.

COSTA, Marcella Albaine Farias da. Ensino de História e historiografia escolar digital. Curitiba: CRV, 2021.

MARTINS, Marcus Leonardo Bomfim. Avaliação democrática das aprendizagens históricas: desafios à Didática da História. Educação em Revista, Belo Horizonte, v.36, 2020.

PACIEVITCH, Caroline. Sonhar desperto: formação docente e utopias políticas-educacionais. Webinário do LAEH, 5 out. 2020. 72 min. Live. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3ibhIKWV47c Acesso em 01 abr. 2021.

RATIER, Rodrigo. O que Paulo Freire ensina sobre esperança em 2021.Uol. Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/rodrigo-ratier/2021/01/04/o-que-paulo-freire-ensina-sobre-esperanca-em-2021.htm  Acesso em 01 abr. 2021.

 

 

 


Crédito na imagem: Reprodução. Acervo pessoal da autora.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Marcella Albaine Farias da Costa

Marcella Albaine Farias da Costa é pós-doutoranda em Educação pela UFRGS. Doutora em História pela UNIRIO, mestre em Educação, especialista em Tecnologias da Informação Aplicadas à Educação e graduada em História pela UFRJ.

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