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A ascensão de Bolsonaro: dos fakes aos fatos

 

KLEM, Bruna Stutz; PEREIRA, Mateus; ARAÚJO, Valdei (orgs). Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro. Vitória: Editora Milfontes, 2020, 230 p.

 

São recorrentes nas redes sociais os memes e piadas dizendo que os historiadores terão muita dificuldade de explicar os fatos atuais no futuro, pois tudo parece muito confuso ou inacreditável. Pois bem, não foi preciso esperar por um futuro distante para que alguns acadêmicos de renome buscassem fazer uma análise do nosso contexto sócio-político. Em Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, lançado pela Editora Milfontes em março de 2020, pode-se ler sobre vários assuntos que permeiam nosso cotidiano, como a ascensão da direita e da extrema-direita, a banalização dos discursos de ódio e o fenômeno da pós-verdade.

Mas o que seria “desatualizar” Bolsonaro? De acordo com os organizadores, é pensar a história enquanto ela acontece, superando as abordagens presentistas superficiais. O atualismo, conceito desenvolvido por Mateus Pereira e Valdei Araújo no livro Atualismo 1.0 – Como a ideia de atualização mudou o século XXI, parece explicar melhor a experiência de tempo da nossa contemporaneidade do que o presentismo, já que o que vivemos não é apenas um presente alargado sem perspectiva de futuro, mas sim um presente que articula de diversas formas referências do passado e do futuro, atualizando-as. Esta lógica atualista pode ser percebida nos discursos de Bolsonaro, que muitas vezes se refere ao passado como forma de projetar um futuro melhor, de acordo com as suas concepções. Em Do Fake ao Fato, estes mesmos autores, ao analisar os depoimentos de diversos eleitores e não eleitores do atual presidente sob a ótica do atualismo, nos levam a pensar se a direita brasileira conseguiu ter uma noção de passado-presente-futuro mais homogênea que a esquerda, o que levou à sua ascensão ao poder através da figura de Bolsonaro.

Embora os seus organizadores não tenham tido a pretensão de dar muitas respostas, o livro traz reflexões a respeito da trajetória do atual presidente do Brasil que nos ajudam a ter uma melhor compreensão de como foi possível que o mesmo chegasse ao poder com tamanha aprovação popular. É certo que um dos propulsores da popularidade de Bolsonaro foi a propagação de fake news. Em um momento em que muitas pessoas passam a acreditar que a Terra é plana, a História dos livros didáticos e dos textos acadêmicos também vira alvo de suspeitas. Youtubers e outros produtores de conteúdo na Internet reivindicam para si a posse de uma “verdadeira história”, muito diferente daquela produzida nas universidades. Rodrigo Motta e Sônia Meneses tratam o problema da pós-verdade e do descrédito dado aos pesquisadores das mais diversas áreas, em especial das Ciências Humanas. Meneses aponta que, até o século XXI, o que reinava no Brasil era o esquecimento; agora, é a negação. A resistência contra o politicamente correto, como e a desqualificação dos pesquisadores através de rótulos como “comunista” por parte de movimentos de direita, como mostra também Roberto Vecchi, fez com que muitos desconfiassem dos resultados das pesquisas destes profissionais. Para diminuir tal problema, Motta sugere que reafirmemos princípios da historiografia moderna de forma crítica, sem cairmos na crença da pura objetividade científica, mas buscando produzir trabalhos acadêmicos e de divulgação científica que sejam guiados por imperativos cívicos, éticos e críticos.

A desconfiança em relação ao conhecimento acadêmico não só está presente entre eleitores de Bolsonaro, como é incentivada pelo próprio presidente desde sempre. Como mostra Rodrigo Perez, a preferência da memória e do testemunho de pessoas que dizem que “não era tão ruim” em detrimento da história pode fazer com que a percepção da violência da ditadura brasileira seja abrandada. Ao determinar que o Golpe de 1964 fosse comemorado, Bolsonaro contribuiu para este negacionismo, atualizando o discurso sobre o período da ditadura e transformando-o em um passado mítico ou utópico, de acordo com Caroline Bauer. Aliás, foi justamente através de discursos que Bolsonaro fez a sua fama, já que nenhum dos seus projetos foi aprovado na Câmara. Em suas falas, o atual presidente muitas vezes citou a ditadura, tratando a democracia que a sucedeu como uma espécie de decadência, um período no qual a corrupção e a degradação moral tomaram conta do país. Segundo Daniel Silva, “para Bolsonaro, 1964 é um pretérito imperfeito, passado que não passou, ponto de partida constante a partir do qual ele se movimentava politicamente” (SILVA, 2020, p. 208).

Muitas ideias defendidas pela extrema-direta, por Bolsonaro e seus filhos vêm não apenas de uma memória distorcida em relação ao período da ditadura, mas também de uma lógica conspiratória. Julio Bentivoglio e Thiago Brito trazem à tona esta questão, indicando nas falas do presidente o combate a inimigos imaginários como o comunismo do PT, o marxismo cultural e a ideologia de gênero. Inimigos estes que, em sua lógica, devem ser não apenas combatidos, como também eliminados, já que era esta a principal vantagem da ditadura, de acordo com os discursos de Bolsonaro: a possibilidade de eliminação do inimigo, como bem apontou Daniel Faria. Também a obra do “inimigo” deve ser eliminada: como qualquer política de cunho social que tenha sido realizada pelo governo do PT nos anos anteriores é vista pelo presidente como privilégios dados a certos grupos, como mulheres, negros e os mais pobres, as igualdades são agravadas durante seu governo. A negação das bases patriarcais do Estado pela extrema-direita e a manutenção destas desigualdades é tema de reflexão do capítulo escrito por Géssica Guimarães e Amanda Costa.

Outro ponto fundamental para a compreensão da lógica bolsonarista é a religião, especialmente a das igrejas evangélicas neopentecostais, assunto muito bem abordado por Sérgio da Mata e Maria Inés Mudrovcic. No Brasil, um país de maioria cristã, os intelectuais não podem ignorar a influência da religião em todos os âmbitos da sociedade, mesmo naqueles considerados laicos, como a administração do Estado. É muito difícil que a historiografia, da forma como está tradicionalmente estruturada, consiga abranger a complexidade das crenças dos milhares de eleitores evangélicos de Bolsonaro. Para tentar amenizar este problema, cada um dos autores supracitados dá uma sugestão: para Da Mata, há que se investir nos cursos de Ciência da Religião, para que os assuntos teológicos não fiquem restritos ao âmbito das igrejas e seminários; já para Mudrovcic, é preciso que os historiadores incorporem outras metodologias, consideradas subalternas, em seu metier, pois assim talvez seja possível neutralizar os aspectos iluministas e eurocêntricos nos quais a disciplina histórica foi consolidada.

As eleições de 2018 foram impactantes na vida da maioria dos brasileiros, não apenas da maneira que normalmente o é – preocupações econômicas e sociais que são suscitadas em todo período eleitoral – mas também de uma forma afetiva, emocional. Não é de se admirar que alguns dos livros mais vendidos nos últimos anos tivessem temas relacionados à política atual. Em 2018, um dos livros mais vendidos na Amazon foi Como As Democracias Morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, que analisa as tendências antidemocráticas que levaram Trump ao poder. Em 2019, o livro Sobre o Autoritarismo Brasileiro, da historiadora Lilia Schwarcz, esteve também entre os best-sellers. Nele, a autora analisa as raízes profundas das desigualdades que ainda se fazem presentes no país, como o machismo, o racismo e a intolerância. Acredito que Do Fake ao Fato vem fazer enriquecer esta sequência, ajudando-nos a refletir sobre nossa história presente em 2020.

Assim, desatualizar Bolsonaro implica em dissecar suas falas e atitudes de modo a expor a ideia de passado que fundamenta o seu pensamento e é projetada em seu futuro. Da mesma forma, a mobilização de notícias falsas e inimigos imaginários deve ser levada em conta pelos historiadores, já que demonstraram possuir uma grande influência na forma de fazer política do atual governo. Do Fake ao Fato vem firmar um compromisso ético dos historiadores com a democracia, a justiça social e os direitos humanos, ao fornecer ferramentas para que possamos compreender nosso tempo, especialmente aos historiadores em formação ou àqueles que estão em busca de transformar o seu campo de estudos.

 

 

 


REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Valdei; PEREIRA, Mateus. Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI. 1ª edição. Mariana: Editora SBTHH, 2018.

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução de Renato Aguiar. 1ª edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

 

 

 


Créditos na imagem: Capa do livro Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro. Vitória: Editora Milfontes, 2020, 230 p.

 

 

 

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