O fazer artístico apresenta-se de formas diversas material e conceitualmente. É o terreno das multiplicidades. Cada elemento da obra dialoga, invariavelmente, com ideários e com valores a ela contemporâneos, flexiona disposições inatuais, bem como se projeta junto à trajetória da ou do artista. Imagine, agora, acordar e decidir que precisa encontrar um modo de se encontrar enquanto indivíduo social, enquanto um ser-no-mundo. Mais do que isso: você precisa se apresentar para uma pessoa, para um público ou para uma audiência. Como você o faria? É provável que frases como “trabalho com isso”, “estudo tal coisa” e “sou filha/amiga de fulano” sejam as primeiras respostas dadas. Tirando estes fatores, mais corriqueiros, quem é você? Você saberia dizer? Ou a identidade seria uma dimensão que condiciona a diferença?
Esta é a questão posta por Hélio Oiticica (1937-1980) na obra Parangolés. Oiticica nasceu no Rio de Janeiro e trabalhou com performances, com pinturas e com esculturas. Tendo recebido a sua formação inicial como autodidata em casa, o artista ingressou no curso de pintura e de desenho de Ivan Serpa, que, então, era realizado no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM – RJ), onde iniciou a sua produção textual. Nos anos seguintes, participou ativamente do chamado movimento concretista, sendo integrante do importante Grupo Frente junto a Ivan Serpa, Lygia Clark e Lygia Pape. O concretismo, que emerge na década de 1950, tinha como objetivo criar uma nova linguagem artística, não distinguindo forma e conteúdo; dando importância central à organização da visualidade da obra. O seu desenvolvimento na área das Artes Plásticas permitiu que as suas obras explorassem, além dos planos e das cores, elementos como o som e o silêncio, os volumes, com cenografias e com materialidades bastante diversificadas e plurais, tendo uma predileção por trabalhar com materiais não convencionais.
Dentre os preceitos concretistas podemos destacar a universalidade da arte e a ideia da disposição espiritual da obra em sua projeção ante a sua realização de fato. A arte de Oiticica é descrita, muitas vezes, como experimentos que pedem pela participação ativa do público na busca pela fusão entre arte e vida. A presença de formas textuais como poemas e como elaborações teóricas é, também, marcante na trajetória do artista; sendo ele também um pensador da arte. Parangolés é uma obra que emerge de uma situação diretamente ligada a movimentos de ordem social e intelectual. Ela apresenta-se como uma capa colorida com textos e com fotos que é vestida por uma pessoa, propondo-se a gerar uma experiência artística multissensorial: a obra como ação do público. Hélio Oiticica começou a frequentar a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira em 1964, e a partir das suas vivências adquiridas e compartilhadas por meio da música, da dança, das formas de expressão corporal e do(s) próprio(s) tempo(s) e do próprio(s) espaço(s) em que se situava a Escola – o Morro da Mangueira, comunidade carioca cuja vida cultural é bastante marcante, singular e plural. A criação da obra é fruto deste período de vivências na Mangueira, bem como das suas pesquisas em arte e em linguagem iniciadas no MAM, sendo levadas adiante de forma autônoma. Não por acaso, o material inicial de divulgação da obra apresenta diversos integrantes da Escola de Samba, como Nildo e Nininha da Mangueira. A obra estreou na Exposição Opinião 65, e seguiu circulando em outras exibições e em outras performances tanto do Rio quanto do Brasil afora.
Os Parangolés permitiam ao artista se expressar da forma como se conectava melhor à sua presença individual enquanto sujeito existindo no mundo. Para Hélio, as suas obras tornariam o seu ser inteligível; cabendo ao espectador conhecê-lo através das obras. Nunca de maneira definitiva, até porque não era um essencialista, mas alguém que caminhava pela invenção e pelo inventar-se, além do se deixar ser percebido pela invenção de outrem.
Para Hélio Oiticica também não era fácil definir-se para se apresentar. Via-se, de fato, como uma invenção e, se assim o era, não saberia o porquê de ser uma invenção. Ainda assim viu na invenção a capacidade de concreção de outra invenção, isto é, o ser humano artista que dá vida e sentido (multiforme) à sua arte. Não foi por acaso que o artista carioca se deslocou pelo âmbito das multiplicidades. Enquanto um tecelão das multiplicidades também elegeu inventores e invenções para se conjugarem a sua inventio. São inúmeras as referências que tece em sua obra, em um jogo apropriativo potente, que conduz a sua produção e a sua própria (auto)crítica de arte, já que como inventor também era versado nas artes da desconstrução. A obra de Hélio é bastante plural, com referências que caminham por diferentes campos de conhecimento. Mais do que afinidades ou um programa estabelecido, a proposta da arte da invenção demandou o experimentalismo. Hélio, em um gesto deleuziano, autor com quem também dialoga, faz ver elementos estético-filosóficos da tradição de pensamento ocidental no modo da torção, tornando o seu experimentalismo artístico uma maneira de extrair dos seus pares elementos apenas contidos em seu vislumbre. Não por acaso dialoga com Meliévitch, Bergson, Cage, Deleuze, Artaud e, sobretudo, Nietzsche, objeto desta análise. São ideias, conceitos e categorias, em leituras fragmentárias, que não são apenas adequadas ao seu fazer artístico, como num receituário. Mas uma combinatória múltipla que o faz valorizar o corpo, a imanência, o suprasensorial, o experimento e, com ênfase, a invenção (BRAGA, 2007).
As referências à Nietzsche são diretas em suas reflexões, sendo que são tomadas em modo de apropriação artística, funcionando não apenas como orientação teórica, mas deslocando-se pelo próprio fazer do artista. É conhecido o seu débito para com esse pensamento, como quando fez a elegia de Assim falou Zaratustra, que segundo ele era “um dos maiores livros já escritos”. Continuemos com a sua apreciação das ideias do filósofo: “Aí está Nietzsche em toda a sua genialidade! Sua influência na arte de hoje é clara. Nutro por ele a mais profunda admiração; foi um grande gênio”. Da filosofia nietzschiana Oiticica se vale da noção de impermanência, daquilo que é finito e incrustrado na própria experiência do mundo, o que movimenta um fluxo eterno por linhas vazantes e desconcertantes, que se direcionam e são direcionadas para o corpo, não havendo prefiguração, logicismo e metafísica. Esse fluir eterno retorna, sendo o eterno retorno por qual o artista brasileiro tanto se interessa, pois essa é a condição mesma para a aproximação com um mundo do vir-a-ser como o próprio ser. Uma repetição (auto)movimentadora e recriadora, que se inventa e se reinventa. Não há finalidade, não há intenção posta em modo de anterioridade, dado que o virtual se realiza no atual, bem na leitura que Deleuze faz do filósofo de Röcken, e que o artista plástico conhecia muito bem. Nietzsche e a filosofia (1962), escrito por Deleuze, era uma referência para Hélio Oiticica.
Voltando aos Parangolés, obra que tem a assinatura subterrânea de Nietzsche. Propositalmente contraditório, o título da obra remete a algo que, na atribuição mais popular de significados, não leva a nada; não produz nada. Uma conversa sem pé nem cabeça, como diria o saber popular. Uma conversa desinteressante. A intenção da obra repousa, entretanto, na noção de “estandartes”, de “tendas” e de “capas”, devido a sua origem enquanto indumentária a ser utilizada em desfiles de samba. A obra consiste na experiência de vestir a peça de tecido e se movimentar dentro e através dela, sentir-se livre e seguir intuitivamente os movimentos indicados pelo próprio corpo e pela própria mente. Assim, o tecido ou o material dos quais eram feitos os parangolés não eram apenas para serem vestidos e exibidos; eram experiência. É importante lembrar que a obra pode ser realizada tanto individualmente quanto coletivamente. A experiência de vestir-se é uma; a de ver o outro se vestir é outra. Da mesma forma, o vestir-se simultaneamente a alguém carrega outra singularidade. O vestir-se enquanto categoria-movimento, como um gesto de existencialidade, está de acordo com a dinâmica do eterno retorno. Trata-se de uma construção de, nas palavras do próprio artista, multiexperiências. Isso nos faz lembrar Netwyorkaises de Oiticica, que era uma pasta de recortes que o artista plástico bricolava as principais referências teórico-práticas que orientavam a sua criação e a sua invenção. Nela há um dos fragmentos póstumos de Nietzsche que esclarece esse movimento de transposição desta filosofia para as artes plásticas, além de informar conceitualmente não só a dinâmica dos Parangolés, mas de parte significativa da sua produção, que se desloca por direções diversas ao longo dos anos. Aqui estaria a percepção de Oiticica sobre o eterno retorno nietzschiano, caracterizado pelos parangolés, como experimentalismo puro, muito mais que o fomento de uma cosmogonia.
Em um tempo infinito, cada combinação possível estaria alguma vez alcançada; mais ainda: estaria alcançada infinitas vezes. E como entre cada combinação e seu próximo retorno todas as combinações ainda possíveis teriam de estar transcorridas e cada uma dessas combinações condiciona a sequência inteira das combinações da mesma série, com isso estaria provado um curso circular de séries absolutamente idênticas: o mundo como curso circular que infinitas vezes já se repetiu e que joga seu jogo in infinitum (NIETZSCHE, 1983, p. 396).
O corpo se torna o suporte da obra e há a incorporação da obra no corpo e do corpo na obra. Hélio se arrisca, ainda, numa segunda conceituação: in-corporação. Algo como a interação profunda entre um e outro no e a partir do existir; numa e noutra invenção. Corpo e mente são acionados num esforço para experimentar a própria existência a partir de movimentos a princípio sem norte. O termo parangolé, no presente, não deixou de ser remetido como algo distante do inteligível e da plena compreensão. A escolha do termo como título da obra por Oiticica desenha bem o caminho pretendido pelo artista: Parangolés é uma obra que só existe se a pessoa a inventar. O título, que a princípio poderia representar uma contradição frente o sentido do trabalho de Oiticica, é apenas o início do caminho. Em Anotações sobre o Parangolé, Hélio Oiticica conceituou, em um esforço de filosofia da arte, as dimensões desta sua representativa obra, em que se pode ver todo um vocabulário nietzschiano envolvido, começando pelas ideias de movimento e de dança, que se remete ao dionisíaco do filósofo alemão, que não seria outra coisa do que a disposição à desmesura, ao despropósito, ao sem finalidade, ao movimento em si, ao desregramento; o próprio eterno vir a ser. Mas fica patente o uso do conceito de transmutação, fundamento dos mais significativos da filosofia de Nietzsche, conceituada em Assim falou Zaratustra, livro que Oiticica tanto admirava, e que investe na recursa dos valores tomados como verdadeiros, como dicotômicos, como irreversíveis, como maniqueístas e como negadores do corpo e dos prazeres afirmativos. Interessante que a proposição filosófica se reverte no movimento e na dinâmica do parangolé. O parangolé em ação, em performance, em funcionamento, em desvelamento é a própria transmutação, que se expressa pelo corpo, pela dança, pelo não direcionado, pela multiplicidade. Digamos que Hélio Oiticica criou, ou inventou, um conceito-movimento, plástico. Vejamos, então, a definição prático-conceitual dirigida pelo artista brasileiro:
o espectador ‘veste’ a capa, que se constitui de camadas de panos de cor que se revelam à medida que este se movimenta correndo ou dançando. A obra requer aí a participação corporal direta; além de revestir o corpo, pede que este se movimente, que dance, em última análise. O próprio ‘ato de vestir’ a obra já implica uma transmutação expressivo-corporal do espectador, característica da dança, sua primeira condição” (OITICICA, 1986, p. 70).
Se estou apenas me movimentando sem a pressão de ter de ser algo em específico, minha movimentação se torna livre, desimpedida. Me liberto de todas as conceituações identitárias da existência para apenas existir sem a necessidade de me (auto)conceituar.
Os Parangolés de Hélio Oiticica são representações do ser. Cada pessoa que se dispuser a realizar a obra estará desinibida o bastante para apenas se movimentar como bem entender. Não será possível imitar, exatamente, como se movimentam as outras pessoas. E esta é a definição do ser para o artista: a da liberdade frente à aniquilação do indivíduo e a da autopercepção enquanto invenção do mundo. É um movimento transgressor e transvalorativo.
REFERÊNCIAS:
BRAGA, Paula Priscila. A trama da terra que treme: multiplicidade em Hélio Oiticica. Tese (Doutorado em Filosofia), Programa de Pós-graduação em Filosofia, FFLCH/USP, 2007.
NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. Gerard LEBRUN (org.), Rubens Rodrigues Torres Filho (trad.). 3a edição. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
OITICICA, Hélio. Notas sem título e sem data, AHO 0279.sd e PHO 0279/55.
OITICICA, Hélio. Aspiro ao Grande Labirinto. Rio de Janeiro, Rocco, 1986.
Créditos na imagem: Hélio Oiticica, Parangolé P4 Cape 1, 1964. Fotografia por Sergio Zalis. Disponível em: https://www.meer.com/en/10500-helio-oiticica-propositions
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