Uma nova onda de questionamentos e derrubadas de monumentos cresce no mundo ocidental em plena pandemia, motivada pelos protestos antirracistas nos EUA pela morte de George Floyd. Manifestantes questionam, principalmente, velhos personagens colonialistas, no geral, defensores da escravidão, traficantes de escravos ou conquistadores genocidas. As polêmicas se sucedem enquanto historiadores, jornalistas, críticos e artistas se pronunciam. Laurentino Gomes se manifesta no Twitter, Elio Gaspari no Globo, além historiadores como Amílcar Araújo, Carolina Bauer e muitos outros, nas redes sociais, blogs e jornais, fazem a defesa ou chancela da ira iconoclasta.
Algumas pessoas chegaram a invocar a ânsia das guerras religiosas que destruíram imagens na era moderna, ou mesmo as ondas revolucionárias do século XIX e XX para tentar compreender o momento violento que vivemos durante a pandemia. Até nome a onda de questionamentos tem, o Urban fallism (em português bruto “derrubacionismo urbano”), como chamou atenção na Folha de São Paulo, a arquiteta Gisele Beiguelman.
Numa primeira aproximação, parece haver dois lados na questão, até mesmo entre historiadores, cada qual mobilizando diversas éticas da memória: a defesa da história como coisa do passado, segundo o qual deve-se manter as estátuas no lugar e/ou usá-las de maneira crítica; ou deve-se derrubar a todas as imagens do passado colonial genocida, e construir na praça pública uma nova história a partir de outras memórias.
Tendo a achar que que há mais lados da questão do que poderíamos supor e ainda que cada figura caída tenha a dizer algo diferente sobre o que está acontecendo, proponho pensar tais atos de iconoclastia a partir de alguns dos seus interessados. Pode ser útil fazê-lo apesar de algumas generalizações implicadas.
Da perspectiva dos historiadores-professores
Pessoas como Gomes e Gaspari, destilando ressentimento, parecem contar com uma concepção documental sobre as estátuas, como se fossem vestígios de sociedades passadas, contudo, eles não estão sozinhos nessa perspectiva. Os próprios historiadores também se dividiram entre uma abordagem patrimonial e preservacionista de vestígios e o compromisso ético contra a memória racista e genocida que está celebrada nos monumentos atacados. Todo historiador sabe que o tipo de monumento que está sendo questionado é uma forma comemorativa, ou seja, trata-se de algo que foi enraizado na praça pública para ativar propositalmente a memória comunitária.
Geralmente promovido pelo estado, o monumento celebra intencionalmente o passado dos “donos” do poder. Trata-se de um objeto que conta uma história, que serve para lembrar à comunidade na qual foi inserido quem são seus ancestrais e quais os seus valores. Assim tem sido entre nós desde nossa primeira escultura pública de renome no Brasil, a estátua Equestre de D. Pedro I, inaugurada no Rio de Janeiro em 1862. Os heróis do passado frequentemente foram racistas, brancos, homens e colonialistas, o que significa que suas estátuas carregam estes valores. Hoje não se poderia mais erguer uma estátua do destruidor de indígenas e quilombos Domingos Jorge Velho – embora não duvide de que atual onda autoritária arriscasse fazê-lo –, sem que isso cause, no mínimo, alguma comoção pública, mas a estátua erguida no passado e que ainda resta entre nós parece ter a desculpa de pertencer ao seu tempo de criação.
Para historiadores cria-se uma tensão. Eles sabem que há diferença entre monumento, vestígio e história. Sabem também que as estátuas são registros de uma forma racista e genocida de compreender e contar o passado. Sabem que história é o produto da operação de transformar vestígios em fonte histórica por meio da crítica e da narrativa metodicamente instruídas, que ela não se confunde com o monumento da memória genocida ou o vestígio no qual essa memória pode ser encarnada. Sabem, portanto, que embora uma estátua seja um monumento, ela se torna, com o tempo, vestígio de seu tempo de concepção e hoje poderíamos – a meu ver não em paz – olhar essas figuras que restam do passado como sinal do mundo histórico que as erigiu. Aqui surge um problema: como frequentemente os historiadores têm apreço pela proteção de vestígios, embora tendam a achar necessário a derrubada da celebração racista, incomodam-se com a destruição patrimonial.
Por isso se dividem se debatem proteção, crítica e chancela iconoclasta. Os que levam a crítica ao limite necessário – ou além dele – são entusiastas da derrubada dos “heróis” racistas no passado, justamente porque o racismo – questão fulcral atual junto a desigualdade social – não é desculpável. O historiador/professor, assim, iconoclasta das memórias e dos mitos do poder sobe ao trono do juiz do passado que está localizado na praça pública, e, pagando o preço da destruição patrimonial, celebra o crepúsculo dos perpetradores de massacres de africanos, indígenas e todos os marginalizados gerados pela expansão colonial europeia e sua descendência. Mais do que vestígios, as estátuas são celebrações que podem ser mudadas ou mesmo descartadas se elas atentam contra a diversidade e os direitos humanos.
Da perspectiva dos manifestantes
Tais questões, pelo menos da forma apontada acima, não existem no espaço público. Está muito claro para os grupos sociais que derrubam uma escultura pública que se o fazem é porque ela não aponta para o passado. Aquele que a derruba retoma a mais velha fórmula da iconoclastia judaico-cristã, quando no livro do Êxodos, tomado de ira, Moisés quebrou o Bezerro de Ouro após sua decida do Monte Sinai. Derrubar estátuas é reconhecê-las como ídolos, ou “falsos deuses”. Os manifestantes transformam essas figuras, as quais deixam de ser imagens dos “pais fundadores”, seja este D. Pedro, Anhanguera, Jorge Velho etc., para se tornarem ídolos com outras qualidades: racistas, genocidas, traficantes, assassinos etc. Os manifestantes têm demandas a acertar com o poder instituído e a atual ordem social, principalmente quando estes descendem diretamente do poder racista que no passado ergueu as estátuas que hoje querem derrubar. O poder instituído, hoje, estende sua proteção jurídica a estes monumentos e garante sua sobrevivência independente dos valores que, em parte, eles sustentam.
Contudo, todo iconoclasta traz de volta os defensores das imagens derrubadas. Para cada ídolo caído, haverá aquele para quem a estátua era (é) uma imagem de um antepassado real e presente. Na cabeça dos iconófilos, que os defensores dos monumentos caídos, os manifestantes são vândalos, foras-da-lei, arruaceiros, sem consciência histórica, ignorantes, marginais, irracionais, turba, massa acéfala etc.. Perceba-se que segundo o ponto de vista ético de cada grupo social, a posição do manifestante oscila entre protesto justo e vandalismo. O elo comum entre ambos é o fato de que a estátua não é um objeto morto, mas um ancestral (infelizmente) comum que oscila entre ser aceito e ser negado.
Se tal ideia procede, o que incomoda os iconoclastas é que a presença das estátuas não é uma imagem dos líderes de antes, mas dos racistas de agora que ignoram as necessidades e os massacres contemporâneos das populações subalternas. Seja seguindo o movimento Black Lives Matter (Vidas negras importam) e defendendo George Floyd; derrubando o traficante de escravos Edward Colsnton, na Inglaterra; protestando contra a queda do Menino Miguel nas “torres Gêmeas” do Recife; ou jogando tinta vermelha no Monumento às Bandeiras, em São Paulo, afrodescendentes, indígenas e outros sabem que as esculturas não são o passado no sentido histórico-historiográfico do termo, mas sim ancestrais vivos do presente. Elas agenciam a ira de sociedades desiguais e racistas, nas quais frequentemente a desigualdade advém do racismo.
Quando um homem decide proteger o monumento de Antônio Vieira, em Lisboa, ou Churchill, na Inglaterra, é porque aquelas são imagens vivas de ancestrais, cuja serena calma da população que até então a ignorava sempre foi a chancela de sua presença na praça. As estátuas estão vivas e visíveis toda vez que são encaradas como ancestrais – desejados ou indesejados – de uma comunidade. Para estas pessoas não existe confusão entre vestígio, monumento e história. Uma escultura pública pode ter para diferentes grupos sociais diferentes estatutos. As comunidades as tomam como outra forma de passado na qual frequentemente aquilo que os historiadores chamam de vestígios, monumentos, documentos e ancestral se mesclam no mesmo campo de significados. Precisamos ouvir este campo comum, entender o sentido que a presença física das estátuas tem para uma comunidade, para entender porquê e como elas são derrubadas ou protegidas. O historiador/professor só compreende isso quando sai do etnocentrismo disciplinar e ouve os sujeitos.
Da perspectiva do debate público na imprensa
De onde voltamos aos comentadores e ao debate público. Realmente estamos ouvindo os manifestantes? Se os iconófilos que vão às ruas proteger suas estátuas acreditam que elas devem ser mantidas, aqueles que as derrubam deixam claro que não querem olhar para os genocidas no alto dos pedestais. Para ambos a questão não é de polêmica, mas sim de qual ação se deve tomar. Mas existe polêmica e debate na praça pública para além dos próprios atos de ira dos manifestantes.
O debate ganhou a praça na imprensa, no Twitter, facebook, blogs, na TV, nos jornais, etc.. Entre jornalistas, críticos da cultura, historiadores e outros, os defensores dos monumentos dividem-se entre os que querem as estátuas de racistas no lugar em que estão – lembremos de Donald Trump elogiando a beleza das figuras dos Confederados –; aqueles que defendem que sejam mantidas e uma história crítica seja montada para elas; e aqueles que acham que elas devem ser sujeitas a uma nova cenografia, a uma nova apresentação.
Já os que são a favor das derrubadas também divergem. Muitos acham que os monumentos devem ser definitivamente destruídos, enquanto outros acreditam que seu deslocamento seria mais útil, no sentido de que os monumentos devem ser retirados da praça e inseridas em museus ou parques nos quais poderiam ser apropriadas de formas diferentes. Entre os “derrubacionistas” (com o perdão pelo neologismo), comentadores em jornais como Folha de São Paulo, Globo e outros jornais, falam do assunto, frequentemente, a partir de pontos de vista demasiado exteriores aos próprios eventos e ressaltam com frequência metáforas como a invisibilidade dos monumentos. Quando algo é invisível o é para alguém. Então pergunto: para quem as esculturas seriam invisíveis?
Parece ser consenso que os atuais acontecimentos ativaram entre nós o debate sobre a memória colonial – no Brasil ainda muito fraco – e que as derrubadas das estátuas é uma forma de fazer ver uma questão importante. A metáfora da invisibilidade dos monumentos aqui é comum e derrubar uma figura racista é uma forma de fazer a população vê-la de outra forma. Mas quem vê algo que via sempre e não notava parece ter mais um problema de dislexia ou de cegueira.
Há uma armadilha nessa forma de compreender a coisa. Para quem seria invisível a estátua de um traficante de escravos, de um general confederado ou de um Domingos Jorge Velho? Talvez para pessoas que naturalizaram sua presença no espaço público, mas para pessoas negras e indígenas ou para os movimentos negros e indígenas dos EUA e Brasil elas são incrivelmente visíveis e desrespeitosas. Há décadas tais movimentos, junto aos coletivos mais recentes chamam atenção à história genocida que estes monumentos públicos celebram e exigem uma contestação da história na praça pública. A maioria das pessoas é que sempre achou tais questões menores, porque, para elas, as estátuas seriam mudas. Provavelmente sempre foram vistas, mas não a partir das narrativas racistas nelas contidas ou projetadas.
Os movimentos sociais pedem a negociação desses artefatos há muito tempo. Para muita gente trata-se de imagens do passado que não passou, uma vez que o racismo continua vigente. Não se trata de invisibilidade; as expressões mais justas podem ser cegueira e surdez de artistas, intelectuais e outros que apenas agora, quando as estátuas vão ao chão ou são sujeitas a alguma forma de violência, finalmente, percebem que elas incomodam seriamente alguém. Se uma escultura caiu hoje, muito provavelmente, já existe alguma reclamação contra ela. Mais provavelmente muita reclamação. Apenas não se queria ouvir.
É possível a perspectiva das estátuas?
Finalmente, a pobre estátua está lascada e destruída, afogada ou enforcada, alquebrada e/ou exilada. A vida que foi lhe conferida no ato de sua morte alerta para a força violenta do protesto. Como no caso de Moisés, a iconoclastia antirracista é um conjunto de atos de ira. O racismo finalmente irrompe no véu da cegueira e pode-se combatê-lo. O protesto é um grito que exige ser ouvido, clamando por nova negociação, pela reformulação das formas públicas de história e memória.
Após todos estes pontos de vistas, observados de maneira bem genérica aqui, voltemos aos próprios artefatos, às esculturas. Da perspectiva delas parece que nada pode ser dito. Mas existe algo que todo iconoclasta sabe: não se mata imagens, mas apenas ao seu corpo físico. O próprio Bezerro de Ouro sobreviveu na narrativa bíblica que conta sua destruição no Êxodos. Ele volta à vida toda vez que sua história é contada e arrisca trazer de volta o culto que o erigiu.
Por isso o manifestante antirracista é vigilante. Ele sabe que as imagens racistas sobrevivem à queda das estátuas. Se existe o ponto de vista da estátua é o da ressurreição de sua imagem –infelizmente, neste caso racista – em um novo corpo. E isso só pode ser evitado por uma outra negociação da história e da memória. A economia pública de passado que existe entre nós, claramente, não tem sido suficiente.
Créditos na imagem: local onde estava a estátua do traficante de escravizados Edward Colston, em Bristol, Inglaterra. O vazio do “herói”, acompanhado do nome do Black Lives Matter, se acentua pela parte do pedestal jogado na praça. Fonte: EDWARD Colston statue: Bristol faces up to legacy of the man who helped buid it. The Times, 09 junho 2020. Disponível em: https://www.thetimes.co.uk/article/edward-colston-statue-bristol-faces-up-to-legacy-of-the-man-who-helped-build-it-zndzrdcg3. Acesso em junho de 2020.
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