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Ensaios e opiniões

A doença como espaço do sensível ou Hans Castorp no espelho

Portrait of German author Thomas Mann (1875 - 1955) as he sits at his desk, a piece of paper in one hand and his glasses in the other, New York, New York, 1943. (Photo by Fred Stein Archive/Archive Photos/Getty Images)

 

Já faz um tempo que escrevi para a HH Magazine algumas considerações sobre a pandemia, com ponderações a respeito do caráter temporal e, por assim dizer, narrativo concernente à COVID-19 e todas as suas implicações discursivas, estéticas e políticas. Recentemente, lembrei-me das impressionantes páginas do grande romance de Thomas Mann, A Montanha Mágica, publicado em 1924, em específico do choque sofrido por Hans Castorp diante da ‘dor do outro’ e, por que não dizer, do interior do corpo, bem como de seus sons, seu espaço sensível: o choque oriundo da entrada no mundo ‘elevado’, distante e atemporal da doença:

Mas uma tosse como essa nunca se viu, pelo menos eu não tinha ideia de que existisse uma coisa dessas. Já não é uma tosse viva. Não é seca, mas também não se pode chamar de solta.  Não encontro, nem de longe, a palavra adequada. É como se se descortinasse o interior do homem, fosse possível olhá-lo de dentro, e tudo não passasse de lodo e pântano…” (MANN, 2016, p. 24)

 

“Não encontro, nem de longe, a palavra adequada”, pondera o personagem. As cenas de horror que despontam diariamente nas capas dos jornais, o dilema poderoso da dor causada pela COVID e, claro, suas inúmeras imagens nos fazem lembrar o famoso e brilhante ensaio de Susan Sontag, A doença como metáfora (1978), no qual o personagem do romance de Thomas Mann figuraria como a lancinante alucinação melancólica do “ser doente”: a metáfora do intelectual, culto e distanciado crítico do social. Não é de espantar que Settembrini, personagem nada entusiasta de Hans Castorp, já alerte para o ridículo de suas ideias, claro, em nome da razão e do esclarecimento. A doença é humilhante, dizia Settembrini. É Hans Castorp, nosso herói, que gostaria, talvez, de desviar a dor, dotar de poder e controle a situação deveras intrusiva do “pneumotórax”. Talvez seja preciso, ainda apostando na linha sensível da compreensão sobre a pandemia, perceber a fundo o espanto de nosso personagem diante dos outros, os moribundos, realidade que ele, mais do que ninguém, passa a atestar:

Era o primeiro moribundus com que Hans Castorp deparava em sua vida, visto os pais e o avô terem morrido, por assim dizer, pelas suas costas. […] Hans Castorp, enquanto se encaminhava para a escada, ainda absorto na reminiscência daquela visão fugaz, tentou involuntariamente imitar os olhos arregalados, significativos e lentos do moribundus. (MANN, 2016, p. 127)

 

Pode-se suspeitar o súbito ato de empatia do personagem, tentando imitar os gestos do doente diante de um ensaio completamente novo perante à sensibilidade novidadeira das doenças respiratórias. Era um horror que custava ser revelado. Era, de fato, pouco conhecido. Nada curioso ver durante o nosso presente como certa apreensão sobre a doença necessita, mais do que nunca, de certa abertura imaginativa, mesmo que nada imaginária. Nada curioso ver como atua o terreno do sensível na política, capaz de derrubar genocidas e devolver empatia, compaixão e o devido luto.

 

 

 


REFERÊNCIAS

SONTAG, Susan. Doença como metáfora/AIDS e suas metáforas. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2007.

MANN, Thomas. A montanha mágica. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2016.

 

 

 


Créditos na imagem: Revista Veja. Retrato do escritor alemão Thomas Mann – 1943 Fred Stein Archive/Archive Photos/Getty Images.

 

 

 


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