HH Magazine
Ensaios e opiniões

Não História: Imagem-Tempo

“O que é então o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei, mas se alguém fizer a pergunta e eu quiser explicar, não sei mais”.A frase de Agostinho, quase todo o tema do livro de Paul Ricoeur

“Tempo e Narrativa”, seria o dilema de cada historiador, para além de qualquer entrevista “fenomenologia do tempo”, como acredita-se. Apesar de contrapor Aristóteles a Agostinho, Kant e Husserl a Bergson, fica claro, principalmente quando seguimos a leitura do livro mencionado ao “Memória, história, esquecimento”, que é inviável uma apreensão fenomenológica do tempo. Suas análises, extensas, sobre o “historial” em Heidegger, por exemplo, acabam por ser conclusivas a respeito: de um lado, ou historiador é quem faz o funeral, quem dispõe do que não tem mais vida, ou ele é o juiz, quem encerra com um julgamento o fato acontecido. Por outro lado, a filosofia de Husserl mostra-se não apenas inconclusiva (devido ao caráter fragmentário de sua obra), mas afeita a toda espécie de aporias. Não se consegue criar o método para a apreensão do ser-em-si do passado, dado que a abordagem da fenomenologia o compreende como uma espécie de coisa, de objeto concreto, que deve ser reconstituído de modo que deva ser apreensível pelos olhos, pelos sentidos. Esta é a armadilha que a filosofia bergsoniana escapa com toda uma outra concepção do que seria o “objeto real”, posteriormente melhor elaborada por Gilles Deleuze com seu conceito de Imagem-tempo.

Em termos bergsonianos, o objeto real reflete-se numa imagem especular tal como no objeto virtual que, por seu lado e ao mesmo tempo, envolve ou reflete o real: há “coalescência” entre os dois. Há formação de uma imagem bifacial, atual e virtual. É como se uma imagem especular, uma foto, um cartão-postal se animassem, ganhassem independência e passassem para o atual, com o risco de a imagem atual voltar ao espelho, retomar lugar no cartão-postal ou na foto, segundo um duplo movimento de liberação e de captura […].

A imagem-cristal, ou a descrição cristalina, tem mesmo duas faces que não se confundem. É que a confusão entre real e imaginário é um simples erro de fato, que não afeta a discernibilidade deles: a confusão só se faz “na cabeça” de alguém. Enquanto a indiscernibilidade constitui uma ilusão objetiva; ela não suprime a distinção das duas faces, mas torna impossível designar um papel e outro, cada face tomando o papel de outra numa relação recíproca, ou de reversibilidade. Com efeito, não há virtual que não se torne atual em relação ao atual, com este se tornando virtual sob esta mesma relação: são um o avesso e um direito perfeitamente reversíveis. São “imagens mútuas”, como diz Bachelard, nas quais se efetua uma troca. A indiscernibilidade do real e do imaginário, ou do presente e do passado, do atual e do virtual, não se produz, portanto, de modo algum, na cabeça ou no espírito, mas é o caráter objetivo de certas imagens existentes, duplas por natureza. (DELEUZE 2007, p. 87-9)

 

A “descrição cristalina” nomeada por Deleuze se refere ao pequeno circuito do virtual ao atual, ou vice-versa, provocada por uma mera imagem que faz revolver camadas cada vez mais vastas da realidade, da memória ou do pensamento. É a mesma provocação, pequena provocação, causada pela madeleine em Proust e que o faz ser um mestre da descrição. Tais dados, mínimos, que se aproximam de nós quase por acaso, nos provocam a necessidade de contar uma história, nos faz ser tomados quase que por uma espécie de nostalgia: imagem bifacial que torna indiscernível o passado e o presente, o virtual e o atual, o real e o imaginário. Daí a impossibilidade fenomenológica ou o estupor de santo Agostinho ao ser questionado a respeito da existência do tempo. O caráter objetivo das imagens aparece antes em sua duplicidade do que numa suposta objetividade, quase tatibilidade, ou seja, no sensualismo que Husserl tentou fazer inutilmente ser a marca do “passado enquanto tal”, devidamente submetido ao escrutínio do olho humano como numa grande mesa de anatomia. As imagens-cristal, as imagens-mútuas, ao nos olharem, ao fazer nos sentir olhados por algo até então inanimado – mais um objeto levado à superfície pelo tempo, uma foto, um cartão-postal -, é como o jogo de dados que se apresentam subitamente à consciência. Não podemos saber em certos momentos se somos assaltados, por assim dizer, pela memória, pelo pensamento que temos a respeito de determinada coisa (quando sentimos que tais e quais pensamentos, memórias, etc., não estão adequadamente em seus lugares de costume), ou quando algo não menos concreto, o real e não nosso imaginário, nos apresenta uma outra ordem dos fatos. De qual tempo se trata?, perguntará Agostinho.

O frei não vê o tempo como Aristóteles ou Kant, porque para ele o tempo não está subordinado ao movimento, mas o contrário. Estudar o cinema é fazer pura arqueologia, para além de qualquer demarcações críticas. No trabalho de Deleuze não é a passagem do cinema mudo ao falado, da imagem-tempo para a imagem-movimento que interessa enquanto um tipo específico de história, a do cinema, mas a distinção entre dois modo diversos de se perceber as imagens. A imagem de Agostinho diante do tempo pode ser descrita de acordo com a linguagem cinematográfica utilizada por Deleuze:

 

De repente as situações já não se prolongam em ação e reação, como exigia a imagem-movimento. São puras situações óticas e sonoras, nas quais a personagem não sabe como responder, espaços desativados nos quais ela deixa de sentir e de agir, para partir para a fuga, a perambulação, o vaivém, vagamente indiferente ao que lhe acontece, indecisa sobre o que é preciso fazer. Mas ela ganha em vidência o que perde em ação e reação: ela VÊ, tanto assim que o problema do espectador torna-se “o que há para se ver na imagem?” (e não mais “o que veremos na próxima imagem?”). A situação já não se prolonga em ação por intermédio de afecções. Está cortada de todos os seus prolongamentos, só vale por si mesma, tendo absorvido todas as suas intensidades afetivas, todas suas extensões ativas. Já não é uma situação sensório-motora, mas uma situação puramente ótica e sonora, na qual o vidente substitui o actante: uma “descrição”. (DELEUZE 2007, p. 323)

 

Este o ethos de Proust, por sinal. O esplendor da imagem clássica, a que a fenomenologia em vão tentava colocar como forma perene, se deu num sistema geral de comensurabilidade, de medição, aferição; por isso, seu escravidão ao olho. Entre o intervalo e o todo, sua aporia: não conseguir restituir um com o outro, a busca em vão da materialização do que já se foi. Não por outro motivo a imagem-tempo matou o flash-back, a voz em off, o extracampo: as explicações extrínsecas que tentam encadear Cronos sob a ameaça do Aion. A história do cinema é uma prática dos conceitos. “Uma teoria do cinema não é ‘sobre’ o cinema, mas sobre os conceitos que o cinema suscita, e que eles próprios estão em relação com outros conceitos que correspondem a outras práticas, não tendo a prática dos conceitos em geral qualquer privilégio sobre as demais, da mesma forma que um objeto não tem sobre os outros” (DELEUZE 2006, p. 331-2). Assim, aplicamos seus conceitos em outras práticas como as da historiografia quanto a da literatura ou da filosofia. Bergson, na Evolução Criadora, batiza de ilusão cinematográfica uma ilusão tão antiga quanto os paradoxos de Zenão, o que o afasta da fenomenologia, segundo a qual os efeitos do cinema nos afastam de nossa percepção natural. Teríamos todos um “cinematógrafo interior”, um dispositivo interno acionado seja pela percepção, pela intelecção ou pela linguagem. Trata-se, portanto, de formas de olhar, seja em Husserl ou no historial hedeggeriano, ou nos signos cinematográficos de Bergson e Deleuze.

Por formas de olhar, nos remetemos a François Hartog, que tanto e tão bem escreveu sobre o tema. Em seu Regimes de historicidade, diz que Ulisses não leu santo Agostinho. O primeiro não tinha a noção exata do que seria o ordenamento entre passado, presente e futuro. Quando chora Ítaca não chora por um tempo por vir. Ele tem apenas a distensio, como nomeada no capítulo 28 das Confissões, incapaz de dar atenção à expectativa do tempo vindouro, ou seja, àquilo que dedicamos nossa atenção. O jogo entre attentio e distensio é a tensão que se coloca na história e foi tão bem elaborada por Ricoeur, algo que não se tinha a exata noção nos tempos antigos. A falta de consciência a respeito do porvir, este entendido no sentido mais largo de sua acepção, seria a característica da Antiguidade, o que supostamente faria o ser antigo encarar a história dentro da concepção dos ciclos. Arnaldo Momigliano entrevê uma possível antecipação do que se tornaria a chamada filosofia da história quando diz que o “Império Romano tornou possível escrever história universal” (MOMIGLIANO 1997, p. 166). O historiador italiano gostaria de provar que os filósofos gregos é que pensavam em termos cíclicos e não os historiadores. Seu maior exemplo seria Políbio. Seu modelo de história das constituições, contudo, é o que o faz estacar na afirmativa. Existiria uma clara influência filosófica, ainda que não objetivamente detectável. Como as linhas que dividem os saberes não são deveras claras como se querer na ciência moderna, Políbio foi talvez o maior historiador romano; porém, por esta mesma influência grega que tanto prezava, também foi dublê de filósofo, com o destino particular de ter ficado conhecido mais por suas análises das constituições, ou seja, supostamente sobre as histórias cíclicas, do que propriamente por seu trabalho de historiador. Contudo, à margem de qualquer influência filosófica ou não, a discussão sobre as Constituições era um topos historiográfico desde Heródoto e não especificamente trabalho da filosofia. Pelo contrário, a definição da constituição correta ou ideal foi um trabalho contínuo por parte dos historiadores.

Momigliano consegue concluir que “o progresso ilimitado talvez não seja um conceito grego, mas o progresso ilimitado é um desses conceitos que poucas vezes teve muita importância para os historiadores. O que mais importa é que os historiadores gregos reconheciam um progresso contínuo, ainda que limitado, na esfera da filosofia, da ciência, das artes e das constituições, antes que nas ações morais e políticas comuns” (MOMIGLIANO 1997, p. 171). Políbio, que desempenhou para Cipião Emiliano um papel de Sócrates para Alcebíades, estava ainda com seu amado vinte anos depois contemplando o incêndio de Cartago. “Com lágrimas no olhos, ‘chegando-se a mim e tomando-me a mão’, Cipião disse: ‘É um momento glorioso, Políbio, mas tenho o pressentimento sombrio de que em algum dia a mesma condenação cairá sobre minha própria pátria” (MOMIGLIANO 1997, p. 64). O Império Romano permite o advento de uma história universal, o pressuposto da filosofia da história. Porém, guarda em si mesmo as raízes de sua destruição. O eterno retorno novamente lançará seus fados, talvez não aja solução de continuidade. Esta a imbricação entre espaço de experiência e horizonte de expectativa no mundo helenístico. As duas Guerras Púnicas, o papel de liderança assumido por Roma no Mediterrâneo, fez alargar o “espaço da experiência”, como definido por Koselleck, do historiador romano, do mundo helenístico de um modo geral, ainda que este espaço permanecesse limitado pela natureza. Ainda que os romanos possam ter vislumbrado um “horizonte de expectativas” nunca antes imaginado depois da conquista do norte da África e o domínio sobre os mares, estavam bastante longe da filosofia da história, como apontado acima por Momigliano ou do conhecimento histórico propriamente moderno, como entende Koselleck, ou seja, a partir da distinção do que é o domínio da técnica e o que pertence à natureza.

As categorias temporais formais, acima citadas, são parte da forma de pensar dos antigos gregos. Ainda que, sob essa perspectiva, a história [Historie], como disciplina e investigação (para falarmos como Christian Meier) tenha por objeto tudo o que diz respeito aos homens, ultrapassando, dessa forma, o domínio daquilo que foi mais tarde efetivamente designado como histórico [Geschichtlichen], ela pode muito bem comportar a distinção entre decursos temporais irreversíveis e e períodos de tempo determinados pelo “destino” histórico. De forma implícita, os antigos desenvolveram teoremas sobre determinados lapsos de tempo dentro dos quais era possível pensar a mudança constitucional, ainda que sob circunstâncias já dadas. Trata-se de tempos de qualidade histórica, certamente condicionados pela natureza e que, por conta disso, permanecem ligados a ela, mas cujas estruturas genuínas já avançam em direção ao conhecimento histórico. (KOSELLECK 2006, p. 125-126)

Ulisses pôde, portanto, entrever Agostinho, porém não antecipá-lo. Procede pelo modelo de montagem, decupando as imagens de acordo com suas recordações. É o esquema sensório-motor. Quando chora Ítaca está mais preocupado com as glórias que deixou por lá, com o transcurso ininterrupto do tempo que poderá relegá-las ao esquecimento (distensio), do que propriamente com um futuro que deseja seu, com alguma inevitabilidade histórica a ocorrer no futuro, com de alguma forma intervir nesse presente que transcorre sem parar, intervenção esta entrevista no devir a partir da participação da attentio que se presta ao tempo atual, ou seja, de sua comparação não tanto com o passado que se esvai, mas com o futuro que se anseia. Georges Didi-Huberman rompe com a divisão temporal operada por Deleuze entre imagens do movimento e do tempo. O trabalho de montagem seria algo da mais urgente modernidade, como no Atlas de Warburg ou nas máquinas de guerra construídas com recortes dos mais heterogêneos feito por Brecht em sua vivência no exílio, na guerra. Toda a sua séria chamada de O olho da história é um pouco a apoteose dessas formações de imagens um tanto mais arcaicas, trazendo-as para o agora, para a teoria do cinema – e das imagens – mais atual. Coloca em paridade, em imagens heautônomas, o que parecia em Deleuze pertencer somente às imagens visuais e as sonoras da Imagem-tempo. Mas esta é toda uma máquina de guerra montada por exemplo por Eisenstein: Chaplin e o cineasta russo acabam por ficar nessa primeira parte da história do cinema, sem adquirir, por exemplo, o destaque dado pelo filósofo a Orson Welles, aquele que fabrica “as potências do falso”. De fato, seguindo cronologicamente sua análise, não é o jogo do real e do imaginário, nem a passagem do virtual para o atual e vice-versa, mas o jogo da verdade, do verdadeiro e do falso, que acaba sendo o fim de sua história, seu grand finale. Nada mais compreensível devido ao seu pioneirismo, e que não desmerecem as análises, os personagens e poemas conceituais que cria nos dois volumes dedicados ao cinema. Mas, colocando a máquina de guerra remontada por Didi-Huberman, o trabalho de Ulisses é o de resistência, trabalho militante, guerreiro, e não a jornada dos sonhos, do Orfeu bem sucedido ao final da sua Busca, como em Proust. Em cada situação, ativar uma ordem diferente, uma linguagem apropriada, para se falar sobre o que se busca. Ulisses deve falar com Agostinho.

Na imagem-cristal de Agostinho, a “plasticidade da ordem cristã do tempo na qual presente, passado e futuro articulam-se na eternidade”, como nomeia Hartog (2013, p. 92), rompe com os quadros da historia magistra, compondo “uma tensão para o antes e um ‘fervor de esperança’ voltado para o futuro” (HARTOG 2013, p. 92) que muito faria dever posteriormente a filosofia da história, tanto quanto a experiência moderna de tempo. Na literatura eclesiástica passa-se a escandir as tensões entre o  e o ainda não, um  que corresponde a vinda de Cristo, um ainda não correspondente aos tempos do Apocalipse, à volta de Cristo. Este tempo se dilatou com o passar dos séculos, permitindo o aparecimento da história feita pela Igreja, sempre ocorrida neste entre-tempo que fazia reatualizar a partir de seus rituais. É digno de nota que na época de Lutero o Apocalipse ainda se mostrava deveras presente no cotidiano das pessoas, podendo o fim dos tempos ocorrer hoje, amanhã ou logo mais, como atestam os próprios escritos do ex-monge agostiniano. Depois, uma laicização, uma secularização das palavras, dos conceitos, ocorreu, o que dilatou ainda mais a distância entre o  e o ainda não religiosos, dentro de uma perspectiva de progresso contínuo, fez substituir a Providência pela capacidade humana de intervenção em seu presente. Os dois tempos se tornam ainda mais prementes, a atenção se desdobra sobre a distensão temporal, devido à capacidade humana de intervenção neste mesmo tempo histórico (espaço de experiência) e da imaginação sobre o que isso pode acarretar (horizonte de expectativas). Jogos do verdadeiro e do falso, cinema de Welles, e não confronto do real com o imaginário, bloqueio nas passagens do virtual ao atual.

Tudo isso para falarmos em termos didáticos. Nootempos.

 


Referências

DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007.

HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

KOSELLLECK, Reinhart. Futuro passado: uma contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.

MOMIGLIANO, Arnaldo. Ensayos de historiografía antigua y moderna. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1997.

 

[vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”SOBRE O AUTOR” color=”juicy_pink”][vc_column_text][authorbox authorid = “6”][/authorbox][/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

Related posts

3 anos de Brumadinho, 300 anos de tragédia

Arthur Harder Reis
3 anos ago

O lugar da Teoria da História no Ensino Básico: Um breve apontamento

Vinícius Salvatori Barcelos
2 anos ago

Heliogábalo: Imperador ou Imperatriz?

Lívia de Oliveira Mendes
10 meses ago
Sair da versão mobile