Um dia, numa longa viagem de trem, Sigmund Freud acordou tarde da noite em sua cabine com um súbito solavanco. Ainda com sono, não percebeu que a porta do banheiro se abrira. De repente, se viu atordoado diante de um senhor de pijama e gorro bem na sua frente. Imediatamente, ele pensou: “ele deve ter se enganado de porta e entrou na cabine errada”. Pôs-se de pé para ajudá-lo, quando se deparou com um rosto estranhamente familiar: o senhor ali parado era uma imagem dele mesmo refletida no espelho da porta do banheiro.[1]
Democracia em vertigem (Netflix, 2019) é mais do que um documentário. Dirigido, escrito e produzido por Petra Costa, é uma história íntima. Uma verdadeira obra na estética do mal-estar. De modo que não se trata apenas de uma narrativa dos últimos anos do “Brasil contemporâneo” ou da cena política nacional recente. Creio que guarda potências para figurar, inclusive, como um heterodoxo ensaio de interpretação do Brasil (com tudo o que há de positivo e negativo neste tipo de esforço). Uma história ousada sobre a ponta de um iceberg, ou seja, uma ponta que se situa sobre uma estrutura de proporções geográficas e humanas (em suas muitas dimensões) monumentais e difíceis de abalar. Ousada, porque uma história contada a partir de um ponto de vista familiar, feminino, feminista e extremamente pessoal.
Quando digo familiar, me refiro a mais de um sentido. Primeiro, pois a narrativa é centrada sobre a vida e memória de Petra Costa e sua família. Ela deixa claro, desde o início, estar ciente de seu lugar de fala. Sabe-se branca, rica, privilegiada e “de esquerda” (eleitora do Partido dos Trabalhadores – PT – desde a primeira vez em que votou, em 2002). Isso é tudo muito bem identificado na narrativa. Inclusive, a interpretação é tão pessoal que Costa assumiu como premissa fundamental do documentário a observação de que a “jovem” democracia e ela teriam praticamente a mesma idade (trinta e poucos anos).
Em segundo lugar, é familiar pelo fato de Costa demonstrar sua admiração incondicional pela história de luta e vida de sua família mais imediata: sua mãe e seu pai. Sua mãe, Marília Andrade, cresceu no seio de uma família tradicional e riquíssima da elite branca de Minas Gerais (filha de Gabriel Donato de Andrade – um dos fundadores da Empreiteira Andrade Gutierrez) – e tornou-se militante de esquerda e ferrenha opositora à Ditadura Militar na década de 1960. Viveu na clandestinidade com seu companheiro, Manoel Costa, pai de Petra. Sua prisão, em 1968, a levou ao mesmo presídio em que Dilma Rousseff foi encarcerada e torturada. De modo que há um arco de identificação familiar e feminina entre Petra, sua mãe e a primeira Presidenta Mulher do Brasil também. Além disso, Costa expõe candidamente detalhes da vida de sua família, a origem dos negócios da mesma, e suas opções políticas recentes.
Terceiro, pois acho que o documentário nos oferece elementos para pensar a “vertigem” de Petra ou, como eu prefiro, nosso enorme mal-estar e angústia diante do Brasil. Na realidade, acredito que o documentário nos oferece uma verdadeira experiência estética desses sentimentos.
Comecemos pelo termo “estranhamente familiar”. Estas são traduções possíveis (não as únicas) para Unheimliche. Expressão da língua alemã derivada de Heimliche – aquilo que faz parte do “lar” (Heim). Isto é, o que é confortável, tranquilizante, íntimo, conhecido, enfim: familiar. “Un-heimliche” seria, portanto, a negação (Un, “não”) desse sentimento de familiaridade: qualidade de algo inquietante, arrebatador, estranho/estrangeiro, desconfortável, “infamiliar”. A expressão também possui parentesco com Geheimnis, algo como um “segredo de família” (algo da ordem do privado, da vida íntima), que não deve ser verbalizado nem externado (para não perturbar a ordem doméstica). A expressão Unheimliche traduz uma sensação de algo que é, portanto, “estranhamente familiar” e, por isso mesmo, perturbador num nível íntimo, e que seria equivalente ao “constrangedor” fora do ambiente do “lar” (a esfera pública). Sensação, enfim, de perda do mundo.
Incontáveis filósofos e pensadores trabalharam as propriedades do “estranhamente familiar”, algo que não caberia aqui recuperar.[2] É curioso que não haja uma palavra exata em língua portuguesa para Unheimliche, talvez pela tradição de (con)fusão do público com o privado. De qualquer modo, há tradução possível. Como uma interpretação do nosso mal-estar, o diagnóstico de Democracia em Vertigem nos conduz à perplexidade de Petra, que compartilhamos em maior ou menor escala. Acima de tudo, nos oferece uma história do lado mais sombrio, perverso e perturbador de uma poderosa estrutura e de nossa democracia sobre ela.
É possível dizer que o estranhamente familiar seria o resultado estético do próprio movimento narrativo de Petra, da esperança jovial ao despertar abrupto diante das estruturas que comandam o Brasil. Mas não apenas. A interpretação de Costa nos conduz pelos meandros de suas memórias numa espiral crescente de angústia. Como ela mesmo conclui: “somos uma república de famílias”. Estas oligarquias se mantém, hoje, como nos demais períodos da história do Brasil, como forças que comandam o país (com ou sem democracia). O tom altamente melancólico de sua narrativa coroa o efeito estético do estranhamente familiar. Trata-se também de uma espécie de acerto de contas da diretora consigo mesma e com a família? Talvez. Com a tradicional família brasileira? Bem provável. Mas não fica só nisso.
Por ser apresentado num discurso realmente íntimo pela voz da própria Petra, tudo se torna atraente para quem assiste à corajosa exposição das suas próprias raízes de classe, sua filiação, sua história e, portanto, a história de sua família. Contudo, Democracia em Vertigem foi feito para ser mais do que uma corajosa confissão, acerto de contas ou “autoanálise” de Petra Costa. Ela (a narradora) faz as vezes do “duplo” do espectador. Como tal, o documentário não serve para informar, entreter ou escandalizar quem assiste “de fora”. Ele promove o constrangimento de quem assiste, pois expõe as intimidades de muitos de nós, brasileirxs (por dentro). E, com isso, disseca (inconvenientemente, para alguns) as entranhas das conveniências e conciliações cotidianas; relações promíscuas das oligarquias com o poder público; das donas e donos do poder, das mídias, das empreiteiras, dos empresárixs, dxs magistradxs, dxs políticxs e dos clãs de políticos; do moralismo branco; do jornalismo corporativo, do privilégio atávico; da cultura rasa e do populismo vil; das polícias e dos chicotes; das terras improdutivas, dos latifúndios, do agronegócio; das drogas, dos helicópteros, aeroportos e do nióbio; das armas, das bíblias; dos senhores e senhoras por trás dos assassinatos e genocídios que se arrastam durante os séculos. A exposição é dos problemas na nossa “casa”, na “nossa” família. Não só a família de Petra, mas a dela também, claro.
Petra Costa é extremamente eficiente com a sua trama, entremeando belos e poéticos momentos com imagens fortes e um texto sóbrio e pungente. É preciso louvar o protagonismo das mulheres no documentário. Verdadeiros emblemas de força e resiliência humana, esse é um ponto positivo, urgente e atualíssimo do mesmo. As sensibilidades mobilizadas pelo olhar feminino e feminista de Costa são absolutamente imprescindíveis não apenas para sua narrativa, como para a compreensão do nosso atual estado de coisas. Inclusive, arrisco dizer que, talvez, seja dessa sensibilidade e resiliência que possamos extrair algo que nos ensine a como aprender a resistir com a melancolia que nos acomete.
Alguns marcos cronológicos em que o documentário se apoia são as Jornadas de Junho de 2013 (inspirada pela Primavera Árabe, como Petra situa) e o momento da prisão do ex-Presidente Lula (dia 07 de abril de 2018), em São Bernardo do Campo (SP) – seguido de perto pela eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República, em fins de outubro de 2018. Sem dúvida, a figura do ex-Presidente Lula ocupa um lugar central na narrativa para marcar a experiência pessoal de Petra desde a esperança até o seu avesso completo. Mas apesar das afinidades pessoais e ideológicas da diretora, há crítica ao que era o Partido dos Trabalhadores (até a eleição de Lula, em 2003) e aquilo que o PT se tornou para manter-se no topo do Executivo e no pacto pela governabilidade. De certa forma, a crítica que se apresenta é dela também: autocrítica para o PT engolido pelo monstro que ele mesmo ajudou a criar, se afastando da base para garantir o seu protagonismo no presidencialismo de coalizão.
A narrativa não se apoia exclusivamente sobre estes pontos, claro. E se permite apresentar outros momentos, mas o seu argumento central é que a partir das Jornadas de Junho, associadas ao modo duro como Dilma Rousseff subverteu o modelo “paz e amor” de conciliação atribuído ao seu predecessor, abriu uma espécie de “caixa de Pandora” na “jovem” democracia brasileira. É um argumento frágil, apoiado sobre uma imagem do PT (quase imediatamente associado à democracia “jovem”) como vítima de um golpe. Metáforas como “abalos sísmicos” e “tsunamis” aparecem em momentos estratégicos da narrativa. Evidentemente houve golpe, mas da mítica caixa de Pandora teriam saído todos os males da estrutura familiar patriarcal de modo obtuso, violento e incontrolável que atingiriam (como um golpe) a “jovem” democracia brasileira e o PT? Dificilmente.
De modo que, como a psicanálise nos ensina, apenas através das palavras podemos entender a natureza daquilo que nos assombra. O que não é palavra é sintoma, dizem. Mas as palavras não estão livres dos sintomas. Por isso, procurando no que ela tinha de mais pessoal, de mais confortável e familiar, ela procura meios de compreender como chegou ali; como chegamos ali? Isso é parte do problema. Não se trata, portanto, de uma narrativa objetiva, mas repleta de sintomas. A partir do que foi dito, temos um quadro, sem dúvida incompleto. E o que ficou não-dito? As prisões de Rafael Braga e dos 23 militantes nas manifestações de 2013 e 2014; o assassinato do auxiliar de pedreiro Amarildo Dias de Souza, por agentes da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro; o rompimento das barragens de dejetos de minério de Bento Rodrigues e Brumadinho (ambas em Minas Gerais); a execução da Vereadora do PSOL-RJ Marielle Franco e seu motorista, Anderson Pedro Gomes; a Copa do Mundo do Brasil (2014) e a cruel Lei Antiterrorismo; a disputa presidencial de 2018 (onde foi parar Fernando Haddad?); as “fake news” e a ascensão das direitas ultraconservadoras e do neofascismo no mundo; os escândalos de Belo Monte; os genocídios das populações negras das periferias e das populações originárias; as negociatas do “padrão FIFA” para estádios, hotéis e aeroportos antes, durante e depois da Copa do Mundo e das Olimpíadas (2016); bem como as manifestações e as greves contra o Governo Dilma e sua política de austeridade; a forte oposição ao PT vinda da esquerda etc.
O título em inglês do documentário traz a palavra “edge”. Esta não remete literalmente a uma ideia de uma vertigem, mas de “beirada”, “ponta”, “extremo”, e por vezes, “borda”. O estranhamente familiar advém daquilo de mais íntimo e, mesmo não sendo segredo para ninguém, mas tornou-se, de certo modo, revelado. O mal-estar emerge quando os futuros e promessas de ontem tornam-se presentes assustadores, arrebatadores, cruéis e violentos. A angústia se configura no movimento repetitivo de vai e vem das vozes e violências que não são novos, nem novidades; são nossos velhos conhecidos. Um sentimento de que o tempo não passa. Em meio à desorientação procuramos, como Petra, alguma luz para nos guiar. Por vezes, olhamos “para trás” em busca dos sonhos, dos horizontes e ideias de progresso, justiça, modernização e emancipação. Mas e quando só conseguimos encontrar ruínas? O horror se instala quando as utopias em que acreditamos, e pelas quais nos apaixonamos, tornam-se esqueletos nus. Quando as máscaras modernistas desaparecem, devoradas pelas traças, resta o sentimento de perda do mundo. Sobraram apenas as ossadas daquilo que estava ali o tempo todo, porém velado num pacto mais ou menos íntimo e familiar; meio como tabu ou segredo de família, agora, “inconvenientemente” verbalizado. Como dizia Freud, “O que deveria ficar oculto e se manifestou”. O carnaval acabou.
Democracia em vertigem tem belos momentos. Um exemplo é o paralelo entre a tragédia Júlio César, de William Shakespeare, e o telefonema entre Joesley Batista e o, então, Presidente Michel Temer – assombrado, como Marco Bruto (Brutus), pelo “fantasma” de uma traição. No entanto, algumas das melhores observações estão nas palavras e gestos das “pessoas simples”. Que de tão simples não tiveram seus nomes indicados no documentário. Talvez, como estratégia de preservação daquela liberdade que o anonimato completo proporciona, como observou Dilma Rousseff. Prudência em tempos de polarizações políticas tão violentas. Estas vozes atualizam o poderoso senso comum quando asseveram: “Não acho que existe democracia”; e “Com o PT a gente recebia as migalhas, agora nem as migalhas a gente vai receber mais”. Estas se destacam como algumas das observações de pessoas que seguem no jogo que lhes é estranhamente familiar, essa tal de “jovem” democracia, estruturada sobre alicerces muito, muito antigos.
Petra representa uma juventude de esquerda apaixonada por seus sonhos e ideais. Seu partido agora seria um coração partido, como dizia o saudoso Cazuza,[3] e vertiginosamente desorientado (como todos nós) diante da angústia? Diante desse estranho espelho, a frase destacada pela diretora no discurso de posse de Lula (em primeiro de janeiro de 2003) mostra sua dimensão mais provocadora se deslocada para o final da narrativa. Talvez, “o verdadeiro encontro do Brasil consigo mesmo” não estivesse lá, com Lula em 2003, mas diante de nós, com a melancólica Petra, em 2019. Esse (re)encontro revela coisas extremamente desagradáveis e estranhamente familiares a respeito de nós mesmos, especialmente para as esquerdas: aprender a lidar com a realidade, e não a denegá-la, como muitas vezes tendemos a fazer com nossa história. A melancolia não é característica da juventude, mas um sentimento da vida madura. E é exatamente deste tipo de maturidade que precisamos para enfrentar a “república de famílias” que está aí, ainda. Aprender a falar sobre o que é inconveniente e desestabilizador, a estranhar exatamente o que há de mais familiar e tranquilizador no “nosso” lar. “Nossa” democracia só será nossa, efetivamente, quando deixar de ser caracterizada como “jovem”. Quando aprendermos a assumir a responsabilidade pelo que fazemos dela. Enquanto delegarmos essa responsabilidade aos “salvadores” (heróis, pais e mães, mitos e redentores) da pátria, temo que o mal-estar que desorienta nos acompanhará ainda por muito tempo.
NOTAS
[1]FREUD, S. O infamiliar [Das Unheimliche] – Edição comemorativa bilíngue (1919-2019): Seguido de O Homem da Areia de E. T. A. Hoffmann (Portuguese Edition). Trad. Rogério Freitas, Ernani Chaves, Pedro Heliodoro. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 2019. A anedota da viagem de trem foi extraída de: PEREIRA, Lucia Serrano. “Do estranho ao infamiliar”. (Artigo). In: Sul21. Disponível em: https://www.sul21.com.br/colunas/coluna-appoa/2019/05/do-estranho-ao-infamiliar/ Publicado em 23 jun. 2019. Acesso: [05 jul. 2019].
[2]ROYLE, Nicholas. The Uncanny. Manchester: Manchester University Press, 2003.
[3]FREJAT, Roberto; CAZUZA. “Ideologia”. In: CAZUZA. Ideologia. Rio de Janeiro: Universal Music, 1999. 1 CD. Faixa 1.
Créditos na imagem: Broken Mirror, por erel (Disponível em: https://www.deviantart.com/erel-/art/Broken-Mirror-9288412)
[vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”SOBRE O AUTOR” color=”juicy_pink”][vc_column_text][authorbox authorid = “21”][/authorbox]