Desde criança, pequenininho mesmo, já gostava de jogar futebol. A rua era nosso campo, os chinelos nossas traves e a sola dos pés nossas chuteiras. Não havia juiz e bandeirinhas, marcações delimitando a área, impedimento ou o fim do “campo”, nada disso.
Comparado aos jogos do futebol profissional, o nosso futebol, de infância e na rua, era uma verdadeira desordem. Mas ainda assim uma coisa era certa: não se podia pegar a bola com a mão, afinal futebol se joga com os pés (às vezes com a cabeça, é verdade).
Imagine você, leitor e leitora, ir jogar ou assistir uma partida de futebol, na rua ou no estádio, e algum jogador simplesmente pegar a bola na mão e ir em direção à área, arremessar, acertar a baliza e depois ainda gritar “gol”!
Ora, esse jogador não está jogando o mesmo jogo. Pelo menos não o mesmo dos demais atletas que jogam com os pés.
Talvez seja exatamente essa sensação que é sentida e percebida por nós historiadores e historiadoras ao ler os textos ou produções audiovisuais daqueles que querem escrever a história “jogando com as mãos”. Anotei aqui, na semana passada, que Narloch voltava ao quadro de colunistas da Folha de São Paulo. E não tardou para o esperado acontecer: Narloch pegou a bola nas mãos e ainda quis “gritar gol”.[1]
Walmyra Albuquerque e Lília Schwarcz, exímias jogadoras (com a bola nos pés!!) logo esclareceram que era falta.[2] Sem, contudo, tirar a bola da mão de Narloch e ficarem, elas próprias, com a bola na mão continuando a “discussão”: afinal, a bola deve ser posta no chão para o jogo recomeçar. E com a bola no chão podemos jogar de muitas maneiras diferentes: uns preferem conduzir mais, outros optam pelas tabelinhas, já aqueles jogam com as bolas longas e por aí vai.
O certo é que não há como jogar futebol com as mãos. Do mesmo modo não há como “fazer e discutir” História com aqueles que jogam com a bola nas mãos. O debate, então, é feito em outros termos e em outro terreno que não aquele da discussão propriamente historiográfica.
Ou seja: é necessário lembrar que estamos jogando futebol. É necessário colocar a bola no chão, e com toda sua diversidade de modos de jogar, com a bola rolando discutir a história em toda sua riqueza e variedade de leituras.
Assim como se joga futebol com os pés (sob risco de se transformar em outro esporte, se a bola for parar nas mãos), se faz História com elementos mínimos e consensuais de apreensão do passado. Em História, transformar a anedota em padrão e a vírgula em uma folha inteira é como pegar a bola nas mãos.[3]
Produções negacionistas, portanto, não dizem respeito ao mesmo campo das produções historiográficas que, embora muito divergentes entre si, jogam com os pés.
São esportes diferentes.
NOTAS
[1] Ver Luxo e riqueza das ‘sinhás pretas’ precisam inspirar o movimento negro. Texto menos provocativo, mas essencialmente o mesmo, foi publicado pelo autor em 2017 em seu livro Achados e perdidos da História: escravos (Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2017). Ver o capítulo Sinhás Pretas.
[2] O texto de W. Albuquerque intitula-se Quem anda com porcos… Ou negacionismo vende anúncio?, já as intervenções de L. Schwarcz foram feitas no perfil pessoal da historiadora no Instagram. Ademais, As sinhás pretas da Folha, de Thiago Amparo, já do escritor Itamar Vieira Júnior o artigo: Texto de Narloch relativiza o horror da escravidão, com ênfase no lucro da Folha João Filho escrevera Leandro Narloch nutre a extrema direita com suas distorções – enquanto a Folha fatura e, por fim, outra crítica vem de Matheus Moreira, Narloch distorce trabalho de historiadores para defender negacionismo da escravidão.
[3] Para o “método de Narloch”, ver o texto de Reinaldo José Lopes: Leandro Narloch tem de fazer mea culpa por ajudar a envenenar o debate público brasileiro.
Créditos na imagem: Reprodução. Foto: Michael Regan/Getty Images.
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