Em uma cidade entrecortada e atravessada pela ferrovia como Divinópolis, ele, o trem, se faz presente de diferentes formas ao longo da vida. Somos apresentados um ao outro logo cedo, quando ainda somos bebês e os pais ao ouvirem os ruídos da sua chegada aumentarem gradativamente de um eco no fim da linha para o tremular das janelas saem as ruas para nos mostrar a máquina em movimento. O convívio era diário e diuturno pois, quase sempre, ele, o trem, invadia nossos sonhos com sua buzina estridente fazendo-nos acordar em plena madrugada. Foi ele também, o trem, objeto dos nossos primeiros questionamentos.
Quando ficava parado por mais tempo que o habitual, estranhava e logo queria saber o porquê, meu pai era o primeiro a responder: “furou o pneu”. Algumas vezes essa parada era inconveniente, precisávamos atravessar a linha para ir à escola e tinha um trem no meio do caminho. Ficávamos e esperávamos ele terminar sua travessia. Quando essa se estendia muito desviávamos o caminho com uma longa caminhada, exceto nos dias preguiçosos em que nos arriscávamos por debaixo dos vagões.
A proximidade era tanta que incluíamos ele, o trem, nas nossas brincadeiras. Colocávamos pedras sob os trilhos e esperávamos o monstro de ferro se aproximar e reduzi-las a pó. Ainda hoje, ele, o trem, não se deixa esquecer tão facilmente. Quando a cancela se fecha e interrompe o fluxo contínuo e acelerado das avenidas, ele, o trem, se impõe e nos força a voltar os olhos e a atenção para ele. Minutos em que paramos e dedicamos para observar sua passagem, como quem reverencia a máquina em movimento. Ainda hoje, ele, o trem continua exercendo seu poder fora dos trilhos, assim como eu outrora. E assim será, pois ele continua a habitar a mesma terra que ajudou a fundar.

 

 


Créditos na imagem de capa:

Helena Chagas de Araújo Mateus