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Ensaios e opiniões

A História do Tempo Presente a partir de O Segredo dos Seus Olhos

A História do Tempo Presente parece hoje uma área devidamente consolidada dentro da historiografia. No entanto, esta posição teve que ser conquistada, já que vários pontos referentes a teoria e metodologia deste campo fizeram com que ele tivesse dificuldades para se estabelecer de maneira efetiva. Entender tais processos muitas vezes pode ser difícil para aqueles que estão tendo seu primeiro contato com o tema, por isto é sempre produtivo pensar em maneiras de “materializar” as discussões, e é justamente buscando oferecer uma possibilidade deste tipo que este texto propõe uma discussão a partir do longa metragem O Segredo dos seus olhos.

Lançado em 2010, O Segredo dos seus olhos é um filme de nacionalidade dividida entre Argentina e Espanha, dirigido por Juan José Campanella. Ele traz para o espectador a história de Benjamin Esposito (Ricardo Darín), um oficial de justiça aposentado, que resolve aproveitar seu tempo livre para escrever um livro sobre um caso de assassinato no qual trabalhou quando era mais jovem, mais especificamente no ano de 1974. Para isto, ele busca Irene Hastings (Soledad Villamil), antiga amiga de trabalho e caso de amor não consumado, que ajudou em alguns momentos na resolução do crime que o protagonista busca narrar no seu livro.

O enredo do filme trafega entre dois momentos, o presente; no qual Benjamin, com a ajuda de Irene, busca reconstituir a narrativa da investigação para escrever o romance; e o passado, mostrado a partir de flashbacks sobre os acontecimentos de 1974. Ao prestarmos atenção em alguns pontos trazidos por esta produção, é possível traçar alguns paralelos entre o ofício do historiador que lida com o Tempo Presente, e o trabalho desenvolvido por Benjamin na reconstrução da narrativa do crime.

A maneira como Esposito trabalha com a Memória é o primeiro ponto a ser levado em conta. Uma das principais características da História do Tempo Presente foi revalorizar o papel da Memória, já que por trabalhar com recortes temporais mais recentes muitas vezes o pesquisador tem que lidar com a testemunha e suas lembranças sobre algum acontecimento histórico, que também possuem valor como fonte. Assim, ao vermos o trabalho de confrontamento constante que o protagonista faz entre suas memórias e as de outras pessoas envolvidas na investigação, que muitas vezes deixa claro as especificidades que precisam ser consideradas no trato com a Memória e sua frequente reconstrução, podemos fazer um paralelo ao ofício do historiador do tempo presente.

Em outra cena, durante a investigação do caso ainda em 1974, podemos ver como um senhor com vasto conhecimento sobre um time de futebol, tema o qual Benjamin não dominava, fornece uma pista preciosa sobre o paradeiro do suspeito, levando a localização do assassino. Tal ocorrido pode nos remeter a necessidade que o historiador do tempo presente tem de estabelecer contatos com outras áreas do conhecimento, que podem oferecer preciosos suportes para o entendimento do presente e toda a sua complexidade, permitindo ao pesquisador estabelecer as ligações necessárias para a compreensão de um acontecimento.

Por último chama a atenção o sentimento de impotência despertado em Benjamin pelo desfecho injusto do caso, personificado em Ricardo Morales (Pablo Rago), noivo da vítima. No desenrolar do filme as memórias do protagonista mostram como ele consegue resolver o caso e pegar o culpado, Isidoro Gómez (Javier Godino). No entanto, graças aos contatos políticos que o assassino possuía este acaba se mantendo em liberdade.

Aqui chamam a atenção algumas falas de Ricardo, que deixam clara a maneira como ele não queria nada além da justiça em relação ao ocorrido com a sua amada. Ele não desejava matar Isidoro, o que se configuraria como vingança, mas apenas que ele pagasse pelo seu crime dentro da lei, tendo sua liberdade cerceada durante o tempo necessário segundo o estabelecido pela Justiça. Esta lembrança é um dos aspectos que mais incomoda Benjamin posteriormente.

Isto pode nos ajudar a refletir sobre um aspecto ético e moral do trabalho com o qual o historiador do tempo presente deve lidar ao trabalhar com temas candentes, tais como genocídios e racismo. Apesar da sua busca por distanciamento crítico em relação ao objeto o historiador não deve necessariamente ser neutro, já que também possui consciência e deve estar atento a sua responsabilidade dentro da sociedade. Assim, mesmo que o papel de juiz não lhe caiba, ele muita vezes tem que lidar com clamores por justiça relativos a algum evento histórico, e assim como Benjamin, não vai poder oferecer o que lhe é pedido, já que isto se encontra além do seu alcance. Apesar disto, a demanda social cobrada dos historiadores deve ser sempre respondida sem hesitação, com independência e respeito as regras do ofício.

A partir do que foi apresentado acima, busquei apontar como O Segredo dos seus Olhos pode nos dar alguns pontos de partida para discussões sobre a História do Tempo Presente. Considerando as transformações pelas quais a nossa sociedade tem passado, que fazem com que cada vez mais o público exija respostas dos historiadores sobre questões relacionadas ao presente, creio que exercícios como este se tornam importantes e ajudam a desenvolver os debates sobre o tema, sejam eles conduzidos junto a discentes dos níveis básico ou superior ou em outros espaços de discussão.

 

 

 


REFERÊNCIAS

BÉDARIDA, François. Tempo Presente e presença da História. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Morais Ferreira. Usos e abusos da História Oral. 7° ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. p. 219-232.

DOSSE, François. História do Tempo Presente e Historiografia. Revista Tempo e Argumento, v. 4, n. 1, p. 05-22, jun. 2012.

MAYNARD, Dilton. História em horas extremas: anotações sobre o Tempo Presente. In: MAYNARD, Andreza; MAYNARD, Dilton. Visões do Mundo Contemporâneo. V. 2. São Paulo, LP Books, 2013. p. 157-171.

O Segredo dos seus Olhos. Título original: El secreto de sus ojos. Direção: Juan José Campanella. Espanha; Argentina, 2010.

VENGOA, Hugo. La Historia del tiempo presente: una historia en construcción. Historia Crítica, núm. 17, julio-diciembre, 1998, p. 47-57.

 

 

 


Créditos na imagem: O segredo dos seus olhos – El secreto de sus ojos – 2009 – Argentina/Espanha.

 

 

 

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