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Ensaios e opiniões

A história sob o bolsonarismo

Que o horizonte para o ensino de história no Brasil não era dos melhores não é algo de agora. Só não esperávamos que o abalo fosse tão imediato, a ponto de ser cogitado para ministro da educação um militar que defende a revisão bibliográfica do ensino de história nas escolas brasileiras, em especial no que tange à ditadura militar. Em outras palavras, negacionismo. É preciso, no entanto, nos perguntarmos sobre os reais significados de todo o processo de negação do pensamento histórico, ou do pensamento – de forma mais ampla, que emergiu de forma brutal no contexto brasileiro. Só entendendo o real alcance do que de fato se nega quando se nega o pensamento histórico, poderemos começar a esboçar algum tipo de reação aos desafios que hoje se apresentam.

Se pensarmos em perspectiva, o passado recente já sinalizava para uma onda de medidas advindas da concepção neoliberal de educação que relegava o ensino de história a uma posição extremamente marginal. Isso através da proposição de reformas curriculares que apagavam ou menosprezam o papel do conhecimento histórico, da deslegitimação das humanidades na esfera pública e de certo cinismo que advogava para o presente sua exclusividade histórica, de modo a anular suas pontes mais evidentes com o passado.

Sob o bolsonarismo, porém, novos desafios prometem chegar para tornar esse cenário ainda mais obscuro. E aqui, já adianto, será importante compreendermos que esta crise extrapola o universo do ensino de história, ou do conhecimento histórico de forma mais ampla, e promete colocar em cheque algo ainda maior, como a natureza da distinção entre fato e ficção, ciência e opinião. Neste novo cenário, não será apenas a história, mas o jornalismo, as humanidades de forma geral e, acreditem, a própria ciência a estarem sob ataque.

Bolsonaro já percebeu que é possível seguir a mesma estratégia de Donald Trump sem, com isso, colher efeitos políticos negativos. Ou seja, é possível desacreditar a mídia (seguindo sua estratégia de dizer e desdizer coisas de modo a jogar a mídia num labirinto em que não é possível não sair desacreditada) e direcionar toda sua rede de informações para suas contas em redes sociais onde ali estão todos os seus ávidos seguidores. Neste novo cenário as redes sociais parecem desacreditar todas as antigas fontes de veracidade. Afinal, por que acreditar em historiadores, jornalistas ou cientistas quando tenho a possibilidade de uma narrativa alternativa que não me exigirá grandes saltos interpretativos e me oferece uma leitura pronta e simples da realidade? Olavo de Carvalho, que a partir do sofá da sua casa nos Estados Unidos através de “lives” para jovens brasileiros parece ter tomado o posto de Caetano Veloso no mainstream cultural do país, está aí para isso.

O que vemos é que essa poderosa máquina montada pelo neopopulismo global tendo no combo explosivo entre redes sociais e “fake news” sua peça central parece muito difícil de ser enfrentada. Quais são nossas armas para enfrenta-la? Conversa, diálogo, esclarecimento? Me confortaria saber que ainda são estes meios aqueles mais recomendados, afinal fomos formados como professores de história para nos valer dessas alternativas. Temo, porém, que elas sejam iluministas demais para uma sociedade decididamente mais complexa e que se fia, hoje, por outras formas de construção de veracidade e autenticidade. Se é que essas duas palavras ainda significam o que significavam.

“Verdade” é palavra constante nos discursos de Jair Bolsonaro. Sabemos de todo o seu cinismo quando cita João 8:32 – “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”, ou quando cita o livro “A verdade sufocada”, do torturador Brilhante Ustra. Mas o que ele faz é evidente: é a disputa pelo conceito de verdade, ainda que da forma mais cínica possível. Frente a isso o que faremos? Regressamos a formas iluministas de “objetividade” para reafirmar o papel da ciência histórica no esclarecimento geral ou saímos de vez à esfera pública e disputamos o significado das ciências humanas e do conhecimento científico? É possível ainda disputar algo contra essa máquina? São perguntas sinceras e nada retóricas.

Repito, porém, que o pânico em torno da negação da história não nos ajudaria nesse momento, especialmente porque não nos é exclusividade. Repare que não é apenas o nosso diploma que eles questionam, como vejo amigos reclamarem em redes sociais. A fábrica de “fake news” e do “diz e desdiz” levou a imprensa a um comportamento de barata tonta durante essa eleição e no seu imediato posterior no que tange ao tema da fusão de ministérios insolúveis como meio ambiente e agricultura. Jornalismo sério e de investigação não interessa nada a governos como Bolsonaro e, por isso, serão deslegitimados a cada denúncia que fizerem pela máquina de desinformação do novo governo.

Os cientistas então não têm menos motivos para se preocuparem. É conhecido como Jair Bolsonaro e a cúpula mais próxima que o cerca chegam ao ponto de negar a transformação climática global e suas consequências. Assim foi com um dos nomes cogitados para ministro da agricultura, Nabhan Garcia, que prometera utilizar as páginas do Acordo de Paris para usar como papel higiênico.

A negação da história, no entanto, parece estar no centro de tudo isso e significa mais do que aparenta. Ao negar determinados fatos ou acontecimentos do passado uma implicação muito maior emerge. E de natureza temporal. Está em jogo a proposição de um presente perpétuo no qual a possibilidade de trazer o desconhecido ou algo que abale uma crença desejada é veementemente negada. O controle do passado, porém, de modo a não incomodar o presente com proposições “democráticas demais” para o livre desenrolar da sociedade de consumo, é seguido também pelo controle do futuro, impedindo que seja possível apresentar qualquer imagem crítica de “tudo que está aí”. É o roubo do tempo. E isto porque nos impedem, sobretudo, de imaginar e de criar. E para isso história é fundamental. O passado só lhes interessa na medida que apresenta o mesmo, o idêntico, um prolongamento das próprias condições presentes e que os conforte e os justifique numa longa cadeia temporal.

Os desafios colocados pelo bolsonarismo ao ensino de história se multiplicam, portanto. Não se trata “apenas”, e agora, de nos perguntarmos sobre a evaporação da legitimidade do historiador na esfera pública, sobre os efeitos da atomização dos produtores de discurso sobre o passado, sobre o impacto de novas tecnologias na forma como as pessoas se relacionam com o passado, etc, etc. Trata-se, antes, de enfrentar quem nega veementemente a própria história. É como se se mesclassem dois extratos de temporalidade que desafiam os historiadores – aquele da sociedade contemporânea globalizada e hiperconectada e aquele que mais nos parece regressar a patamares de discussão da Guerra Fria. Tudo isso combinado a uma poderosa máquina de recriação da realidade onde o que menos importa é o limiar entre realidade e ficção.

Por ora, acredito que necessitaremos de tempo para reconhecer todas as dimensões dessa hidra e postular alguns caminhos possíveis. O que pode ser útil, porém, é tentarmos recriar uma determinada relação com a história que já não temos há muito tempo. Uma relação na qual a reflexão sobre determinados conceitos de grande carga histórica não sejam tratados como casos de direita ou esquerda, mas índices fundamentais para estabelecer uma ponte entre passado e futuro, quais sejam aqueles como democracia, direitos humanos, alteridade, etc, capazes de desestabilizar nossas impressões do mundo e oferecer uma nova dignidade ao conhecimento histórico na esfera pública numa época sedenta por apagar suas próprias pegadas em favor da inovação.

O desafio mais fundamental, ao menos até esse momento, é aquele de recriar os espaços e a forma do ensino de história. Algo que já havíamos perdido (ou nunca tivemos) há tempos. O que tento dizer é que não será útil continuar privilegiando um âmbito discursivo no qual as práticas ficam mesmo relegadas ao segundo plano. A história sem potência e sem aderência concreta com a experiência se torna, ao invés de uma postura reflexiva, apenas um produto a mais a ser vendido no mercado da educação. Não nos servirá falar em democracia e seguir com aulas que não tentam minimamente recriar o que pode ser, na prática, uma experiência democrática. Não nos servirá falar em valores republicanos para quem vive numa sociedade que ainda segue lei do talião se não oferecermos no espaço escolar, ou em outros espaços que nos caibam, uma experiência concreta de valores republicanos. Não nos servirá apenas falar em história das greves e dos direitos trabalhistas para quem só está ali na escola para sair o mais rápido possível e se tornar a mais nova mão de obra barata do mercado, sem que saia dali compreendendo profundamente a existência de assimetrias na sociedade que justificam tais movimentos.

Há que se reinventar, aproximar discurso e prática e, sobretudo, construir uma ciência partilhada, um ensino de história atento ao contexto local, à conjuntura e ao público para o qual se está falando. E certamente (estou de acordo) agora será ainda mais difícil do que era antes, mas só com gestos como estes a história se manterá na linha de frente na defesa de uma sociedade mais democrática.

Se o rosto do bolsonarismo é composto por delegado, pastor, militar e juiz, algo que mais parece o retrato de uma sociedade medieval, nunca a história foi tão importante para oferecer-lhes outro rosto como espelho reflexivo. Se os laços atávicos com o nosso passado falam alto, a história ainda emerge como possibilidade de assombrar esses consensos que, vira e mexe, retornam ao Brasil para nos mostrar como a negação do passado só pode ter como resultado a sua constante repetição. Ainda que com roupagens diferentes.

 

***

 

*Adendo após receber a sugestão de um interlocutor*

 

Uma afirmação não tão difícil de encontrar por aí é que a era da pós-verdade, ou a da absoluta relativização da verdade, nada mais é do que a consequência de décadas nas quais a filosofia ou a teoria da história relativizaram o estatuto da verdade. Tudo estaria reunido, portanto, no vago conceito de pós-modernidade, utilizado de forma tão ampla quanto banal.

Temo, porém, que não seja exatamente assim e aqui as reflexões de um historiador mexicano que, no que tange à sua contribuição para a teoria da história, não foi tão lido no Brasil ainda e pode nos ajudar a alcançar uma compreensão mais fina da questão.

Para Edmundo O’Gorman (1906-1995), quando a historiografia se afirma como ciência tout court, a mesma entra numa senda cheia de consequências que talvez nem ela mesma previa. Ao se afirmar como ciência, a historiografia ao mesmo tempo se despolitiza e abre caminho para um entendimento, assim dito, técnico das suas questões. Se esquecia, porém, que a história não tem uma verdade final e que muitas das suas “provas” possuem o ônus de simplesmente se perderem com o tempo, ao contrário de outras ciências, e apesar dos conhecidos esclarecimentos de Popper.

Ao externalizar a historiografia ao homem e suas condições existenciais, afirmando a primazia da técnica no desvelamento da verdade, a historiografia abre espaço para entrar nos próprios mecanismos do discurso científico, no qual a refutabilidade é peça fundamental. E se é fundamental, haverá espaço para que se refutem todas as suas teses, sem ter a historiografia as condições mesmas para responder e “provar” de maneira cabal e definitiva a sua verdade. O desejo de controle total do passado se mostra assim um grande equívoco e abre as portas para que o cinismo, também sob o discurso da verdade (“Conhecereis a verdade e a verdade os libertará”, diria o inominável), venha jogar as regras do jogo.

Assumir então a parcialidade da historiografia, argumenta O’Gorman, não implicaria adotar a mentira ou a falsificação. Implicaria, antes, duvidar de que o “técnico” e o “científico” sejam as soluções para os problemas da verdade histórica. A verdade, lhe parece, está em outra parte. Muito mais próxima da vida e do presente, assumindo sua relação umbilical com as questões do seu tempo e reconhecendo seus limites e circunstâncias a partir das quais se fala.

Se concordarmos com Edmundo O’Gorman, portanto, não é a relativização da verdade que nos levou ao buraco do negacionismo que nos encontramos, hoje, no Brasil. Seria, ao contrário, a própria afirmação ingênua da possibilidade de se alcançar uma verdade científica e definitiva da história que nos permitiu chegar até aqui.

 

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