HH Magazine
Crônicas, contos e ficções

A literalidade de Hermes

Dizem que num futuro longínquo se encontraram reunidos Fidel Castro, Adolf Hitler, Kim Jong-um e Jair Bolsonaro. Todos aguardavam com um óbolo nas mãos para pagar o barqueiro Caronte na travessia sobre as águas do rio Estige e Aqueronte. Naquele dia uma presença se fez especial. Hermes, filho de Zeus e Maia, o deus responsável pela interpretação e transmissão de mensagens. Hermes, de beleza radiante, assumiu que naquela travessia até o Hades buscaria a plena literalidade como o melhor instrumento para assessorar os novos habitantes do mundo dos mortos. Havia lido a pouco o livro Os limites da interpretação de Umberto Eco. O primeiro a entregar o óbolo e proferir um rápido discurso de sete horas foi o cubano Fidel Castro. Hermes e Caronte já estavam empunhando as ossadas que haviam ficado na embarcação de tempos atrás. Fidel os convencia de que o problema que deveriam resolver era o de Zeus e a sua autoridade imperialista. Após horas e horas Fidel retomou a sua trajetória enquanto membro de um partido político em Cuba. Nunca vesti um colete à prova de balas. Meu colete é um colete moral! Fiz parte do Partido Ortodoxo, disse Fidel. Hermes, guiado pela literalidade, parou o discurso naquela hora e proferiu: Ortodoxo? Se estiver escrito e dito ortodoxo é pelo motivo de você, Fidel, possuir uma opinião reta sobre as coisas. Isto nos é o suficiente. Será bem-vindo aos campos Elíseos. Fidel que nem em Zeus, Hermes e Caronte acreditava franziu a testa e sentou. O próximo a falar foi o austríaco de olhos e cabelos escuros que se via como um alemão de olhos e cabelos claros, Adolf Hitler. Estridente e gesticulando para todos os lados informava que poderia fazer daquele lugar uma terra melhor talvez até mesmo uma colônia alemã. O tempo virá em que vocês, Herr Hermes e Herr Caronte, poderão se apresentar novamente como alemães. Prosseguiu dizendo que o problema não era o discurso imperialista de Zeus, mas o seu fenótipo que de longe revelava a sua baixa estirpe divina. A fisiologia de Zeus seria facilmente mapeada pelo seu colega Josef Mengele. Caso queira mais informações científicas, Herr Hermes de pele alva e cabelos arianos, basta falar com qualquer membro do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães. Hermes e Caronte se olharam desconfiadamente, mas como a lei era a literalidade Hermes taxou: Eu ouvi “trabalhadores”? Ótimo. Se estiver escrito e dito trabalhadores é pelo motivo de você, Hitler, incentivar o trabalho. Precisamos de pessoas pró-ativas por aqui. Isto nos é o suficiente. Será bem-vindo aos campos Elíseos. Hitler que admirava um passado glorioso que nunca fora o dele se sentou quietinho para não perder nada. De modo tímido e deslocado culturalmente surgiu Kim Jong-um. Já na fila jogou fora o óbolo sem saber de sua serventia. Na hora em que Caronte lhe exigiu a moeda restou-lhe entregar uma nota de Won norte-coreano que trazia como lembrança de seus tempos na Coréia. Hermes e Caronte não sabiam se riam ou se ficavam irados com a postura nada grega daquele cidadão. Kim então começou a falar de Dangun Wanggeom e a sua lendária dinastia Gojoseon que deu início ao primeiro reino coreano. Depois de elencar uma lista de nomes e dinastias que Hermes e Caronte não conseguiam nem pronunciar foi inquirido por Hermes: Tudo bem. Pelo visto não nos entenderemos, mas você veio de qual lugar mesmo? Da República Popular Democrática da Coréia do Norte, respondeu Kim. Os olhos do deus grego brilharam. Democrática? Como Atenas? Ótimo. Se estiver escrito e dito democrática é pelo motivo de você, Kim Jong-um, incentivar o poder do povo, para o povo e pelo povo. Precisamos de líderes que entendem a essência da democracia por aqui. Isto nos é o suficiente. Será bem-vindo aos campos Elíseos. Kim sem entender nada apenas sentou. Por último chegou o emocionado Jair Bolsonaro já declamando o seu versinho preferido, conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. Obrigado seu São Pedro por me receber aqui no céu. Esta viagem é também para mim uma grande oportunidade de mostrar para o mundo dos mortos o momento único em que vivemos em meu país e para apresentar a todos o novo Brasil que estávamos construindo. Tendo como lema “Deus acima de tudo”, acredito que nossas relações terão infindáveis progressos para todos. Sem entender nada do que fora dito Hermes e Caronte informaram a Bolsonaro que ali não era o tal do céu cristão. Não havia nenhum Deus, mas era Zeus quem comandava a paróquia. Diante de toda a confusão gerada pela conversa Hermes pediu a Jair Bolsonaro para falar mais. Então ele começou a soltar o verbo desde o Trabalho que iria continuar com status de ministério e que deixou de ser ministério; de exército que mata gente e não mata porque o exército é o povo e então o povo não mata; de embaixada de Israel que sairia de Tel Aviv para Jerusalém, mas criou-se um puxadinho em Jerusalém e deixamos em Tel Aviv a embaixada; de sua certeza que fora uma escolha divina a de governar uma democracia; dos seus meninos que eram verdadeiros homens de bem e que contratavam parentes de milicianos e premiavam milicianos; até a sua filiação no Partido Social Liberal. Hermes, o deus da interpretação, conhecido por nada deixar de transmitir e interpretar, ficou confuso. De tudo o que ouviu quase nada serviu para a sua decisão. Então, para evitar o primeiro erro de interpretação de sua vida, apostou na mesma linha dos outros três integrantes: Você falou Liberal? Mas então o senhor é a favor da não intromissão na privacidade e o individualismo como alicerce? Que ótimo. Será ideal para os tempos que vivemos aqui no Hades. Está vindo um pessoal dessas igrejas pentecostais lá da tua terra e já chegam querendo se intrometer naquilo que é o nosso governo. Nada como um liberal para separar as instituições. Isto nos é o suficiente. Será bem-vindo aos campos Elíseos. Sem entender nada do que fora dito Jair Bolsonaro fez uma arminha com as mãos e foi se sentar na última vaga da barca de Caronte. De repente alguns gritos: Jair! Jair! Espera por mim! Estou com o passaporte diplomático que você me concedeu. Quem é, perguntou Hermes. Sabe como é né, seu Hermes. É o bispo Edir Macedo, mas não é nada do que o senhor está pensando. Sou liberal, mas sabe como é um casamento né, seu Caronte. Sempre tem as suas escapadinhas. Sem paciência para tudo isto o destino de Jair Bolsonaro e de Edir Macedo que ficou conhecido como o gaiato no navio foi o Tártaro. Lá ambos ficaram empurrando caixas de armas e bíblias ladeiras acima apenas para vê-las novamente descer com o próprio peso. Eternamente.

Moral da história. Hermes em conjunto com o ilustre morador dos campos Elíseos, Umberto Eco, precisou re-fundar a hermenêutica após seis minutos de conversa com o atual presidente do Brasil.  

 

 

 [vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”SOBRE O AUTOR” color=”juicy_pink”][vc_column_text][authorbox authorid = “16”][/authorbox]

Related posts

Uma crônica de brinquedo: a criança dos anos noventa e os nós que ligam o Floramar, o Brasil e o Mundo

Bruno Tadeu Salles
2 anos ago

Gabriela

Tadeu Goes
6 anos ago

A escravização aos preconceitos e o estudo da Antiguidade; sobre a urgência de nos libertarmos!

Fábio Faversani
4 anos ago
Sair da versão mobile