HH Magazine
Entrevistas e Diálogos contemporâneos

A necessidade de uma vanguarda historiográfica: uma entrevista com Ewa Domanska

Apresentação

A obra de Ewa Domanska pode ser descrita como uma excursão através das fissuras abertas nas humanidades após o estabelecimento de movimentos críticos que fizeram certas concepções, uma vez inovadoras, perderem muito de sua radicalidade. À ideia segundo a qual o passado é uma construção do presente, quando não apenas um artifício criado pelos historiadores, a historiadora polonesa contrapõe a afirmação do estatuto ontológico do passado, presente através de suas diversas manifestações materiais e/ou espirituais; à afirmação segundo a qual o principal veículo para o entendimento da história é o texto ela opõe a multiplicidade de modos pelos quais o passado pode ser abordado para além das convenções que a disciplina historiográfica estabeleceu para si ou que a tradição intelectual do Ocidente tornou hegemônicas. “As correntes pós-modernistas”, escreveu ela em 2011, “estão esgotadas e já não mais pertencem à atualidade mas sim à história das humanidades” (DOMANSKA, 2011, pp. 131-132). E já que é possível ultrapassar o pós-modernismo, que espaço é aberto para a prática das humanidades? Quais os caminhos para passar da crítica enquanto conceito-chave das ciências humanas em direção a formas de conhecimento que podem ser performativas ou propositivas? Qual a necessidade de uma vanguarda intelectual para reestabelecer a radicalidade política e epistemológica das humanidades?

Essas e outras questões são abordadas na entrevista, realizada em 24 de agosto de 2016, durante a segunda conferência da International Network for Theory of History, em Ouro Preto. Nosso objetivo, por ora, é apresentar um pouco mais dessas questões e como elas se relacionam com o pensamento de Ewa Domanska, buscando familiarizar o público brasileiro com a obra dessa pensadora original e, reabilitando um termo que aparece na entrevista, na vanguarda da reflexão histórica contemporânea.

Doutora pela Adam Mickiewicz University de Poznán, Polônia em 1995, e orientada pelo historiador polonês Jerzy Topolski, Ewa Domanska desenvolveu ali um trabalho dedicado a pensar os então recentes movimentos de ruptura com o discurso moderno nas humanidades, e assim se inseriu de modo determinante no desenvolvimento da crítica historiográfica pós-moderna da década de 1990, animada principalmente pelos trabalhos de Hayden White, Hans Kellner e Frank Ankersmith (esse último, tendo sido seu também seu orientador durante o doutorado), entre outros. Interessava perceber aí a potência da crítica narrativista a partir das possibilidades abertas para a reinterpretação da historiografia como um ofício politicamente ativo e criativo. Daí pareceu advir uma preocupação constante com a possibilidade performativa da historiografia, ou seja, de que, mais do que descrever um estado de coisas, o trabalho dos historiadores também pudesse funcionar como uma ferramenta criativa para o estabelecimento de outras realidades. Em um artigo de 2000, Domanska descrevia seu sentimento em relação ao pós-modernismo: “Eu sou grata ao pós-modernismo por muitas coisas, especialmente por me permitir uma apreensão alternativa do mundo em termos de diferença e continuidade em vez de oposições binárias, mas eu estou cansada da inseguridade ontológica e do caos epistemológico” (DOMANSKA, 2000, p. 173).

Um modo de abordar o problema estaria em repensar as categorias de representação como abordagem hegemônica nos estudos históricos. Em seu texto de 2006 “The Material Presence of the Past”, Domanska articulava estratégias para atravessar o pesado fardo da representação na historiografia, tentando revitalizar uma abordagem não centrada unicamente em métodos semióticos ou discursivos, mas capaz de oferecer uma via de acesso à materialidade do passado. Um “retorno às coisas” (título de outro texto do mesmo ano) possibilitaria o enfrentamento desse problema a partir da consideração dos “não-humanos” (objetos, animais, plantas) como agentes históricos. Se a oposição binária entre orgânico e inorgânico foi assim dissolvida, e as teorias biológicas tiveram que criar novas formas para descrever seu objeto, a historiografia deveria estar preparada para encarar a crise do antropocentrismo como um problema a ser superado através de ajustes e transformações na própria epistemologia do conhecimento histórico. (DOMANSKA, 2006, p. 184). Essa espécie de giro pós-humanista é reiterada em um artigo de 2010, “Beyond Anthropocentrism in Historical Studies”, no qual Domanska procura avaliar os limites de um discurso histórico centrado na (e limitado pela) espécie humana. Uma abordagem não antropocêntrica se justificaria assim tanto pela necessidade de encarar problemas da conjuntura planetária que não se reduzem mais ao mero estatuto da “humanidade”, quanto pela demanda de uma orientação ética para a historiografia que, depois de fragmentada pelo desenvolvimento da pós-modernidade, encontra-se outra vez confrontada com problemas globais. “Observando os resultados da crise ecológica e do rápido progresso tecnológico e especialmente das recentes façanhas da engenharia genética, da biotecnologia, da neurofarmacologia e da nanotecnologia, estou convencida de que, enquanto historiadores e intelectuais, nós deveríamos pensar novamente em questões de grande escala, em questões globais” (DOMANSKA, 2010, p. 120).

Em 2014, essa mesma percepção referente ao lugar do conhecimento histórico em um mundo de inovações biotecnológicas e de crescentes ameaças ecológicas e políticas impulsiona Domanska a reavaliar o modo como a ideia de “ancestralidade não-humana” pode oferecer outras possibilidades de futuro. Uma atitude como essa torna necessário a desestabilização de algumas bases centrais de constituição do pensamento ocidental, de maneira que a consideração de epistemologias indígenas aparece como uma possibilidade real de reorientação do pensamento histórico. Uma aproximação com a teoria antropológica contemporânea possibilita a historiadora a reconhecer o valor epistemológico e ontológico das perspectivas animistas. A partir do trabalho de Eduardo Viveiros de Castro, o reconhecimento das cosmologias ameríndias funciona, no texto de Domanska, como forma de conhecimento capaz de reorientar o pensamento histórico moderno para um futuro “eco-utópico” (DOMANSKA, 2014).

Essa contínua percepção sobre a necessidade da historiografia e das humanidades no geral serem capazes de encaminhar críticas capazes de oferecer uma reflexão mais geral sobre o futuro da sociedade (e não só sobre seu passado ou sobre seu presente) atravessa o pensamento de Domanska. Questões como essas exigem da autora o trabalho de repensar categorias que por muito tempo se mantiveram intocadas pela crítica historiográfica tradicional. Assim, o estatuto de humanidade do “sujeito histórico”, a materialidade do passado (para além de sua representação), o corpo como manifestação da presença, o animismo como perspectiva legítima de interação temporal no contexto do antropoceno, a “história animal”, e muitos outros tópicos, aparecem como preocupações centrais da autora no sentindo de vitalizar o alcance afirmativo da historiografia dentro do que Isabelle Stengers chamou de “tempo das catástrofes”.

Todas essas questões são revisitadas ao longo da entrevista. Partindo de sua apresentação na segunda conferência da INTH, a qual tratou de justiça epistêmica, a interrelação entre centro e periferia e como isso se reflete na condução das humanidades, iniciamos a conversa perguntando sobre sua formação na Polônia e a situação atual das humanidades nesse país. Desde o início, já se percebe uma preocupação recorrente de seus escritos mais recentes, qual seja, a percepção de uma ruptura na tradição crítica das humanidades, especialmente aquela estabelecida após 1968 e representada pelos nomes, citados na entrevista, de Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Jean Lyotard, Jean Baudrillard e outros. O reconhecimento do esgotamento das questões colocadas por esses autores não diminui sua importância na história das humanidades, mas torna possível reconhecer outros arranjos epistêmicos a partir das quais preocupações diversas ganham relevância. Um deles, exemplificado por ela na entrevista, é o apelo de pensadores como Giorgio Agamben, os quais partem do vocabulário religioso para compreender a sociedade contemporânea, num movimento intelectual que recebe o nome de pós-secular. Tomar elementos da religião como base da reflexão intelectual implica numa crítica direta à fundação das ciências humanas no seio da modernidade, realizada justamente através da recusa de qualquer transcendência e da separação entre ciência e religião entre os polos da verdade objetiva e consciência íntima subjetiva.

O referido esgotamento toca na questão central de qual é o papel das humanidades hoje. Uma vez que a crítica não é mais possível, seja por ter perdido sua eficácia, seja por ter se tornado banal, o que se pode fazer? Para a autora, é momento de pensar em ciências humanas que não se definam mais pela crítica, isto é, pelo desvelar de uma verdade oculta, oriunda de um saber especializado, mas que atuem junto ao mundo e que nele intervenham, em pé de igualdade com outras formas de intervenção política ou epistemológica. Para Ewa Domanska, trata-se de pensar em “humanidades propositivas”, que coloquem o futuro como sua preocupação central. Junto ao futuro, a utopia torna-se uma palavra novamente válida, não no sentido de imposição de uma visão de mundo totalizante, mas de criação de pequenos espaços nos quais as regras da ciência possam ser subvertidas e o conhecimento possa adquirir esse caráter de intervenção, ou comunhão, entre iguais. Com isso, o trabalho acadêmico se transforma numa atividade criação e, junto à crítica dos critérios produtivistas que caracterizam muito da produção científica atual, ela propõe uma slow science que consiga se constituir enquanto espaço de autocriação para os sujeitos que a realizam. É nesse sentido de criação de pequenas utopias, localizadas, como meio de autoconstrução performativa, que as humanidades realizam o movimento de retorno à esquerda política, agora renovada.[1]

Para isso, é necessário alterar os métodos de trabalho das ciências humanas, indo além das fronteiras disciplinares mas, e isso também é importante, ressignificando radicalmente a interdisciplinaridade. Para ela, hoje são as ciências da natureza que tomaram a dianteira na definição de conceitos que, antes, eram de exclusividade da filosofia. Vida, morte, e o que significa ser humano não são mais apanágio das ciências humanas, mas recebem diferentes conceituação, não somente técnicas, a partir das ciências naturais. Isso significa que a prática das humanidades pode se beneficiar do conhecimento e colaboração com essas ciências, reformulando muito de seu questionário. E, aliado às pretensões de efetivação de uma justiça epistêmica pela qual outros modos de estar no mundo que não o ocidental sejam considerados igualmente válidos, ela propõe um olhar para os agentes não-humanos que povoam a interação dos humanos com o mundo. Espíritos e animais, mas também fungos, fazem parte dessa nova paisagem, povoada de agentes.

A amplitude dos temas demonstra o alcance da reflexão de Ewa Domanska. Esses temas aparecem como preocupação de uma autora interessada não apenas em compreender os limites da história como abordagem dominante na representação do passado, mas também ocupada em estabelecer um pensamento histórico que esteja orientado para o futuro e que confronte de forma responsável o universo de problemas políticos, éticos e ambientais que atingem nossas sociedades.

 

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Pedro Silveira: Nós estamos aqui com Ewa Domanska, historiadora polonesa e humanista – ou pós-humanista, como discutiremos depois. Nós temos algumas questões trazidas a partir do seu trabalho e, é claro, estamos muitos felizes de fazer essa entrevista.

Guilherme Bianchi: Muito obrigado por ser tão generosa sobre essa entrevista. Sabemos que você está muito ocupada nos dias dessa conferência.

Ewa Domanska: Eu associo a ideia de estar sempre ocupada com a vida acadêmica norte-americana e ao estilo de vida americano em geral, como eu vejo. Você deve estar ocupado. Ainda que você não esteja ocupada, você diz para os outros que sim a fim de agregar valor para si mesmo. Então, essa é uma estratégia de estar com os outros [risos]. Mas eu não sou americana e não penso assim.

 

PS: Na sua apresentação na segunda conferência do INTH, em Ouro Preto, você falou sobre a necessidade de uma dupla descolonização: interna e externa. O Brasil foi um dos principais locais de desenvolvimento da teoria da dependência, que incluiu um ramo da história intelectual, representado pela concepção de Roberto Schwarz das “ideias fora de lugar”. A teoria da dependência marxista tem sido um dos principais alvos do pensamento pós-colonial mas continua a ser uma pedra angular no desenvolvimento de conceitos e teorias da periferia do sistema capitalista e pode-se dizer que ela foi uma contribuição da periferia latino-americana para o sistema intelectual internacional. Poderia nos dizer qual é a relevância em ser da periferia, das margens, e queremos dizer, como você diz e escreve em alguns de seus trabalhos, da Polônia e da Europa Oriental, em relação ao trabalho do pensamento teórico? Qual foi a influência, na falta de um termo melhor, da tradição intelectual polonesa e qual é o clima intelectual e político na Polônia. Como você está inserida neste contexto?

ED: Bem, esta é uma pergunta complexa. Em primeiro lugar, a Europa Oriental e Central, incluindo a Polônia, está numa situação particular, porque a Polônia e esta região do mundo só podem ser consideradas pós-coloniais de uma forma específica. Na Polônia, preferimos utilizar o termo “pós-dependência”. Este termo foi introduzido no discurso pós-colonial polonês por estudiosos literários, Hanna Gosk e Dorota Kolodziejczyk, e não tenho certeza se eles estão cientes da crítica da teoria da dependência.[2] De qualquer forma, a Polônia não era uma colônia da União Soviética, mas um país satélite, como é chamado. É por isso que estamos mais confortáveis com o termo “pós-dependência”. Dependíamos econômica, política e também intelectualmente. Naturalmente, esta situação afetou nosso pensamento e, depois de 1945, experimentamos uma influência muito forte da teoria marxista na escrita histórica; especialmente na década de 50.

Isso teve bons e maus efeitos. Por exemplo, uma forte metodologia da história baseada no materialismo histórico se desenvolveu na Polônia, o que não foi o caso dos Estados Unidos e da Europa Ocidental, onde a metodologia da história não era praticada ou ensinada como uma disciplina separada. Isso ocorreu porque o marxismo foi usado como fonte de métodos. Na base do materialismo histórico, historiadores e metodólogos da história como Witold Kula e Jerzy Topolski desenvolveram certas diretrizes do que era e de como estudar a história.[3] O foco era naturalmente o campesinato e os trabalhadores, na história econômica e material, e na construção de uma história de baixo para cima. Os historiadores também estavam interessados na luta de classes. A ideia do que eu chamaria de “antropocentrismo marxista” era muito importante. Como você sabe, Marx estava muito interessado na agência humana e ele realmente fortaleceu o assunto. A chamada teoria ativista da história defendia um sujeito humano (um indivíduo e um coletivo) que é um agente; um sujeito forte.[4] Dessa forma, o marxismo teve uma boa influência, pois estimulou várias lutas por justiça e independência. Os movimentos decoloniais e emancipatórios também repousam no marxismo, não?

Assim, como eu disse, o desenvolvimento de uma forte metodologia e teoria da história que foi resultado da influência do marxismo para o pensamento histórico polonês, eu considero como algo positivo. O problema era que essa teoria e essa metodologia faziam parte de uma ideologia opressiva. Haviam certamente diferentes versões do marxismo praticados na Polônia: de um marxismo “vulgar” (o uso instrumental de citações de Lenin e Stalin) para um marxismo de estilo ocidental (Althusser, Gramsci) e da escola dos Annales. O impacto do chamado “marxismo vulgar” foi limitado principalmente aos anos 50. Jerzy Topolski, com quem fiz meu doutorado, nunca foi um marxista vulgar.[5] Ele encorajava seus estudantes a lerem Max Weber, [Antonio] Gramsci, [Georg] Lukács, e [Louis] Althusser. Nunca me arrependi dessa lição, porque mais tarde eu poderia facilmente seguir a teoria crítica e a teoria francesa, o discurso do saber pós-colonial (que não existe sem Gramsci), assim como a teoria de gênero. Eu li todos esses pensadores que se tornaram a base para o pensamento pós-modernista (e a assim chamada teoria francesa). Então, isso foi positivo para o meu desenvolvimento intelectual.

Por outro lado, nós estávamos desconectados da doutrina ocidental não-marxista. Tínhamos influências das escolas de Annales, que era para-marxista, de um marxismo leve, do pensamento da esquerda francesa, e da história social inglesa, como E.P. Thompson, da história vista de baixo, e assim por diante. Mas o resto era uma espécie de tabula rasa. Penso que, desse ponto de vista, tínhamos muita coisa em comum com a América Latina, e especialmente com a Argentina, o Brasil e o México, onde o pensamento marxista também era muito influente, mas de maneiras diferentes (a propósito, vocês sabiam que a Polônia às vezes é chamada de Brasil da Europa e os poloneses de “os latinos do Oriente”?). Claro que você não tinha o marxismo na América Latina como uma espécie de ideologia opressiva que legitimava uma política controlada pela União Soviética.

Sobre o que está acontecendo agora, já que você perguntou sobre a situação contemporânea, é que a geração mais jovem na Polônia, a maioria dos estudantes, odeia o marxismo porque eles associam o marxismo ao comunismo e ao tempo da opressão. E você não pode culpá-los. Portanto, agora nós temos uma forte reação – um forte movimento conservador (e mesmo direitista) na medida em que alguns estudantes se recusam a ler [Frantz] Fanon e [Edward] Said. Eles se recusam a ler qualquer coisa que cheira a marxismo.

 

GB: Por causa da experiência política?

ED: Absolutamente. Por causa do sistema político anterior que eles não experimentaram, na verdade. É difícil convencê-los. Eles parecem não entender que o marxismo foi e ainda é uma teoria valiosa para entender a ascensão e o desenvolvimento do capitalismo. Se você quiser entender esse tipo de capitalismo global e agressivo, você tem que conhecer a teoria de Marx, que ainda é uma ferramenta importante para a análise.

 

PS: Parece haver uma tendência, uma tendência política, de parte da geração mais jovem em ir um pouco para a direita. No Brasil, já tivemos alguns problemas em relação a isso. Alguns alunos não querem ler Marx, e até tivemos o caso de um estudante que processou seu professor que queria que ele fizesse um trabalho sobre Marx. A classe deveria ler Marx e ele se recusou a fazê-lo.

ED: O mesmo na Polônia. Carl Schmitt tornou-se popular entre os estudantes. Ele tinha ideias interessantes sobre teologia política, mas também era o jurista mais renomado do Terceiro Reich. O que as gerações mais jovens estão procurando agora? Eles estão ansiando por um forte poder autoritário? Por uma alternativa conservadora a uma dominação anterior da esquerda? Parece que as pessoas estão desapontadas com os governos liberais e eles estão procurando uma alternativa. Parte da geração mais nova encontra essa alternativa numa espécie de conversão para um nacionalismo chauvinista e atávico. Este não é apenas o caso da Polônia, é também o caso da Hungria. Após os resultados da última eleição, parece que também os EUA estão girando ainda mais à direita. Então, essas tendências estão em toda parte. Os alunos também querem ler Charles Taylor. Eles clamam, dizem, por algo que não seja esquerdista. Para eles, todos esses estudos de gênero, queer, pós-colonial, animal studies, etc. cheiram a marxismo, esquerdismo, doutrinação e, como tal, é ruim e relacionado com o antigo regime. Na verdade, a direita é uma nova esquerda.

 

PS: Para continuar nesse tema, eu já notei que nos EUA e em algumas faculdades americanas, há também uma revitalização de Marx, em lugares onde Marx não teve o mesmo impacto que teve na Polônia, no Brasil ou na América Latina. Então temos todas essas tendências conflituosas, porque parece que a academia está indo para a esquerda, mas as pessoas estão indo para a direita…

ED: Eu não sei o que você pensa sobre isso, mas existe um entendimento comum na Europa de que chegamos ao fim do impacto do pensamento francês pós-1968 nas humanidades em geral. Com a morte de [Jacques] Derrida, Gilles Deleuze e Félix Guattari, [Jean-François] Lyotard, Jean Baudrillard, [Pierre] Bourdieu e todos esses estudiosos que eram ícones desta teoria francesa de esquerda pós-1968, abriu-se uma espécie de lacuna. Essa lacuna é preenchida por pessoas que estão seguindo estudiosos como Giorgio Agamben ou Alan Badiou. Eles também estão entrando em um espaço muito interessante de humanidades pós-seculares. Eles estão usando a linguagem da teologia para falar sobre problemas sociais. Agamben escreveu livros sobre Pilatos e Jesus, outro sobre o Opus Dei. Isto é como um contrabando de conceitos teológicos através dos bastidores das ciências filosóficas e sociais, incluindo a História. A História não foi tão afetada ainda, mas será no futuro. Há uma crescente literatura sobre a antropologia pós-secular, a arte pós-secular, a filosofia pós-secular, a sociologia, etc. Agamben, Talal Asad, Badiou, Jürgen Habermas, Charles Taylor, Slavoj Žižek –     todos esses pensadores proeminentes estão conduzindo esse movimento pós-secular nas humanidades empurrando-a em diferentes direções.

 

GB: Ainda sobre a sua apresentação, você comentou sobre a necessária recuperação do conceito de utopia nas humanidades. Oswald de Andrade, um ensaísta brasileiro do início do século XX, costumava dizer que o Brasil era a realização da utopia do Norte, mostrando que a utopia pode sempre fazer parte de novas lógicas da dominação. Seguindo Fredric Jameson, você falou sobre a necessidade de entender a utopia como um novo método para criar visões alternativas de futuro. Gostaria de saber se você acha que certos conceitos de utopia possuem essa dupla força, de ser tanto uma crítica do presente quanto uma nova orientação em relação a futuros possíveis.

ED: Este interesse pela utopia está relacionado com minha profunda convicção de que os historiadores devem ser mais orientados para o futuro [future-oriented]. Nos últimos anos, temos estado tão sobrecarregados com as discussões sobre memória e trauma, e envolvidos nas chamadas humanidades militantes ou emancipatórias, totalmente presentistas e críticas de tudo, que acabamos colocando o futuro de lado. Agora há uma tendência para recuperar o futuro e criar vários cenários para ele.

Naturalmente, a utopia é um conceito muito poderoso que também possui conotações negativas. Quando uso o termo utopia, não me refiro a algum não-espaço fantasmagórico, “idílico”. Eu prefiro ter em mente algo que eu chamaria de micro-utopias, realistas e responsáveis; utopias que podem ser cumpridas aqui e agora num espaço concreto e por um tempo limitado. Não é uma utopia totalitária. Eu não quero “salvar o mundo”, mas apenas melhorá-lo em uma escala muito pequena. Por exemplo, num ambiente acadêmico, ao lidar com alunos, posso exercer poder não como potestas, que é um poder opressivo, mas como potentia, que é um poder libertador. Eu tenho alguma ideia de como o bem-estar intelectual e acadêmico dos meus alunos pode ser alcançado, o que é bom para eles. Posso realmente construir essas pequenas utopias acadêmicas.

Mas, é claro, é necessário trabalho dos dois lados. É por isso que na minha apresentação eu estava falando sobre a esperança crítica e mencionei Paulo Freire. Todos nós temos que ser agentes, temos que trabalhar duro para realizar essa esperança. Portanto, trata-se também de disciplinar-se; em relação ao poder formativo das humanidades, é necessário ser um estudante sério e um pesquisador sério. Seguindo Bruno Latour, eu diria que o principal objetivo das humanidades hoje (e da História) é construir conhecimento que nos ajude a descobrir como viver juntos em conflitos. Assim, “minha pequena utopia” não é sobre a criação de um mundo pacífico, não-violento e justo, mas sobre a formação de grupos concretos de pessoas que trabalham arduamente na construção de formas de colaboração criativa, coabitação e convivência na condição de conflitos permanentes.

Eu gostei da palestra hoje de um professor francês, [Christophe] Bouton, que nos lembrou da frase de Hegel de que “o que a experiência e a história ensinam é que as nações e os governos nunca aprenderam nada da história”. A minha pergunta seria: se já a conhecemos, talvez possamos fazer algo a respeito. Como tornar a história performativa? Alguns pensadores começariam com as instituições, eu começaria com o sujeito e com o retorno a ideia de Bildung. É por isso que eu gosto da epistemologia da virtude[6], porque ela se concentra nas virtudes intelectuais que temos de cultivar e praticar para ser bons estudantes, bons professores, bons cidadãos, e assim por diante. Então, novamente, isso requer trabalho, trabalho duro. Isto é o que minha compreensão da utopia também avalia: anseio de auto-perfeição para o bem dos outros, é claro. A utopia também requer uma abordagem acrítica em relação a uma ideia de sujeito individualista, narcisista, em relação a estar com/para outros; estar em várias relações (com outros seres humanos, bem como com não-humanos)

 

PS: Seu conceito de utopia me lembra o conceito de Zona Autônoma Temporária, de Hakim Bey, que é uma tentativa de reorientar a ação política de uma grande transformação global para transformações temporárias, locais. Você acha que a utopia, neste momento, no momento em que vivemos, é necessariamente uma ação localizada, ou é possível reunir diferentes tipos de utopia em direção a uma grande transformação? Estou perguntando isso porque parece que a distopia está em toda parte. O fim do mundo vai acontecer em todos os lugares, como [Eduardo] Viveiros de Castro, Bruno Latour, e outros dizem. As respostas, no entanto, sempre tentam reforçar o local, não o global…

ED: Concordo. É por isso que estou falando de descolonizar o pós-colonialismo e sobre a dupla descolonização. A fim de tornar possíveis essas utopias pequenas e locais, você tem de empoderar as periferias, de alguma forma. Isso não é nada de novo, é claro, mas o problema é como realmente podemos fazer isso. Por exemplo, falando sobre o ambiente acadêmico, esta conferência é algo que poderia empoderar sua universidade; poderia mostrar que vocês são um centro importante para as pessoas interessadas em teoria da história. Tenho certeza de que a universidade poderia ganhar com esse encontro. No entanto, há de se considerar seriamente a forma como usar esse ganho; esse “capital” ou, como eu prefiro dizer, a potencialidade que foi criada aqui. Não é como se, uma vez que a conferência termina, as pessoas voltam para seus países e isso é tudo. A rede deve ser sustentada e desenvolvida. Então, eu acho que uma das coisas mais importantes é espalhar as redes em todas as direções possíveis. Não bloquear. Nossa tarefa é conectar pessoas; construir relações. “Conectar e criar” e não “dividir e governar”. Há, por exemplo, coisas muito simples que vocês podem fazer. Vocês têm contatos e conexões, vocês podem circular a informação sobre a conferência, com intercâmbios ou com um novo livro – não manter a informação para si; encaminhar ela para outras pessoas que podem estar interessadas. É como isso pode funcionar em um nível básico. É assim que a rede pode ser libertadora. Sabemos que ter informação também significa ter poder. Portanto, não bloqueie as redes. Nós somos todos transmissores. “Criar parentescos”, como Donna Haraway costumava dizer.

 

PS: Vou avançar para uma questão que pensamos em não fazer, mas com o rumo que a conversa tomou, parece ser a ocasião adequada para perguntar. As redes são uma configuração diferente ao descentrar as margens e, não necessariamente tendo um centro, não há um lugar autoritário de poder. Pensando nisso, você poderia nos contar um pouco mais sobre o anarquismo na criação de utopias e em seu trabalho? Como pensar sobre o anarquismo em um ambiente acadêmico?

ED: [Risos] Você sabe que eu sou uma aluna de Hayden White e ele gosta de provocar o público dizendo coisas como “Eu sou o último marxista” ou “Eu sou um anarquista”, e isso é engraçado. É engraçado ouvir algo assim de alguém que é uma verdadeira emanação de uma figura patriarcal; de alguém na idade de Hayden. Sabe, um anarquista geralmente é um jovem. As pessoas mais velhas geralmente não se rebelam. Rebelde é alguém que tem sonhos e esperanças. Mas falando sério, eu me associaria a uma espécie de anarquismo intelectual, pelo qual quero dizer ter suficiente coragem intelectual para ser epistemicamente desobediente (para usar o termo de Walter Mignolo). Claro, você precisa de um ambiente adequado, um espaço de potencialidade para exercer suas próprias ideias. E mais uma vez, isso exige muito trabalho de ambos os lados (tanto de professores quanto de alunos) para criar esse espaço, mas você deve exercitar sua desobediência epistêmica, porque você tem diferentes pontos de vista e ideias. Isto é o que eu gostaria de associar agora, neste contexto limitado de uma “utopia acadêmica”, com o anarquismo. Não estou falando do anarquismo como uma espécie de movimento radical que usaria a violência contra o sistema. Como sabemos, a violência multiplica a violência. É claro que quando você vive e trabalha sob um regime opressivo, isso é uma questão diferente, mas em um ambiente democrático eu impulsionaria os alunos para serem desobedientes, para desenvolverem e praticarem coragem intelectual, para serem independentes em seus pensamentos, porque eles são o futuro, eu já pertenço ao passado.

Há um fosso paradigmático e uma mudança ocorrendo nas humanidades e nas ciências sociais e isso cria uma grande oportunidade para estudantes. Quando fiz meu doutorado eu já tinha uma “caixa de ferramentas” teóricas pronta. Você escolhia um material empírico (digamos, obras de um historiador particular ou um problema teórico, como um problema de narrativa histórica, verdade, etc.), você escolhia Hayden White, Frank Ankersmit, Fredric Jameson, Lyotard, Joan Scott ou Judith Butler para utilizar suas teorias e abordagens para analisar e interpretar seu material e pronto. Não há nada como isso agora. Se você realmente quer fazer algo interessante e fresco, você pode usar a teoria de Hayden White como um ponto de partida, mas você faz perguntas de pesquisa que interessam a sua geração e essa geração é diferente, é claro. Por exemplo, um dos meus alunos de pós-graduação, Tomasz Wisniewski, está interessado em Hayden White como um pensador pós-secular. Ele tenta descobrir como a ideia de figura ou o modelo figura-preenchimento, que tem conotações teológicas, pode ajudar a construir uma teoria pós-secular da história. Este é o tipo de perguntas que estão trazendo luz diferente sobre as ideias de White. Assim, a questão é se você tem imaginação suficiente e coragem intelectual, e também conhecimento, para fazer novas perguntas de pesquisa? Na verdade, a coisa mais difícil em sua tese é fazer perguntas de pesquisa inovadoras. É também por isso que você precisa não só de conhecimento, mas também de imaginação e intuição acadêmica, e você também precisa colocar um pouco de você mesmo em sua pesquisa, porque você está interessado em questões diferentes do que eu, como sendo de uma geração diferente.

 

GB: Passando para uma questão mais teórica, no ano passado o antropólogo inglês David Graeber publicou um artigo crítico a Eduardo Viveiros de Castro e, de modo mais geral, aos autores e autoras afiliados ao chamado “giro ontológico” nas humanidades. Além do principal argumento filosófico – que Viveiros de Castro e outros pensadores entendem mal o significado da palavra ontologia, Graeber também desenvolve uma consideração política ao pensar que, levando seus interlocutores a sério, os antropólogos do giro ontológico tomam inadvertidamente o que se diz sobre uma cultura como uma descrição da realidade por si mesma e, portanto, anulando uma perspectiva crítica da cultura. Em respeito as funções da crítica em nossa sociedade, como você acredita que uma historiografia orientada para o futuro pode trabalhar no contexto de emergentes demandas por “justiça epistêmica”?

PS: Você crê que a crítica segue sendo possível hoje?

ED: Alguns estudiosos estão falando sobre a condição pós-crítica e eu recomendaria um artigo de Hal Foster, que lida com este assunto.[7] Naturalmente, Adorno e a escola de Frankfurt, a geração de 68 (os teóricos franceses), eram e ainda são cruciais para os humanistas que estão praticando essa abordagem crítica. Mas eles são suficientes hoje? Acho que o giro ontológico é um sintoma de exaustão de uma certa teoria crítica. Isso não significa que não seja importante ou válido, mas os humanistas de vanguarda (e também os historiadores) estão interessados em coisas diferentes há três décadas. Eles gostam de falar sobre o passado não em termos de representações, mas em termos de presença. Em 2006, a History & Theory publicou um número especial sobre a presença. Hans Ulrich Gumbrecht e [Eelco] Runia publicaram artigos importantes ali. Eu também gosto de falar do passado como algo que ainda está disponível para nós em termos de vestígios concretos e materiais que podemos realmente tocar, em vez de falar em representações, que são muito complicadas em termos políticos, mas também em termos de esteticismo do sofrimento humano e de violência.

Por um lado, como diz Hal Foster, este é o pior momento para se tornar pós-crítico, enquanto o mundo enfrenta problemas com terrorismo, migrações, pobreza, desastres ecológicos e mudanças climáticas. Todos esses fenômenos requerem abordagens críticas e (novas) teorias críticas. Por outro lado, há também esse tipo de cansaço com as humanidades militantes e engajadas. Nas últimas décadas, as humanidades estavam lutando pela justiça, empoderando os oprimidos, dando voz aos subalternos, e isso certamente não é uma coisa ruim. No entanto, talvez nós (também a geração mais jovem) precisamos de um pouco de calma. Nós não somos todos lutadores. Nem todos os estudantes, nem todos os estudiosos querem (e precisam) lutar pela justiça. Mesmo que sejam bons cidadãos e pensadores críticos. Agora o problema é “podemos realmente praticar algo que poderia ser chamado de ciência lenta ou humanidades calmas?”. Talvez você estude algo porque você gosta do problema, não porque sua pesquisa e escrita pode transformar a consciência, que era a ideia marxista. Talvez você apenas goste da história para seu próprio bem. Talvez você aprecie contemplar o passado e experimentar fontes arquivísticas e históricas.

Esta é uma escolha individual. Eu entendo isso, porque estamos vivendo em um tempo permanente de conflito, em zonas de conflito e precisamos ser críticos. Assim, também estou ciente de que a crítica é necessária, mas também estou convencida de que não é suficiente criticar o presente. Como eu disse antes, também precisamos de alguma visão ou cenários do futuro. O pós-modernismo era realmente dominado pela teoria crítica e era cético quanto à utopia; criticava a utopia como uma espécie de visão totalitária que levou à violência, e não às libertações – o que era, é claro, certo em termos de nazismo e comunismo como formas de regimes totalitários. Os estudiosos hesitaram mesmo em usar o termo utopia, que era quase como um conceito proibido. Agora ele está voltando, mas é entendido de maneiras diferentes.

 

GB: Há mesmo um recente resgate dos trabalhos de Ernst Bloch, princpalmente do seu livro “O Princípio da Esperança”.[8]

ED: Este é um livro muito importante e clássico. Há também novas ideias de esperança que vem de pessoas como Jonathan Lear e de filósofas feministas que estão interessadas na esperança radical e crítica. Dentro de métodos emergentes nas ciências humanas e sociais eu observo uma ideia interessante de transformar certos conceitos (e valores?) em métodos de pesquisa.[9] Este é um movimento muito interessante. Yasemin Ipek Can, uma estudante de doutorado em Stanford, está trabalhando em questões políticas na Síria e está usando a esperança como um método e uma categoria analítica e questiona como podemos realmente criar uma esperança performativa e que incentive de fato as pessoas a agirem.

Talvez eu possa apresentar algumas ideias do pós-humanismo aqui. Um aspecto importante do giro ontológico é a sua contribuição para a discussão sobre “questões de grande alcance” [big picture questions], como o que significa ser humano e o que queremos dizer com vida, questões que são feitas em um novo contexto. Mudanças profundas no nosso pensamento sobre estas questões são estimuladas pelo progresso da tecnologia, das neurociências e das ciências biológicas, especialmente a biologia molecular. Os biólogos estão bombardeando-nos com ideias de identidade microbiana e declarações de que somos de fato holobiontes simbióticos, que “nunca fomos indivíduos” ou mesmo que “nunca fomos humanos”.[10] De fato, a partir desse ponto de vista, se você tem dois quilos de espécies não humanas em nossos corpos, como podemos afirmar que somos puramente humanos? O que significa ser humano? Ou, o que significa estar vivo ou estar morto? A ideia do que está morto e do que está vivo é muito ambígua. Seu corpo pode ainda estar vivo (graças aos sistemas de suporte à vida), mas seu cérebro está morto. O que isso significa para você? Você está pronto para ser um provedor de transplantes de órgãos. Por outro lado, não há nada mais vivo do que um cadáver decadente que se torna um habitat para várias espécies.

Não posso resistir a mencionar uma diferença ambígua entre animais humanos e animais não-humanos. Podemos imaginar o conhecimento do passado (que eu não limitaria à história) que se basearia na coautoria multiespécies? Primatólogos desenvolveram uma versão da linguagem de sinais e eles podem se comunicar com primatas.[11] Assim, que tal discutir um testemunho não-humano em primeira pessoa como fonte histórica. Uma historiadora da arte, Concepción Cortés Zulueta, analisa um vídeo online intitulado “Michael’s Story, Where He Signs about His Family”.  Neste vídeo, um gorila macho usa uma versão modificada da Língua de Sinais Americana (ASL) para responder à pergunta “o que você pode me dizer sobre sua mãe?”. Zulueta afirma que o vídeo pode ser entendido como um “relato em primeira pessoa” (ela também chama de “testemunho”).  Assim, alguns animais podem comunicar suas próprias histórias. Esse tipo de relatos nos desafiam a pensar sobre o que constitui uma evidência histórica e um testemunho pessoal. Mais importante ainda, eles nos obrigam a pensar sobre o próprio conceito de animal, a crença de que só os seres humanos podem narrar.[12] Este é realmente um desafio que surge da história animal e tais considerações podem anunciar uma grande mudança nas formas em que pensamos sobre a obtenção de conhecimento do passado.

Ainda estamos debatendo o pós-modernismo que questionava os fundamentos do conhecimento histórico (relações entre história e literatura, fato e ficção, uma ideia de objetivismo e verdade), mas penso que isso era apenas um passo preliminar para o que está surgindo agora. Se observarmos discussões sobre a compreensão biológica da vida, o antropoceno e a mudança climática que nos levam a um tempo profundo e geológico, o impacto das neurociências, então isso pode realmente mudar a ideia do que o conhecimento histórico é (ou deveria ser), como construí-lo, qual é o seu propósito, o que é o testemunho, o que é fonte histórica e tudo isso.

 

PS: Acabei de me lembrar do conto de Franz Kafka “Um relatório para a academia”, no qual um macaco, um macaco enjaulado, aprende a falar como humano, mas não sabe como era a vida na selva porque naquela época ele não possuía a linguagem para entender o que estava vivendo.

ED: O New York Times publicou um interessante artigo sobre o caso judicial no qual um macaco tinha um advogado que falava por ele.[13] Enfim, há todas essas questões desafiadoras que os historiadores costumam negligenciar e eu acho que essa não é a melhor abordagem, porque essas questões estão realmente desafiando as ideias clássicas de construção do conhecimento e de fontes de conhecimento.

 

GB: Em trabalhos recentes, você tem retomado o conceito de justiça epistêmica de Miranda Fricker como uma conduta ética em busca de “neutralizar a posição privilegiada do conhecimento ocidental em relação a outras formas de conhecimento”. Isso nos leva a pensar, primeiramente, em possíveis instrumentos discursivos capazes de subverter essa hierarquização do conhecimento. Um exemplo que eu tenho utilizado no meu próprio trabalho é o filme de Werner Herzog “Onde sonhas as formigas verdes”, sobre um embate jurídico entre aborígines e uma empresa de mineração na Austrália. Em resumo, o filme ilustra a demanda aborígene das terras sob bases cosmológicas e um sistema jurídico incapaz de reconhecer nessa afirmação algo além de “mito” ou “irracionalismo”. Mais do que uma luta narrativa, o que temos neste caso é uma luta política baseada na necessidade de levar a sério outras formas de conhecimento. Você poderia falar brevemente sobre como a produção de justiça epistêmica lança a necessidade de uma ponte entre o texto, a narrativa e a própria política?

ED: Eu espero que sim. Eu espero que possa, certo? Na medida em que eu ainda acredito que o conhecimento pode ser performativo e mudar a maneira como pensamos, estou absolutamente com você nessa. Por exemplo, a reivindicação de terras por povos indígenas ou nativos americanos é descartada porque a alegação é baseada em algo que o conhecimento ocidental chama de “mito”, “sonho”, e não é racional (de acordo com os padrões ocidentais). Mas, é claro, esta é a ideologia do conhecimento ocidental e “o mito da ciência” como forma única, preferível e dominante de construção do conhecimento. Eu não diria que os conhecimentos indígenas não são racionais, porque existem diferentes racionalidades, como diria Paul Feyerabend. A magia é perfeitamente racional em seu contexto. E funciona. O problema é como podemos incluir verdadeiramente vários modos não-ocidentais de conhecimento e conhecimentos indígenas em um corpo de conhecimento global. Esse é o problema, mas nós realmente queremos incluir esses conhecimentos?

Tenho que contar uma anedota para vocês. No 21º International Congress of Historical Sciences em Amsterdã (2010), eu organizei uma sessão sobre “Os direitos dos mortos”. Um colega holandês disse que não iriamos discutir os fantasmas dos antepassados. Mas uma participante de Lagos, na Nigéria, ficou furiosa, e com razão, eu penso. Ela disse que para sua cultura os fantasmas dos antepassados são parte da vida cotidiana. E isso não se refere sobre alguma crença irracional ou primitiva, mas sobre suas vidas e o modo como eles a coabitam com seus ancestrais. Havia outros historiadores de vários países africanos sentados na sala que se levantaram e começaram a aplaudir. Isso foi um realmente um evento. Era como uma exigência de que, mesmo que você pessoalmente não compartilhasse este sistema de crenças, você não deveria descartá-lo prontamente como se fosse algum tipo de convicção folclórica tola, porque para muitas culturas essas crenças possuem um estatuto importante não apenas como para-religiões, mas também como forma de conhecer e de ser. Eu respeito isso e pessoalmente aprendi muito com meus colegas que são nativos.

Então, eu estou muito ligada com o processo de construir formas holísticas, integrais e inclusivas de conhecer o passado que incluiria tanto o modo de conhecimento ocidental, bem como diferentes conhecimentos e formas de conhecer indígenas. O problema, claro, é institucional. Mas, no espírito do pós-secularismo, quando a academia está se “descompactando” e se tornando mais sensível e aberta para questões relacionadas com religiões e espiritualidade, pode haver maneiras de abraçar conhecimentos não-ocidentais no futuro. Não acho que nós possamos fazer isso dentro do quadro da história enquanto disciplina, porque ela é muita limitada. É por isso que eu evito usar o termo “história” e prefiro o termo “conhecimentos do passado”. Eu estou pensando como nós podemos realmente construir não histórias alternativas, mas alternativas à história. Essa é uma ideia proposta por [Arjun] Appadurai em seu importante artigo “History’s Forgotten Doubles” publicado em History & Theory (1995). Isso é possível, creio eu, mas precisamos nos tornar mais abertos a formas de conhecimento não europeias, não ocidentais, e a melhor maneira de ser aberto é entrar em contato com pessoas que estão pensando de maneiras diferentes. Por exemplo, se você tem amigos que são nativos, eles podem te ensinar sobre suas próprias maneiras de conhecer e de ser. O que é importante pra mim a este respeito é que você não pode aprender tal conhecimento a partir de livros, em uma maneira abstrata. Você aprende pela prática e por imitação, então é claro que você deve ter um professor/mestre. Depois de um tempo ele torna-se parte do seu conhecimento geral, tão normal como todo o resto. Ele também fornece uma certa sabedoria prática que falta ao conhecimento científico.

Eu acho que a ideia da amizade como um método pode estar em jogo aqui. Eu tenho um amigo que realmente me ensinou muito. Ele é um indígena americano, e a primeira pergunta que me fez quando o conheci pela primeira vez foi: “Qual seu animal totêmico?”. Eu sou da Polônia, um país católico, e eu pensava que o totemismo e a ideia de animais totêmicos eram algo que pertencia à antropologia e às crenças “exóticas” [risos]. Nós realmente nos “esquecemos” sobre nossos passados “pagãos” em comum. Eu nunca havia pensado nisso como uma questão existencial séria. Ele continuou brincando comigo e disse: “Como você pode não saber qual é o seu animal totêmico? Então, quem está te guiando? Como você sabe como orientar seu comportamento, sua vida?”. Eu tive que contar isso para vocês porque foi transformador para mim. Claro que isso não tem nada a ver com uma ideia de “tornar-se nativo” [going native], ou com uma imagem de “nobre selvagem”. Pelo menos no meu caso, tratava-se de uma “vontade de conhecimento”, de curiosidade, de um constante aprendizado e ampliação de conhecimentos sobre vários modos de vida e de ser que possuem dimensões práticas. Eu disse para esse meu amigo que nós temos um provérbio na Polônia que diz que se você tem que cair, é melhor cair de um cavalo alto. E ele me disse “Não, é melhor você se tornar o cavalo”. Este é um exemplo de uma sabedoria prática que não pode ser aprendida com livros científicos (nem mesmo de literatura ou poesia) porque requer um contexto particular não associado com construções acadêmicas. Você deve cooperar ou fazer coisas e estar com alguém capaz de te introduzir a esse tipo de conhecimento. Mas, é claro, pode-se dizer que isso é o que queremos dizer com um relacionamento adequado entre professor-aluno. É proveitoso aprender de pessoas reais do que apenas a partir de livros. E aqui estamos de volta à ideia de presença – a presença de um professor e de um professor como presença.

 

GB: Mas a provável resposta da história tradicional seria: “Estou trabalhando com pessoas mortas, eu não posso entrar em contato com elas”, materialmente falando.

ED: Sim, é por isso que precisamos de uma abordagem antropológica. A história tradicional exigiria que você se distanciasse para que pudesse ser mais objetivo, mas você não pode ser objetivo e habitar o “ponto de vista de Deus” por causa de sua “situação” [situatedness]. Uma teoria dos conhecimentos situados é sobre isso (eu me refiro aqui ao importante ensaio de Donna Haraway).[14] A forma como você cria o conhecimento depende de quem você é e onde você está situado (um historiador é sempre uma parte de sua própria história). Porque você é do Brasil (América Latina), porque você é um homem, porque é jovem, porque é branco, heterossexual, cristão, etc. isso é realmente importante para o seu modo de pensar. Assim, você não pode obter uma espécie de objetividade entendida como um olhar para as coisas de um ponto de vista neutro, ou um ponto de vista de Deus. Não significa, no entanto, que não devemos ter uma ideia de objetividade que seja alcançável. Você pode (ou não) ter intenções de ser objetivo. Acho que o envolvimento pessoal é importante. Pessoalmente eu gosto de me disciplinar e praticar distância em minha pesquisa e em minha escrita.

 

PS: No Brasil temos o mesmo conjunto de perguntas em relação a recente entrada maciça de negros e negras na universidade. Passaram-se seis ou cinco anos desde que as ações afirmativas foram instaladas no Brasil e todo esse conjunto de questões sobre como validar as tradições negras, especialmente as religiosas, e todos os seus enredos entre sujeito e objeto de pesquisa. É um tema muito quente na academia brasileira hoje em dia e na história há essa tensão porque a legitimidade acadêmica ainda vem da história tradicional, objetivista, embora haja uma série de problemas trazidos por essas tradições dentro da academia que se chocam com ela.

ED: Mas isso vai mudar a academia. Esses colegas estão muitas vezes pensando de maneiras diferentes sobre o passado e em maneiras de abordá-lo e eles tem direitos epistêmicos para isso. Quer dizer, eles têm direitos de recuperar esse conhecimento. É igualmente importante para a sua identidade como o conhecimento ocidental é para a nossa. Esse processo de “indigenizar a academia”[15] está (lentamente) a transformado em regiões como a Austrália (mas também no Canadá e em alguns estados dos EUA). Isso acontece também porque as humanidades ecológicas são muito populares e importantes nesse momento. Os conhecimentos e formas de conhecimento indígenas são importantes para a construção de uma “epistemologia sustentável”.

 

PS: Em um de seus artigos, você se refere à ideia de Hayden White de uma “constituição ancestral retroativa” e sua distinção entre passados históricos e passados biológicos. Você se pergunta sobre o que aconteceria se um determinado grupo escolhesse o não-humano como seu ancestral. Tanto Hayden White quanto a sua reflexão revelam – eu tomo os riscos porque eu formulei essa questão – um traço voluntarista no sentido em que os humanos escolhem seus ancestrais em vez de esses serem impostos para eles. O que gostaríamos de saber, então, é qual é o papel da agência humana na seleção desses ancestrais e qual seria o papel da agência humana na própria história se nos confrontássemos com o retorno da transcendência, como diz Isabelle Stengers, ou se tivéssemos que confrontar as consequências de um carma geofísico, como diz Bruno Latour.

ED: Para alguém que é de um país católico como a Polônia, falar sobre ancestrais animais soa como uma heresia, certo? Mas, eu gosto de praticar esse tipo de “desobediência epistêmica”. Eu trato esse interesse pelo novo animismo e pelo totemismo (que relaciono com a possibilidade de construir modernidades alternativas), como algo libertador.[16] O sujeito humano foi criticado por um longo tempo. Vemos isso nas abordagens anti-humanistas de Michel Foucault e Jacques Derrida, que estavam escrevendo sobre o fim do homem. Certamente, eles demonstram que uma certa compreensão do homem associada ao sujeito branco, burguês, sujeito da classe média, está chegando ao fim. Essas ideias foram levadas mais adiante pelo pós-humanismo e suas críticas ao antropocentrismo e ao chauvinismo especista. Assim, neste contexto, vamos especular sobre a escolha de ancestrais não-humanos. Seria uma espécie de ato rebelde no quadro da visão de mundo europeia.

É claro que, para as culturas que praticam o animismo e o totemismo e para os estudiosos que trabalham com o novo animismo (como Graham Harvey), isso não é nada incomum. O novo animismo é uma espécie de epistemologia relacional e uma ontologia das relações. Você é um animista se você é capaz de entrar e manter relações com seres humanos e não-humanos. Isso não é tão radical como parece ser, já que todos nós somos animistas. Temos um tipo de relação animista com iPods, laptops, carros, etc. Acho que foi Achille Mbembe quem disse que “o capitalismo se tornou uma forma de animismo”.

 

GB: A necessidade de abordagens interdisciplinares é um tópico relativamente antigo na historiografia. O seu trabalho tem procurado construir pontes entre história, história da arte, antropologia, arqueologia, estudos literários, filosofia, etc. A ligação entre diferentes formas de expressão disciplinar é, em minha opinião, o resultado da necessidade imperativa de um maior compromisso entre estudiosos e assuntos de esfera pública no contexto de nossos “tempos catastróficos”, como disse Isabelle Stengers. Você acha que suas reivindicações por humanidades futuristas ou pré-figurativas requerem novos comportamentos acadêmicos que poderiam construir uma linguagem comum entre disciplinas?

ED: Definitivamente, e eu estou pensando aqui sobre a assim chamada “interdisciplinaridade radical”. De fato, na minha própria pesquisa, eu pratico – o que eu chamo – uma abordagem complementar que vai além das abordagens interdisciplinares e eu defendo uma fusão de disciplinas. Portanto, não se trata apenas de uma espécie de interdisciplinaridade entre as ciências humanas e as ciências sociais, porque isso já acontece há muitos anos. Agora, temos cada vez mais problemas de pesquisa que requerem uma interdisciplinaridade radical ou uma abordagem complementar, que é a cooperação entre as humanidades, as ciências sociais e as ciências da vida, as ciências naturais, as ciências cognitivas, as neurociências. Eu diria inclusive, e isso pode ser demasiado herético para alguns historiadores, que em determinadas áreas de pesquisa, as humanidades não só podem reduzir, mas até mesmo bloquear a nossa compreensão de certos fenômenos. Por exemplo, como podemos entender o que é a vida sem a biologia, no presente? Um sociólogo britânico e teórico social, Nikolas Rose, que está trabalhando sobre a relação entre as ciências sociais e biológicas, diz que “não é a filosofia, mas as ciências da vida que estão levando a uma mudança epistêmica em nosso relacionamento com o humano”.[17] Ele tem razão. Há certos temas – mas é claro que nem todos os temas são assim – que realmente exigem esse tipo de cooperação.

Por exemplo, há uma subdisciplina em desenvolvimento chamada “história ambiental do Holocausto”. Agnieszka Kłos, Jacek Małczynski e Mikolaj Smykowski, meus alunos de doutorado, estão trabalhando neste tópico. Eles estão interessados – entre outras coisas – no exame de eco-testemunhas e eco-evidências. O que significa falar de uma árvore como uma eco-testemunha entendida em termos não metafóricos e poéticos? Claro, você pode fazer isso com um uso de ciências forenses como a botânica forense. Por exemplo, as plantas podem indicar onde estão as covas coletivas e as árvores que crescem lá contêm elementos químicos específicos. Assim, estamos entrando aqui em questões extremamente empíricas e em pesquisa científica. Assim, os estudantes começam com história ou antropologia cultural, mas logo percebem limitações nessas disciplinas e começam a ler ciências forenses, antropologia física, ciências da vida, geografia, geologia, etc. Eu recomendaria um livro importante de uma jovem estudiosa, Caroline Sturdy Colls, “Holocaust Archeologies” (2015). Ela é uma arqueóloga forense que também está usando depoimentos e documentos orais. Eu gosto quando ela diz que a arqueologia forense e a história devem “complementar e suplementar” umas às outras. Penso que esta abordagem complementar, em vez de interdisciplinar, anuncia um novo futuro. Colls representa uma nova geração de estudiosos que promovem uma abordagem biohumanista. Mas uma situação semelhante ocorre com a história animal: ela não estaria completa sem a etologia ou os estudos de cognição animal. Se você estudar fontes históricas e você encontrar uma descrição do comportamento animal, por exemplo, um tigre que ataca um ser humano. Os historiadores podem interpretar isso de uma maneira diferente em comparação com a interpretação de um etólogo, que pode reconhecer um determinado padrão de comportamento animal e explicá-lo de maneira diferente (eu recomendo o livro The Historical Animal, editado por Susan Nance). Assim, aqueles alunos que gostam de pesquisar temas tão desafiadores como animais, plantas e meio ambiente, etc. devem pensar sobre entrar no espaço das biohumanidades.

Mas eu também respeito a história positivista, que eu entendo como uma “oficina filológica”, e o conhecimento das ciências auxiliares. Seria provavelmente impossível seguir os pressupostos do velho estudo filológico da história: conhecer todas as fontes relacionadas ao seu tópico de pesquisa, ser capaz de ler textos gregos e latinos. Na Polônia, por exemplo, os estudantes de história não aprendem latim e grego mais. Eles costumam escolher a história contemporânea, porque não requer conhecimento dessas línguas. Alguns “desperados” estudam história antiga ou medieval, mas esse é um campo muito exigente. Estou interessada em coisas diferentes, mas eu aprendo com meus colegas, historiadores tradicionais que estudam cada nota de rodapé, conferem minhas citações e dizem “você pulou uma palavra aqui”, “você esqueceu de uns parênteses ali”. Admiro-os já que eles me ensinam precisão e atenção aos detalhes. Eu respeito isso e tento ensinar aos meus alunos o mesmo.

 

PS: Esta atenção ao detalhe poderia ser uma característica da ciência lenta [slow science]?

ED: De certa forma, pode ser uma parte da ciência lenta, de fato. Você deve ter mais tempo para pensar, para digerir sua pesquisa, para reescrever e corrigir seus textos. Eu não gosto de uma expressão: “produção do conhecimento”. Prefiro pensar que crio ou construo conhecimento. A universidade como uma fábrica capitalista que produz pessoas com certificados – esta não é a maneira que eu penso sobre academia. Portanto, eu gosto da ideia de uma ciência lenta. No entanto, eu li um artigo interessante de um estudioso brasileiro que afirma que no caso de “periferias epistêmicas”, como a América Latina, a produção de “ciência rápida” foi frutífera e transformadora para acadêmicos porque os estudiosos latino-americanos tornaram-se mais visíveis na academia internacional, em publicações, etc. Isso é verdade. Você começa a publicar mais em inglês e a participar mais em conferências internacionais. Eu penso que a academia latino-americana está se tornando cada vez mais interessante e importante para a academia internacional. Para mim agora, ela é muito mais interessante que a academia francesa (a propósito, recentemente eu ouvi Francois Hartog dizer que “o futuro da história não está na França”). Eu não acho o pensamento francês atual tão interessante quanto a teoria francesa foi nos anos 70, 80 e 90. Quem está lá? Bruno Latour, claro, Alain Badiou, Catherine Malabou, etc. Mas uma forma latino-americana de teorizar e filosofar é diferente e traz algum frescor ao pensamento que por décadas foi ocupada pela filosofia francesa, alemã e inglesa. Então, boa sorte.

 

GB: Falando sobre a relação entre pesquisadores e os problemas globais contemporâneos, eu tive a oportunidade de conversar com você sobre a recente queda da barragem de rejeitos em Mariana e como isso afetou e afeta a parte mais pobre da população local, bem como povos indígenas e todos os que dependem do rio para a vida cotidiana. Você então me contou sobre uma forte correlação entre ecocídios e genocídios. Se seguirmos o diagnóstico de [Dipesh] Chakrabarty sobre o fim da distinção humanística entre história natural e história humana na era do antropoceno, que efeito você pensa que essa condição poderia ter no campo historiográfico?

ED: Esta pergunta deve ser endereçada a sua geração desde que vocês compreendem melhor as conexões entre ecocídios e genocídios do que a minha. Quando eu propus um curso sobre ecocídios e genocídios alguns colegas ficaram bastante chateados. Eles pensaram que eu igualava esses dois fenômenos. Quando estudamos ecocídio e genocídio em uma perspectiva comparativa, vemos semelhanças de processos que tornam tais desastres possíveis, tais como: uma abordagem instrumental aos humanos e à natureza, a crueldade institucionalizada, a desumanização e despersonalização, a profanação da vida e do corpo, a destruição em massa e métodos de massacre, mas também a falta de respeito e a ganância.

Falando sobre a comparatividade radical, um dos textos mais interessantes que eu li recentemente era sobre a tanatologia comparativa e a pan-tanatologia. Vocês provavelmente não adivinhariam sobre o que é isso. Não se trata de uma comparação cultural entre costumes funerários. Trata-se de comparar as reações à morte entre seres humanos e animais não humanos.[18] Isto é novo para mim. Eu li há alguns dias e fiquei espantada com esse tipo de estudos feitos por etólogos. Assim, esta ideia de comparatividade não se limita à perspectiva transcultural, mas torna-se interespécies. Isso é realmente desafiador para a reflexão histórica.

Desculpe, eu desviei de sua pergunta, mas diria que, no caso do ecocídio e do genocídio, este é um bom tema para mostrar como a história natural se sobrepõe à história humana. Estudar esse problema mostra que essa distinção entre história humana e não-humana (natural) se torna não-operacional. Há algum tempo já Bruno Latour e Donna Haraway propuseram ir além de uma oposição natureza / cultura e usaram o termo natureza-cultura (nature-culture). Uma distinção entre uma ideia de história natural versus história humana deve ser superada (e já é, pelo menos em um campo como a história ambiental). Mas precisamos de mais ideias que surjam da análise de materiais de pesquisa. Seu tema de interesse – a tragédia de Mariana, poderia ser um caso adequado para estudar as relações entre desastres humanos e naturais em uma perspectiva comparativa. Talvez te permita escrever uma “história naturocultural” deste evento.

 

PS: Você provavelmente já leu o livro “Metafísicas Canibais” de Eduardo Viveiros de Castro, na qual ele usa um dispositivo fictício para estruturar o livro. Estávamos pensando sobre o livro que você está escrevendo sobre Humanidades afirmativas e o conhecimento não-antropocêntrico do passado. Você poderia nos contar um pouco mais sobre o livro? Como está indo o trabalho? Se você não conseguir terminá-lo, você usará algum dispositivo ficcional como Viveiros de Castro?

ED: Eu me tornei impaciente com o discurso “poeirento” das humanidades. Depois do pós-estruturalismo, da desconstrução e do narrativismo, sinto que aprendo cada vez menos com as humanidades. É por isso que há vários anos comecei a ler periódicos como Nature, Science, Current Biology semanalmente, mas também artigos e livros publicados em áreas como ciências forenses, geografia e geologia. Claro, eu ainda leio e aprendo com filósofos, como Deleuze e Guattari, Derrida, Foucault, Latour, etc. Eles são absolutamente cruciais. Eu também sou fã de Walter Mignolo (eu amo seu “The Dark Side of Modernity“), Boaventura de Sousa Santos, assim como Rosi Braidotti, Donna Haraway e Karen Barad. No que diz respeito a Viveiros de Castro, eu gosto da sua ideia de multinaturalismo e da forma como desenvolve a ideia de perspectivismo ameríndio.

Em meu livro, eu prefiro usar o termo “humanidades pré-figurativas”, porque muitos estudiosos podem associar “humanidades afirmativas” com ações afirmativas, e não é isso que eu quero dizer. Eu entendo o “afirmativo” como algo que vai além de uma política de medo, vitimização, catástrofes e extinção de espécies. Quero discutir a possibilidade de construir cenários não-apocalípticos de futuro, mesmo que isso vá contra o nosso tempo, “a despeito do tempo”, como diria [Rosi] Braidotti. Fui inspirado pela ideia de Braidotti de políticas afirmativas, ética afirmativa e subjetividades afirmativas.[19]

No título, eu também provavelmente usaria o termo “não-antropocêntrico” ou “pós-antropocêntrico”. É claro que não quero descartar a história humana, mas também vejo suas limitações. Estou interessada em como humanos e não-humanos (natureza, animais, plantas, coisas), podem ser considerados agentes históricos. Em um dos capítulos, descrevo como a história animal está mudando a profissão histórica. Outro capítulo é sobre o problema do arquivo como um coletivo multiespecífico. Os fungos são agentes bastante poderosos. Por exemplo, você não pode ler certas fontes, porque eles estão destruídas por fungos ou o papel é comido por insetos. O livro também trata de vários subcampos emergentes da história, tais como os campos estimulados pelo pós-humanismo: história ambiental, biohistória, neurohistória ou zoohistória. É claro que essas tendências vanguardistas não dominarão a reflexão histórica, mas desafiam nossa profissão. Impõem-nos a reavaliar as definições tradicionais da história, a ideia do tempo cronológico, a compreensão das fontes e das evidências históricas, e talvez até mesmo empurrar a profissão histórica para além da história.

 

PS: Precisamos de uma vanguarda acadêmica então?

ED: Definitivamente sim. Essas correntes definem fronteiras da disciplina. Como eu disse, eu aprendo com meus colegas que são historiadores tradicionais fazendo história política e eu realmente respeito eles. Eu aprendo com sua acurácia e sua atenção aos detalhes. Isto é uma coisa que eu gostaria de dizer em conclusão: alguns historiadores progressistas reclamariam e diriam “oh, vocês sabem, os historiadores tradicionais são muito resistentes às correntes atuais”, mas há uma maneira de coexistência pacífica entre vanguardistas e historiadores tradicionais. Basta mostrar que você é um bom historiador, o que significa que você baseia o seu estudo em fontes históricas (elas podem ser de natureza muito diferentes, como visual ou material, testemunhos orais, literatura, etc.) e mostrar que você sabe como usá-las e fazer uma investigação histórica adequada. No caso de uma dissertação de mestrado, eu encorajo os alunos a trabalharem com fontes históricas e que peçam a um colega, que eles considerem um historiador ou historiadora tradicional, que revise seu trabalho. É assim que podemos neutralizar os conflitos entre historiadores que praticam a história “real” e aqueles que “especulam” sobre o passado. Os alunos estão escolhendo tópicos de pesquisa por si só, e eles podem trabalhar em tudo o que desejem, mas seu trabalho deve ser baseado em fontes. Assim, a especulação teórica é bem-vinda se for fundamentada na análise de evidências históricas. Existe uma maneira de pacificar conflitos potenciais que às vezes existem entre os historiadores e teóricos da história. Mas você deve estar disposto a fazer isso. Ambos os lados devem estar dispostos a cooperar.

 

PS: E apenas por curiosidade, você descobriu qual é o seu animal totêmico?

ED: Sim, eu acho – é algo como um lagarto ou uma salamandra. No ano passado eu estava dando uma palestra sobre novo animismo e humanidades afirmativas em Vitória/ES e alguém do público me perguntou qual era o meu animal totêmico e, ao mesmo tempo, o público notou um pequeno lagarto andando na parede e eu disse: “veja, meu ancestral está aqui”. Havia um aluno nativo e ele ficou feliz com essa pequena intervenção porque – como ele disse – isso legitimou a presença de crenças indígenas. Então, isso pode ser dito como uma piada, mas talvez devêssemos ser mais sérios acerca disso. Quero dizer, eu tento aprender algo novo e diferente em comparação com o meu tipo de cultura ocidental. Talvez o animismo seja apenas uma abordagem tão apropriada [quanto outras] para o mundo e tenha um “valor de sobrevivência”. Além disso, eu gosto da ideia de história multiespécies e de conhecimento do passado construído por coletivos multiespécies, e acho isso interessante e desafiador. Eu acho que poetas e escritores (como Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector), bem como nossos colegas que são estudiosos nativos ou estudiosos que trabalham com conhecimentos indígenas e cientistas pesquisando neurologia de plantas e comportamento animal, podem nos ajudar a pensar nesta direção.

 

Ouro Preto, 2 de agosto de 2016

 

 


NOTAS

 

[1] Sobre performatividade e esquerda – ver texto de 2011 citado.

[2] Cf.: Postcolonial or Postdependence Studies? special issue of Teksty Drugie/Second Texts, no. 1. 2014.

[3] Jerzy Topolski, Methodological Problem of Application of the Marxist Theory to Historical Research. Social Research, vol. 47, no. 3, 1980 [458-478] and his, Polish Historians and Marxism after World War II, in: Studies in Soviet Thought, no. 43, 1992. Kluwer Academic Publishers [169-183]; Elizabeth Kridl Valkenier, The Rise and Decline of Official Marxist Historiography in Poland, 1945-1983. Slavic Review, vol. 44, no. 4, Winter, 1985 [663-680]; Zenonas Norkus, Modeling in Historical Research Practice and Methodology: Contributions from Poland. History and Theory, vol. 51, no, 2, May 2012 [292-304]; Krzysztof Brzechczyn, Between Positivism, Narrativism and Idealisation in Polish Methodology of History. Historein, vol. 14, no. 1, 2014 [75-87].

[4] Jerzy Topolski, The Activistic Conception of Historical Process, Dialectics and Humanism, no. 1, 1975 [17-30].

[5] Jerzy Topolski, Methodology of History, trans. by Olgierd Wojtasiewicz. Dordrecht and Boston: D. Reidel Publishing Co., 1977 & Narrare la storia. Nuovi principi di metodologia storica. Milano: Bruno Mondadori, 1997. Ver também: Raffaello Righini, Jerzy Topolski. In Memoria. Nuova Rivista Storica (Italy), vol. 84, no, 1, 2000; Patrizia Fazzi, Narrare la storia: la lezione di Jerzy Topolski. Diacronie. Studi di Storia Contemporanea, vol. 2, no. 2, 2015: Costruire. Rappresentazioni, relazioni, comunità (http://www.studistorici.com/2015/06/29/fazzi_numero_22/ – acesso em 16 de dezembro de 2016.

[6] John Greco, „Virtue Epistemology”, in: The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2004 Edition), ed. by Edward N. Zalta (http://plato.stanford.edu/archives/win2004/entries/epistemology-virtue/ – acesso em 16 de dezembro de 2016; Virtue Epistemology: Essays on Epistemic Virtue and Responsibility, ed. Abrol Fairweather e Linda Zagzebski. Oxford: Oxford University Press, 2001; Intellectual Virtue: Perspectives from Ethics and Epistemology, ed. Michael DePaul e Linda Zagzebski. Oxford: Clarendon Press, 2003.

[7] Hal Foster, “Post-Critical.” October, vol. 139, Winter 2012; Jeff Pruchnic, „Post-critical Theory. Demanding the Possible”. Criticism, vol. 54, no. 4, Fall 2012.

[8] Ivan Boldyrev, Ernst Bloch and His Contemporaries: Locating Utopian Messianism. London, New Delhi, New York, Sydney, Bloomsbury Publishing Inc., 2014; Thompson, Peter. and Žižek, Slavoj. (eds) The Privatization of Hope: Ernst Bloch and the Future of Utopia, SIC 8. Duke University Press 2013 ;Jamie Owen Daniel and Tom Moylan. Not Yet: Reconsidering Ernst Bloch. Verso, London, 1997.

[9] Jonathan Lear, Radical Hope: Ethics in the Face of Cultural Devastation. Harvard University Press, 2008; Hirokazu Miyazaki, The Method of Hope. Anthropology, Philosophy, and Fijian Knowledge. Stanford: Stanford University Press, 2004; Hope and Feminist Theory, ed. by Rebecca Coleman and Debra Ferreday. Routledge 2011; Lisa M. Tillmann-Healy, “Friendship as Method.” Qualitative Inquiry, vol. 9, no. 5, 2003: 729-749; Ruth Levitas, Utopia as Method: The Imaginary Reconstitution of Society. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2013; Fredric Jameson, Utopia as Method, or the Uses of the Future, in: Utopia/Dystopia: Conditions of Historical Possibility, ed. by Gordin, Michael D., Tilley Helen, and Prakash Gyan. Princeton University Press, 2010: 21-44.

[10] Scott F. Gilbert, Jan Sapp and Alfred I. Tauber, „A Symbiotic View of Life: We Have Never Been Individuals.” The Quarterly Review of Biology, vol. 87, no. 4, December 2012; N. Gane, When We Have Never Been Human, What Is to Be Done?: Interview with Donna Haraway. Theory, Culture & Society, 23 (7-8), 2006. “We Have Never Been Human” é também o título da primeira parte do livro de Haraway When Species Meet. Minneapolis 2008.

[11] Uma conhecida primatologista, Sue Savage-Rumbaugh, publicou um artigo com coautoria de três chimpanzés. S. Savage-Rumbaugh, Kanzi Wamba, Panbanisha Wamba, and Nyota Wamba, ‘Welfare of Apes in Captive Environments: Comments On, and By, a Specific Group of Apes’, Journal of Applied Animal Welfare Science, 10 (1), 2007. Naturalmente, os chimpanzés (Kanzi Wamba, Panbanisha Wamba e Nyota Wamba) não escreveram fisicamente este artigo, mas comunicaram-se com a pesquisadora (Sue Savage-Rumbaugh) e responderam a perguntas sobre suas próprias necessidades. O artigo tem despertado grande interesse porque enfraquece o monopólio humano sobre a autoridade epistêmica e, portanto, mostra o potencial para a autoria de várias espécies e a construção de conhecimento transespécies. Ver também sobre este assunto: G.A. Bradshaw, An Ape Among Many: Co-Authorship and Trans-Species Epistemic Authority, Configurations 18, 2011.

[12] Concepción Cortés Zulueta, “Nonhuman Animal Testimonies: A Natural History in the First Person?”, in: The Historical Animal, ed. by Susan Nance. Syracuse, New York: Syracuse University Press, 2015.

[13] Charles Siebert, “The Rights of Man … and a Beast.” The New York Times Magazine, April 27, 2014.

[14] Donna Haraway, “Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective.” Feminist Studies, vol. 14, no. 3, Autumn, 1988: 575-599.

[15] Indigenizing the Academy: Transforming Scholarship and Empowering Communities, ed. by Devon Abbott Mihesuah and Angela Cavender Wilson. Lincoln and London: University of Nebraska Press, 2004.

[16] Ewa Domanska, Retroactive Ancestral Constitution and Alter-Native Modernities. „Storia della Storiografia”, vol. 65, no. 1, 2014: 61-75.

[17] Nikolas Rose, “The Human Sciences in a Biological Age.” Theory, Culture, Society, vol. 30, no. 1, January 2013, p. 25.

[18] James R. Anderson, Alasdair Gillies, Louise C. Lock, Pan thanatology. Current Biology, vol. 20, no. 8, 2010, s. 349 [349–351]; James R. Anderson, Comparative Thanatology. Current Biology, vol. 26, no. 13 July 11, 2016 [543–576].

[19] Rosi Braidotti, “In Spite of the Times. The Postsecular Turn in Feminism.” Theory, Culture and Society, vol. 25, no. 6, 2008 [1-24] & “Conclusion: The Residual Spirituality in Critical Theory: A Case for Affirmative Postsecular Politics,” in: Transformations of Religion and the Public Sphere, ed. by Rosi Braidotti, Bolette Blaagaard, Tobijn de Graauw, Eva Midden. Palgrave Macmillan, 2014 [249-272].

 


 

REFERÊNCIAS

DOMANSKA, Ewa. Retroactive Ancestral Constitution and Alter-Native Modernities. Storia della Storiografia, v. 65, n. 1, 2014, p. 61-75.

________. Beyond Anthropocentrism in Historical Studies. Historein. A Review of the Past and Other Stories [Greece], v. 10, 2010, p. 118-130.

________. The Material Presence of the Past. History and Theory, v. 45, n. 3, 2006, 337-348.

________. El “viraje performativo” en la humanística actual. Criterios. Revista Internacional de Teoría de la literatura, las Artes y la Cultura (Cuba), v. 37, 2011, p. 125-142.

________. Hayden White: Beyond Irony. History and Theory, v. 37, n. 2, 1998, p. 173-181.

 

 

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