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Proust Suburbano

A ondulação do mar nas montanhas – Homenagem a João Adolfo Hansen

 

Em uma manhã muito fria de julho do ano de 1996, eu estava em Ouro Preto. À altura, eu era professor do Ensino Médio em duas escolas particulares, e de uma Universidade particular. Lecionava Leitura e Produção de Texto no Ensino Médio, e Redação na Faculdade de Comunicação Social. Estava em férias. Fazia um ano que eu entrara no Mestrado. O Professor que me orientava (e me orientou também no Doutorado), João Adolfo Hansen, oferecia uma disciplina de Pós-Graduação lato sensu, uma especialização em Arte Barroca na UFOP.

Eu era seu aluno na USP. Fui assistir às suas aulas em Minas como ouvinte, aproveitando estar em férias. Uma das aulas do Professor Hansen daquele curso, que não existe mais, eu gravei num aparelho eletrônico portátil a pilha, que não existe mais. O registro da fita K-7, que não existe mais, eu transcrevi, eu esqueci que o transcrevi, até que, em arquivos de meu computador, encontrei o documento. Publico a transcrição do início daquela aula. O propósito é fazer memória e homenagear o Professor João Adolfo Hansen, a quem, recentemente, a Congregação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP conferiu o título de Professor Emérito.

No dia 15 de julho de 1996, o Professor João Adolfo Hansen iniciou sua aula assim: “para a gente medir um conjunto de procedimentos, um conjunto de técnicas, um conjunto de modos de se operar o pensamento, de modos de produzir a representação que funde esta tradição… várias estratégias teóricas, mas que, principalmente, assume uma… que a gente poderia chamar teológico-político-ética-retórica que funde várias disciplinas nos séculos XVII e XVIII, que definem o jeito de pensar… Essa reprodução vocês conhecem, já deve ter sido vista nas suas andanças aqui por Minas… isso é da Nossa Senhora do Ó de Sabará e é um dos painéis da igreja toda, a capela toda está cheia… Vocês encontram esta espécie de ornamento em toda parte… essa é a estrutura que nós encontramos representada aqui… vocês encontram toda essa ornamentação… uma ornamentação que, provavelmente, começa a ser feita no século XV na Itália e que a gente tem contato com essa arte chamada maneirista e que ainda tem em voga uma forma oval… uma forma de uma onda, a forma de uma onda do mar. Como a capela é dedicada a Nossa Senhora, como Nossa Senhora é Maria, imediatamente eles pensavam na possibilidade de fazer uma espécie de trocadilho, quer dizer, Maria no plural a palavra latina mare…, Marias… os mares… encontra-se uma referência na Bíblia Maria, Maria, Maria como os mares do amor de Deus numa profundidade do amor de Deus… o infinito do amor de Deus etc. Agora, vocês se lembram, há uma referência na Bíblia, que conta que, Maria… casada com S. José, quando um dia aparece para ela o anjo, o anjo do Senhor e o anjo diz para ela […], quer dizer, em latim, e conceberás e parirás, como dizem os autores desta época. A Bíblia depois, quando mandou traduzir de maneira mais delicada no sentido de conceberás e darás a luz, a partir do século XIX, mas nessa época, ainda, eles usam o verbo parir, quer dizer, e conceberás e parirás. Vocês se lembram que, quando o anjo acaba de dizer isso, Maria começa um sobressalto e ela quase que dá um pulo para trás do susto, porque o susto é decorrência de descobrir a revelação de uma coisa infinita que vai acontecer com ela, quer dizer… naquele momento ela sente, já, no ventre, ela sente no ventre a presença de Deus. É claro? E ao mesmo tempo, ela se assustando, ela diz: Ó! Agora, esse Ó que ela diz é uma mistura de espanto, de susto, de medo, de resignação, porque ela já percebe, também, discretamente, na concepção, o futuro desse filho que ela vai ter, a morte de Cristo, ela já sabe tudo. Ela é uma Deusa, é claro? Nesse sentido a gente sabe que houve em Portugal o culto dessa Nossa Senhora do Ó, que era um […] popular associado ao parto e é composto provavelmente de mulheres, principalmente de mulheres grávidas, é claro? E há quem garanta que ele foi muito cultuado… Mas, aqui sim Nossa Senhora do Ó. Agora, não… no XVII e no XVIII, quando aparece a referência a esse tema, aparece também a referência a uma espécie de paradoxo, que é o seguinte, os autores, ou poetas, ou escritores de sermão, ou pintores, ou até filósofos, eles gostam muito de discutir ou de representar a seguinte proposta: eles perguntam como é possível o infinito ser contido no finito? É claro? Afinal, Maria é apenas uma mulher humana, é claro? E como ela pode ser a mãe de Deus? Ou seja, como que um ventre finito, pode conter o infinito? Ou num outro sentido, como que ela pode ser a mãe de seu Pai? Percebem? Porque ela é a mãe de Deus. Como ela pode ser a mãe de seu Pai, sendo a mãe de seu filho? É claro? Isso evidentemente dá um jogo bastante agudo de discussão teológica, mas que assume essa forma meta-representação. O artesão, no caso, dessa igreja, vocês percebem, depois de desenhar todos esses… essas plumas, que são uma alegoria, também, do mar, das ondas do mar… na forma de uma moldura oval, que é uma madeira, ele pôs um “S” que é a Senhora e depois do “S” um ponto e ele coloca depois um círculo e dentro do círculo ele coloca um outro círculo. Vocês percebem que, imediatamente, ele está propondo para nós uma figuração. Na igreja da Nossa Senhora do Ó, nós estamos vendo a representação da Nossa Senhora do Ó, não é isso? Hein, gente? É isso? Agora, com que recursos nós podemos pensar que a Nossa Senhora do Ó está sendo figurada? Nós percebemos uma forma que é uma forma que geometriza, de perspectiva, de maneira até bastante ingênua, vocês tem aqui um Ó dentro do Ó, mas ele está supondo que nós, ao olharmos isso, nós somos capazes de dar valores da História Sacra, da História Sagrada ao esférico, quer dizer, ele nos propõe uma metáfora do mistério. Nós deveríamos pegar… nós deveríamos descobrir que esse Ó maior que está circundando, em preto, o Ó menor, que provavelmente esse Ó maior deve ser o que? O espanto de Maria, o Ó da boca de Maria, falando Ó. Mas também o som Ó. Mas também o ventre de Maria. E aquele tracinho menor, que nós vemos dentro, deve ser o seu filho. Esse Ó é Cristo dentro dela, ao mesmo tempo Deus. Mas imediatamente deve produzir esse efeito… Mas como o infinito Deus aí é menor contido no maior que é finito? Será que não é ao contrário? Então, ao mesmo tempo, ele deve estar falando na possibilidade de… o Ó maior, que é Deus, que contém Maria. Então, a gente fica nessa espécie de jogo de espelho, quer dizer, nós vamos para frente e nós vamos para trás, nós definimos o pequeno pelo maior e nós definimos o maior pelo menor, sem sabermos direito do quê se trata. Nós temos aí uma representação nitidamente conceitual que se propõe como um emblema. Vocês percebem? Nós temos ao mesmo tempo uma forma visual que nós somos obrigados a ver, concordam comigo? É uma imagem plástica, mas ao mesmo tempo nós somos obrigados a arrumar uma leitura discursiva, nós temos que achar um discurso para explicar o… Ó. O que é uma coisa diferente, por exemplo, a gente sabe que a pintura nos exemplos a partir do século XVIII… eles mesmos se… quer dizer, a partir do XVIII o visual é visual, o que é plástico, é plástico e o discurso é discurso. Aqui não, aqui nós temos um tipo de figuração em que o plástico remete a um discurso que é […] da Bíblia ou da representação teológica e ao mesmo tempo o discurso teológico tem uma figuração plástica. Nós temos aí uma […] típica do emblema, em que vocês têm na verdade duas partes, quer dizer, o plástico é chamado na época, corpo, ele é visível, material e o discurso é chamado alma, ele é imaterial, ele é inteligível. Os homens artistas desse período que a gente chama Barroco, eles pensavam justamente assim a representação. Eles supunham que existe coletivamente um conjunto de referências sociais, tradicionais, no nosso caso, aqui, o discurso religioso, o discurso bíblico, o que a gente chamaria político. É claro? Agora, o modelo que eles se colocam sempre é esse: como representar numa matéria ou plástica ou discursiva, ou musical, como representar essa matéria nesse conteúdo discursivo? Então, eles fazem sempre a hipótese de que nós temos que fazer uma representação que é dupla, no seguinte sentido: ela deve ter um elemento plástico, mas também um elemento discursivo, propondo, então, para o receptor a possibilidade dele trabalhar em dois níveis, ele tem que trabalhar com o elemento plástico, é claro? O elemento plástico que figura o elemento discursivo. A gente tem que ter uma memória articulada para que a gente possa traduzir o elemento plástico. Agora, com que finalidade? Porque o tempo todo o espectador desse objeto, nesse tempo, trabalhava com dois grandes referentes, duas grandes referências. Há uma referência ao finito. O que é o finito? A dor de Maria, concordam, ou não? O seu ventre, o elemento muito material da reprodução humana, é claro? A própria dor… ou seja, o finito, a matéria, o limitado. E ao mesmo tempo… que é o infinito, a transcendência, Deus, o divino, o mundo das essências, ou seja, uma estrutura… polar em que há dois elementos, em que o espectador tem que pensar que todo elemento finito está relacionado a um elemento infinito e que todo infinito aparece em forma de finito, uma coisa que para a gente não funciona mais, desde a Revolução Francesa, desde que Deus morreu, Deus não é hipótese para nós, nós acreditamos apenas no finito, não é? Agora, aqui não, aqui o tempo todo, a hipótese é que a representação faz com que a gente veja um elemento material, sensível, mas esse elemento sensível ele não é autônomo, ele não é lido nunca, de forma alguma, num elemento espiritual inteligível que é o divino. Essa representação é sempre religiosa, mesmo quando o tema dela não é religioso, mesmo quando o tema dela é profano, mesmo quando ela fala de uma festa no palácio, mesmo quando ela propõe um poema de amor… ela pressupõe a presença de Deus. Nesse sentido que a gente poderia dizer que ela é uma representação que define uma forma mental, desde o 1600, no nosso caso, aqui, até o século XVIII, uma forma mental que supõe o tempo todo o que a gente poderia chamar o infinitivo da representação. Nesse sentido que a gente pode imaginar que a própria forma do Ó dentro do Ó, dentro do Ó é o modo de representar essa possibilidade de […] que Deus é perfeito. Se a gente pensar como um… antigo, Deus é perfeito, se Deus é perfeito, qual a forma de Deus? Evidentemente é uma forma absolutamente perfeita e, provavelmente, uma forma infinita, quer dizer, a gente sempre poderia achar mais um Ó, para pôr dentro do Ó, na nossa procura de Deus. É como se fosse uma perspectiva profundíssima que a gente sempre pode acumular, acumular, acumular, acumular… Aqui aparece diretamente a coisa. Agora, quando a gente entra, por exemplo, numa igreja do século XVII, ou ainda do XVIII, e nós vemos, por exemplo, uma […] que demonstra uma proliferação de objetos, nós temos a incapacidade de (…) a experiência, o nosso olho fica confundido e nós somos, na verdade, dominados por aquele espaço. Há uma intenção de produzir esse efeito, o efeito assim de uma presença de uma Luz, que a gente não sabe muito bem de onde veio, porque ela é invisível, de uma Luz que vem de dentro mesmo da matéria e que faz com que ela se divida em mil… demonstrando, é um teatro, essa arte é teatral, demonstrando o tempo todo que Deus está presente… porque se acredita num sentido, num sentido da vida, quer dizer neste tempo nosso, o espectador barroco […] nas instituições. Existe uma instituição monárquica, há uma hierarquia social-política, há um tema épico, há uma Santa Madre Igreja, há uma Inquisição que fornece o verdadeiro sentido, nesse mundo da gente, para as pessoas poderem viver essa experiência do divino, […] não é possível viver de modo judeu ou de modo protestante, ou de modo árabe, ou de modo anglicano, ou de modo índio, isso é heresia […] a verdade […] não é qualquer homem que pode […] percebem? É uma forma totalmente fechada, autoritária […] mas talvez isto daqui seja um emblema magnífico, eu acho (…), a gente pode ficar horas, aqui, descobrindo coisas nesse tema da infinitude, quer dizer, no mar do sensível, o mar do tempo, também o mar do pecado, o mar do amor de Maria, o mar profundo do amor de Deus, a gente encontra uma espécie de Ó que também é uma alegoria de um barco que está conduzindo… dentro disso a Senhora do Ó que conduz Deus dentro de si e ao mesmo tempo ela é conduzida dentro de Deus, percebe? Então nós temos que ficar brincado com essa possibilidade, quer dizer, sair… do finito para o infinito, do infinito para o finito. Essa arte exige da gente que a gente seja metafísico, a gente tem que ser o tempo todo teólogo, o tempo todo religioso. Evidentemente, se a gente não é, não funciona. O problema que eles têm é justamente isso, a hipótese que eles fazem é a seguinte: se eu quero representar qualquer coisa […] essa ideia, […], eu quero representar a perfeição, por exemplo, a ideia é essa: representar a perfeição. Então, uma das formas de representar a perfeição é uma forma metafísica, grega, a gente faz o Ó. Agora, quantas formas de representar, pela natureza, semelhantes ao Ó? Aqui nós temos um outro esquema básico para pensar isso que é metáfora, metáforas. A hipótese barroca é: nós temos um determinado tema para ser representado. Então eles propõe: nós devemos encontrar uma forma que o represente, por exemplo, vamos representar o infinito de Deus, então nós encontramos uma forma analógica, o Ó. Por que o Ó? Porque na Bíblia e porque na filosofia do […] neoplatônica, o Dionísio Areopagita, por aí, ele diz: o Ó é a forma mais perfeita que há no universo, a forma do círculo, quer dizer, se Deus tivesse forma, Ele não tem, mas se ele tivesse, Ele seria um círculo”.

O infinito, em 2021, é a medida de minha gratidão ao Professor Emérito. É o efeito motor do afeto, o encarecimento. Eu sempre assisti e assisto às aulas do Professor João Adolfo Hansen para a vida, e não (apenas) para a literatura.

 

 

 


Créditos na imagem: “Retrato de João Adolfo Hansen”, por William Feitosa Nascimento.

 

 

 


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