A vida, feito pólvora rachada pelo tempo, falhou, sucedeu minutos antes ao derradeiro fim que é justo aos homens, mas incorreto dizer que é justo às coisas. A vida incorreu enfim como não fosse vida. Somente aos seres mais incrédulos seria correto alarmar a vacuidade dos sentidos, o desarrazoado dos meios, o teor prosaico da existência humana – posto que tudo aquilo que nos conserva vivos, palpitantes, é justamente e tão só a prosa do mundo. Nada próprio, nada pessoal, nada humanizado, é correto dizer. Apenas a poesia concreta (e todas o são) de todos os dias desencontrados, das árvores, da água; da dor alucinante da saudade e da emoção comovente dos espetáculos de dança. Os cães tristonhos na chuva gritam pena, as poças de água sujam a ponta da calça; o café atrasou, e a energia caiu. E a vida aconteceu. Prosaicamente. Poeticamente.

O início do mundo é redondo feito o formato perfumado dos bolos que assam no forno. É verdade que perfuram no meio o grande centro do mundo ovalado, repleto de gostos e sem som. A cor tem mais cor por conta dos olhos, redondos, coloridos, que olham sem pressa, apesar do tempo. Nascemos para olhar. Quando o choro vem, e ele vem como um ladrão, ou como a chuva, convém abrir espaço para ele e, é claro, tendo em mente a finalidade precípua de deixar que ele seque e que vá embora. Nascemos para vazar.

Necessário olhar, isto é, dizer da vida apenas o que é necessário viver. Que ela viva e que seja parte de tudo que é, apenas. Que a beatitude dos santos interrompa a maldade e que o canto dos pássaros absorva o ruído; que a joio se desassemelhe do trigo, que nada possa vencer a vida e que a luta seja apenas entre a formiga e a folha.

 

 

 


Créditos da imagem: Reprodução de “Melancolia”, de Edvard Munch.