Da festa ‘primitiva’ à guerra pós-moderna: dilemas da sociologia na invenção de uma conceituação irracional

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Desde o início de 2024 testemunhamos os estertores de um ano de guerra na Ucrânia e o recrudescimento dos ataques covardes na Palestina. Nas telas das TVs se estampam as luzes e imagens de explosões e bombardeiros espetaculares em diferentes pontos do globo. Por toda parte ameaças de novas guerras anunciam-se diuturnamente. É o triunfo do espírito da guerra e da pulsão de morte se alastrando aos quatro cantos do planeta. Este cenário tenebroso incitou a retomar as reflexões sociológicas apresentadas por Roger Caillois antes da II Grande Guerra Mundial, e que ganharam destaque nas décadas de 1950 e 1960 do século passado. Põe-se os olhos particularmente na obra O Homem e o Sagrado (1939).

Neste livro o sociólogo francês, da Escola de Sociologia fundada por Émile Durkheim, defendeu a teoria na qual as festas, com o desenvolvimento da urbanização e da industrialização, tenderiam a desaparecer da paisagem urbana ‘civilizada’, dando lugar a guerra – e não ao fenômeno das férias ou do lazer, como se poderia supor. Para o autor, nas sociedades modernas, ao se debilitar a expressão da efervescência coletiva das festas ‘primitivas’, descritas por Emile Durkheim (1989), dar-se-ia lugar ao desenvolvimento do fenômeno da beligerância: destruição programada, excessos, sacrifícios, desperdícios, desgastes – comparados a força e virulência das antigas festas e festivais arcaicos. Em 1949, num novo prefácio para essa mesma obra, Caillois acrescentou uma observação interessante especificamente sobre o Carnaval do Rio de Janeiro:

 

Na América Latina, em especial nos carnavais do Rio de Janeiro e de Vera Cruz, onde durante uma semana prolongada toda a população de uma sociedade e dos arredores se mistura, canta e dança, se agita e faz barulho numa efervescência quase ininterrupta, pude verificar que a minha descrição da festa, ao contrário de ser quimérica, correspondia no essencial a realidades ainda vivazes e observáveis, embora visivelmente em decadência por causa das necessidades da vida urbana contemporânea (CAILLOIS, S/D, p.10).

 

Atualmente, já na segunda década do século XXI, constata-se que a festa brasileira não está decadente, muito embora esteja em profunda transformação. Apesar do intenso processo de urbanização e industrialização pela qual passou a sociedade nacional no século XX, a festa resistiu e resiste, ainda viva e intensa. Pode-se dizer que a festa brasileira tem passado por metamorfoses ao mesmo tempo profundas e superficiais; contudo, não parece que desaparecerá do cenário sociocultural. E mais, ao se espetacularizar ganhou em profusão, alarido, ritmo, colorido e expressão. A despeito de ter-se turistificado, tornando-se mercadoria midiática, ainda se mantém em alguns rincões, mesmo metropolitanos, com características consideradas ‘arcaicas’; tal qual na descrição do sociólogo, no ano 1949.

É certo que não se trata das mesmas festas; nem primitivas, nem modernas. No entanto, o que se pode encontrar de penetrante na teoria de Caillois sobre a festa, apresentada num livro sobre o sagrado? Destaca-se os vestígios de um evolucionismo durkheimiano aproveitando do funcionalismo ferramentais conceituais, – por exemplo, a hipótese da válvula de escape – mas não resistindo as observações empíricas mais contemporâneas. A festa continua forte, viva e poderosa; necessária, ritual, marcante: ao menos no mundo latino. O sociólogo em tela postulou a seguinte equação, dividida em axiomas: a) A Festa é sobrevivência do mundo primitivo; b) A Modernidade empobrece a Festa; c) A Guerra ocupa o lugar da Festa na sociedade moderna. A teoria falhou? Parece que no Velho Mundo viceja forte e pertinente.

O que podemos concluir desses postulados? A sociedade brasileira ainda não fechou o ciclo de desenvolvimento urbano e industrial necessário para a confirmação dessa teoria? A teoria peca por não relativizar o contexto cultural, religioso, subjetivo e moral, peculiares a cada sociedade? Outrossim, parece que no Brasil, e na América Latina, encontramos um tipo sociológico não previsto pelo sociólogo francês; apesar de ter realizado observação, mesmo que ligeira, na cidade do Rio de Janeiro. Nesse particular ressaltamos aspectos peculiares do colonialismo na imaginação sociológica dominante, que tanto pode ser retificada pelo sociólogo estrangeiro que não consegue ver a sociedade ex-ótica com outros olhares, que os seus, formados na Academia europeia; e do sociólogo nacional, que ao estudar nas Academias europeias, passa a ver o país com os olhos dos europeus.

Destaca-se uma síntese num tipo de sincretismo/hibridismo histórico-cultural curioso, na qual a festa se mantém viva e vibrante, apesar do desenvolvimento das forças produtivas industriais e dos serviços urbanos. Festa organizada, racionalizada, menos espontânea, é certo; mas, mantendo-se e permanecendo constante, apesar de transformada ou metamorfoseada. Como explicar essa permanência? Por mais que os nostálgicos digam que os Carnavais de antigamente eram melhores, mais autênticos, mais verdadeiros etc., são evidentes os sinais de que a festa continua um traço que se mantém recorrente e significativo nas sociedades latinas. O Brasil não faz a guerra – ou ao menos não desenvolve, não difunde e não investe na ideologia da máquina beligerante ou imperialista – faz a festa! Até onde podemos avançar com essa síntese?

Entretanto, como explicar a violência, e expressões de anti-estrutura, a explodir em diversos locais, cidades, regiões e estados desse país, e em pleno período pré-carnavalesco? Qual a teoria social que pode ajudar a entender esse fenômeno aparentemente contraditório, desconcertante e paradoxal? E o que garante que essa explosão não poderá eclodir a qualquer momento numa guerra generalizada?

Jean Duvignaud, na obra Festas e Civilizações, publicada nos idos de 1983, escreveu:

 

O Brasil – assim como a América Latina – (…) oferece a imagem ou a ilusão daquilo que poderia ter sido uma civilização que houvesse acolhido outra opção, diversa da rentabilidade e do capital. O ingresso na economia de mercado era inevitável? Por acaso, é inconcebível a existência de uma sociedade que pratique a redistribuição da riqueza, orientando-se para a procura do desenvolvimento de homens e mulheres, ao invés do esforço no sentido de uma organização sistemática com vistas a eleger o trabalho como a única finalidade social dos seus membros? Quatro séculos mais tarde, a pergunta ainda não parece haver sido formulada (…) (DUVIGNAUD, 1983, p. 24).

 

Duvignaud sugere que se persiga em busca de uma nova epistemologia a apresentar condições de superar os impasses da teoria sociológica clássica; como àquela de Caillois. E nesse caminho assevera:

 

É possível que a Europa não mais disponha de condições para a realização de um esforço desta natureza, embora aqui e ali despontem tentativas para decifrar o que antes parecia incompreensível. O Brasil, sem dúvida é um dos continentes onde a auto-análise – a auto-antropologia, a auto-sociologia – podem demolir a epistemologia dominante. Mas, para isso, é claro, deve colocar entre parênteses as ideologias ou as doutrinas e ‘descer à profundidade das próprias coisas’… A festa não é, em verdade, o exercício irracional com que a queriam rotular apenas porque não correspondia às categorias mentais de um mundo paralisado pela ideia da funcionalidade ou da rentabilidade. Afinal de contas, conforme dizia Hegel, se a realidade é irracional, muito bem, devemos nesse caso inventar uma conceituação irracional… (DUVIGNAUD, 1983, p. 25).

 

A qual epistemologia se deve recorrer para explicar essa imagem dialética híbrida na atualidade? Qual o conceito de festa ou de guerra será adequado para a análise? Quantos fenômenos sociais se pode atualmente classificar como se enquadrando ao mesmo tempo numa nova categoria epistemológica: festa-guerra? Talvez se esteja diante de um novo desafio sociológico e antropológico inesperado. É preciso avançar na teoria social – e na imaginação sociológica – da festa e da guerra; e, talvez, o melhor caminho seja aquele sugerido por Immanuel Wallerstein, qual seja impensar os velhos conceitos clássicos (WALLERSTEIN, 2002, p. 65).

As cenas de excesso da guerra contemporânea traz paralelo com a efervescência coletiva em turbilhão, – semelhantes àquelas descrições consagradas por Durkheim (1989) -, sucedendo-se como um novo complexo fundindo expressões religiosas, litúrgicas e cerimoniais, congregando os espíritos, as personagens e as autoridades, em torno de um ato de sacralização no qual a perfeição mimética não autoriza nenhuma falha no seu exercício de teatralização mágica e tecnicamente eficiente (dos mísseis traçantes e drones); mas nem sempre alcançada, como se assiste na mídia todos os dias, estampando hirpertecnologias com requintes fratricidas e genocidas.

Assim, o triunfo da destruição guerreira faz paralelo à majestade cerimonial da comemoração espetacularizada ao excluir a ironia das memórias de tantos conflitos, que sempre à espreita, contaminam seu sentido pretensamente sacro; em mascaradas dos interesses econômicos subjacentes. É praticamente impossível escapar da constatação de que a comemoração da festa ‘primitiva’ e o espetáculo da guerra pós-moderna contém a sua própria paródia: a catástrofe do sentido na pletora da pulsão de morte televisionada.

Deste cenário pós-moderno, apesar de se viver em pleno vigor do relativismo dos símbolos da história, é ainda um sentido da história aquilo a que se pretende conservar e celebrar na profusão das comemorações e das guerras (JEUDY, 1995). Encenações, ataques simulados, camuflagens, túneis subterrâneos… Mulheres e crianças como alvo da carnificina, a fim de eliminar a proliferação de gerações de novos guerreiros, novos foliões, novos futuros.

Enquanto a sociologia tropeça na busca pela invenção da “conceituação do irracional” para dar conta do complexo fenômeno festaguerra tem-se em Freud o conceito de ‘pulsão de morte’ a representar, em suma, o impulso autodestrutivo e deletério do ser humano motivado pela procura de uma satisfação maior; tomando a pulsão como “impulso, inerente à vida orgânica, a restaurar um estado anterior de coisas” (FREUD, [1920] 1976, p. 54).

 

 

 


REFERÊNCIAS

 CAILLOIS, Roger. O homem e o sagrado. Lisboa: Edições 70, S/D.

DURKHEIM, Emile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Paulinas, 1989

DUVIGNAUDJean. Festas e civilizações. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1983.

FREUD, S. Além do Princípio de Prazer. In, Edição Standard das Obras Completas de

Sigmund Freud Rio de Janeiro: Imago, 1920/1976, vol. XVIII, pp. 13-85.

JEUDY, Henri-Pierre. A sociedade transbordante. Lisboa: Século XXI, 1995.

WALLERSTEIN, Immanuel. O fim do mundo como o concebemos. Rio de Janeiro: Revan, 2002

 

 

 


Créditos da imagem: Reprodução de “Os desastres da guerra, nº 33: “Que se tem de fazer mais?” de Francisco de Goya.

 

 

 


SOBRE O AUTOR

Alexandre Fernandes Correa

Sociólogo com formação pós-graduada em Antropologia Cultural. Professor Associado na UFRJ-Macaé.

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