Da Guerra de Canudos ao Urupês, à Segunda Guerra Mundial e ao Brasil dos anos 1940, segundo Oswald de Andrade

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Zumbi era Lampião
Lampião era Zumbi
 

(Memorando, Nação Zumbi)

A publicação de Os Sertões, obra-prima de Euclides da Cunha, em 1902, balançou o mundo intelectual do começo do século XX. E não era por menos. O livro, resultado do contato do engenheiro e escritor ao cenário da Guerra de Canudos, surgia como uma denúncia da chacina promovida por ninguém menos que o Exército Brasileiro, que contou com o apoio das polícias de vários Estados na confederação e uma ampla aceitação da imprensa e opinião pública, que teve como palco os confins do sertão desconhecido da Bahia. Se esse não foi o último conflito que demarcaria a pacificação dos ânimos nacionais da então recém proclamada República, e aqui vale lembrar da Guerra do Contestado que eclodiu exatos dez anos à frente (1912-1918) nas fronteiras de Santa Catarina com Paraná e que infelizmente não teve a mesma acolhida narrativa promovida por Euclides, Canudos, sem dúvida, teve em Os Sertões o seu registro épico sem paralelo nas letras nacionais.

Não seria de se estranhar, então, que essa obra recebesse calorosas e entusiásticas acolhidas no “mundo das letras”, especialmente entre a intelectualidade brasileira. E nos parece que foi o caso de Oswald de Andrade, tema que abordaremos neste ensaio.

Ao percorrermos a produção do escritor paulista, contudo, as primeiras menções a Euclides e/ou a sua obra, assim como a figura de Antônio Conselheiro ou a Canudos mais diretamente, somente aparecem, mas de forma bem tímida, nos anos 1930, período de militância comunista de Oswald de Andrade. Até então, podemos dizer que ao “escritor modernista” pouco interesse havia despertado a obra euclidiana. O que não deixa de ser um fato curioso, dado que, se não pela linguagem, ao menos o tema seria de supor ter encontrado acolhida nas discussões sobre a originalidade da nacionalidade brasileira tão procurada pelos modernistas dos anos 1920. Entretanto, o interesse maior do escritor teria se dado mesmo, de forma mais efetiva, em sua produção e reflexões dos anos 1940 e 1950.

Para este ensaio, usaremos uma carta-texto que supostamente teria sido endereçada ao escritor Monteiro Lobato e publicada em Ponta de lança: polêmicas, livro publicado no ano de 1945 que, segundo Oswald, seu organizador, foi composto de “artigos e conferências” resultado de sua “atividade jornalística, durante o ano de 1943,[1] constante da colaboração no Estado,[2] no Diário de São Paulo e na Folha da Manhã”.

Em Ponta de lança: polêmicas, com um subtítulo tão sugestivo, encontramos os textos que o próprio escritor julgou, à época, dignos de publicação. Em “Carta a Monteiro Lobato”, texto por nós selecionado para este ensaio, Oswald se propôs a uma avaliação da importância da obra de Lobato, especialmente Urupês, publicada em 1918, e da sua relevância, passados mais de duas décadas de sua aparição. E, assim, começou a sua missiva: “Meu velho amigo. Quero também trazer as minhas flores aos vinte e cinco anos moços de Urupês” (ANDRADE, 1971, p. 3). E continuou:

1918 – São Paulo ouvia o ruído dos primeiros aviões, voando muito alto, no azul, com medo de esbarrar nas casas de dois andares. E parava gente para ver. Da minha janela, naquela garçonnière que era um pouco distante do centro – na Rua Líbero Badaró – olhávamos também. Por cima do cretone de um largo sofá de palha, sem bordas, misto de diva e de cama, rodavam umas provas. Na primeira página lia-se impresso o seu nome. E mal suspeitávamos – eu e você e os outros frequentadores daquele refúgio da cidade, que nos aparecia vulcânica nos tímpanos ainda recentes da Light and Power, que uma oposição começava entre o seu livro e o avião. (ANDRADE, 1971, p. 3-4)

Oswald de Andrade, então, discutiu a importância dos 25 anos da obra Urupês e das reclamações de Lobato por um suposto não reconhecimento de sua importância na memória cultural e política nacional: “Hoje, passados cinco lustros, é você quem reclama a sua parte gloriosa na recuperação da nacionalidade que alguns daqueles moços iam arduamente tentar nas lutas da literatura” (ANDRADE, 1971, p. 4).

Segundo Oswald,

(…) lendo a frase de sua entrevista: “Os fatos provam que o verdadeiro Marco Zero de Oswald de Andrade é esse livro”, não venho retificar e sim esclarecer. De fato Urupês é anterior ao Pau-Brasil e à obra de Gilberto Freyre. Mas você, Lobato, foi o culpado de não ter a sua merecida parte de leão nas transformações tumultuosas, mas definitivas, que vieram se desdobrando desde a Semana de Arte Moderna de 22. Você foi o Ghandi do modernismo. Jejuou e produziu, quem sabe, nesse e noutros setores a mais eficaz resistência passiva que se possa orgulhar uma vocação patriótica. No entanto, martirizam vocẽ por ter falta de patriotismo”. (ANDRADE, 1971, p. 4, Aspas no original)

A sugestão que a argumentação que Oswald constrói sobre as obras e os posicionamentos de Monteiro Lobato é da incompletude ou, antes, do mal direcionamento de seus esforços. Há uma sensação de que o escritor teria ser perdido pelo caminho, que havia ali nos anos 1910 um potencial muito rico e vasto, mas que foi perdido, talvez por falta de uma perspectiva histórica ou de entendimento do desenrolar dos acontecimentos, tanto para dentro quanto para fora do país. Aqui, vale ressaltar que Oswald e Lobato foram amigos na juventude, sendo ambos, como mencionado acima neste ensaio, frequentadores da garconnière da rua Líbero Badaró, no centro da São Paulo dos anos 1910. Na imagem abaixo, datada do ano de 1915, por exemplo, podemos ver Lobato sentado no colo de Oswald:[3]

Crédito da imagem: Reprodução: Midiacrucis’s Blog, texto “Monteiro Lobato, Malfatti e a crítica aos modernistas”.

Contudo, o Oswald dos anos 1940 não era o mesmo dos anos 1910, assim como não o era Lobato. A crítica, agora, passava por questões políticas, especialmente sobre o lugar ocupado pelo país no contexto de um mundo envolvido com uma Guerra Mundial e os desafios colocados então. Vale lembrar, também, que é o período em que encontramos Oswald de Andrade muito afeito às principais ideias e orientações comunistas, opção ideológica que se manifestava em sua leitura de mundo e suas tomadas de posição política. Ao mesmo tempo, também subjaz uma crítica de Oswald às simpatias de Lobato pelos Estados Unidos da América, talvez um dos intelectuais brasileiros mais empolgados e simpatizantes com a cultura e política do país. Nesse sentido, lemos a seguinte passagem:

O Jeca, você sabe melhor do que ninguém, tem sobre o seu Cáucaso oleoso, a pata gigantesca e astuta dos interesses equívocos. Dão-lhe armas mas negam-lhe os mananciais do sangue que movimenta as máquinas, ergue os aviões e equipa as cavalarias mecanizadas. Ele bem que é ajudado por uma ala simpática da América do Norte, à frente da qual está o cow-boy Roosevelt e o camarada Wallace. Mas isso não basta. (ANDRADE, 1971, p. 7)

            Contudo, em contraponto ao entusiasmo de Lobato com os EUA, vemos um Oswald claramente anti-ianque e, por extensão, anti-imperialista. E será, então, com uma forte marca desse posicionamento, de matriz utópica, digamos, que o escritor fará uma aproximação entre o lugar destinado ao triunfo do Jeca brasileiro:

Lá mesmo, no solo dessa América medíocre e insípida que você conheceu, e Sérgio Milliet ainda ultimamente visitou, trava-se a luta entre os pioneiros do mundo melhor e o capitalismo de vistas curtas e unhas longas, tão longas que podem um dia alcançar a carne rochosa de nossas costas. Então será a vez do Jeca falar. (ANDRADE, 1971, p. 7)

          Ao mesmo tempo que fadado a ser o arauto de um futuro glorioso, esse mesmo Jeca, quando olhado para trás, para o seu passado, também teria sido um construtor de feitos grandiosos:

Ele durante trinta anos garantiu a unidade da pátria contra os tubarões loiros da primeira Holanda, estendeu os tentáculos nacionais pelo trilho continental das bandeiras, lutou com o Bequimão nas estradas maranhenses, bateu-se mais de uma vez nas ruas de Recife, ombreou com os negros revoltados de Salvador, com os mineradores paulistas, com os farroupilhas, trabalhou o sertão e a cidade… fez o Brasil. E em paga de tudo isso, ficou aquêle ser verminado e mulambento que você foi encontrar escorando com santinhos as paredes dos ranchos mortos. (ANDRADE, 1971, p. 7)

E eis que, por fim, Oswald chega a Euclides da Cunha e sua obra sobre Canudos. E teria sido nesse evento que, por uma operação dialética, encontraria a síntese do ontem e do hoje sobre a missão do Jeca, esse ente trans-histórico que, ao que nos parece, estaria fadado a realizar a história e, nela, se realizar. Não sem razão bradava Oswald:

Cumpre despertá-lo [Jeca] Lobato! E se a tecnização não for possível no aparelhamento de uma siderurgia imediata, refaça-se o milagre da resistência d’Os Sertões que Euclides apontou como penhor e flecha da independência viril do nosso povo. Esqueçamos a estética e a Semana de Arte e estendamos a mão à sua oportuna e sagrada xenofobia. Hoje, as comunhões são necessárias. (ANDRADE, 1971, p. 7-8)

          Haveria, então, questões urgentes a serem resolvidas por aqui, que passariam pela resistência demonstrada, mesmo que em uma batalha perdida, como na ocasião da Guerra de Canudos, por exemplo:

O Jeca vai para a guerra, vai dar o seu sangue pela redenção da Europa. Ficará, depois, à mercê da tecnização amável que, por acaso, queira interessar-se pelas gulodices do mundo em paz? Seria preferível refluirmos então para o coração da mata no rasto das bandeiras atuais. E lá resistir e de lá voltar para os Guararapes de amanhã. Já que é pela liberdade que se luta, que nossa independência se firme solar e decisiva, erguida sobre a técnica e regada pelo sangue útil do petróleo que você anunciou. Sem o que, teremos que usar o chuço do Conselheiro, o cassetete dos Xavantes e o mosquetão que tenazmente derrotou todas as Holandas da nossa história. E usaremos. (ANDRADE, 1971, p. 8)

E, por fim, assim concluiu: “Que em torno do Urupês de hoje, se restabeleça, pois, Lobato, a rocha viva que Euclides sentiu na Stalingrado jagunça de Canudos” (ANDRADE, 1971, p. 8).

Essa imagem final é muito curiosa e sugere várias leituras possíveis. Uma delas, que nos parece ter sido a referência de Oswald, seria à Batalha de Stalingrado, ocorrida entre agosto de 1942 e fevereiro de 1943, no contexto da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Vale lembrar que essa batalha, uma das mais violentas do conflito – foram mais de 2,2 milhões de soldados envolvidos –, opôs a Wehrmacht, o exército da Alemanha Nazista, e seus aliados do Eixo contra as tropas da União Soviética, lideradas pelo Exército Vermelho. Assim sendo, e acompanhando a lógica argumentativa de Oswald, os jecas/jagunços estariam para os comunistas/bolcheviques assim como os soldados do Exército brasileiro estariam para os nazistas alemães. Tomar Canudos, então, em última análise, seria equivalente a usurpar a cidade de Stalingrado. Mesmo com resultados completamente desiguais e díspares – Canudos foi invadida e destruída ao passo que a resistência de Stalingrado à invasão nazista é tida como o início da derrota de Hitler e do exército alemão –, a aproximação dos dois eventos, por mais problemática e heterodoxa que seja, sugere a necessidade de (re)pensar as estratégias para conter o avanço da barbárie contra a civilização, dos totalitarismos contra as democracias.

Obviamente Antônio Conselheiro não tinha nada de Stalin, assim como os jagunços não foram bolcheviques. Ao mesmo tempo, bem longe de ser um reduto comunista, Belo Monte fora pintada como um reduto monarquista liderado por um beato místico e obscuro. Ao contrário, o que pareceu interessar a Oswald de Andrade na composição dessa imagem estaria próximo do que Walter Benjamin definiu como “imagens dialéticas”, que seriam, segundo a definição do filósofo, aquelas que surgem a partir dos “choques de temporalidades”. Assim, como em um lampejo de um relâmpago, a imagem se apresentaria como uma iluminação que apelaria àquilo que somos capazes de conhecer e, portanto, revelaria algo de natureza instantânea às nossas formas de percepção (BENJAMIN, 2018).

 

 

 


REFERÊNCIAS:

ANDRADE, Oswald de. Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias: manifestos, teses de concursos e ensaios. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, [1972] 1978.

ANDRADE, Oswald de.  A utopia antropofágica. São Paulo: Globo, 1990.

ANDRADE, Oswald de. Ponta de lança: polêmicas. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, [1945] 1971.

BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2018.

BOAVENTURA, Maria Eugenia. In: ANDRADE, Oswald de. Os dentes do dragão: entrevistas. São Paulo: Globo, [1990] 2009.

CUNHA, Valdeci da Silva. Oswald de Andrade: um antropófago comunista. Curitiba: Prismas, 2017.

NUNES, Benedito. In: ANDRADE, Oswald de. Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias: manifestos, teses de concursos e ensaios. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, [1972] 1978.

 

 

 


NOTAS:

[1] Ainda segundo o próprio Oswald, “as três conferências foram pronunciadas, a primeira no encerramento da exposição do pintor Carlos Prado, em setembro de 1943, a segunda em Belo Horizonte, em maio de 1944 e a terceira em São Paulo, em agosto do mesmo ano” (ANDRADE, 1971, p. 9).

[2] Oswald se referiu ao jornal O Estado de S. Paulo.

[3] Imagem retirada do Midiacrucis’s Blog, do texto “Monteiro Lobato, Malfatti e a crítica aos modernistas”. Disponível em: https://midiacrucis.wordpress.com/2012/06/10/monteiro-lobato-malfatti-e-a-critica-aos-modernistas/. Acesso em: jul. 2023.

 

 

 


Créditos na imagem: “Guerreiro & Santo”. Cartaz do Filme “Guerra Santa na Avenida”, de Miguel Freire (1979).

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Valdeci da Silva Cunha

Professor de História dos anos finais do Ensino Fundamental da rede municipal de Contagem. Doutor em História Social da Cultura (UFMG) e mestre em História e Cultura Políticas (UFMG). Atualmente, divide o tempo, o que dele sobra, entre ser pai de duas meninas, Ana e Sofia, a sala de aula e a vontade de fazer um pós-doutorado.

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