Ouse. Olhe. É assim que a obra ‘A vida que ninguém vê’ se encerra. Eliane Brum nos diz em seu texto ‘’Gosto de olhar, mas não de falar. Gosto de ser invisível’’. É com um olhar, uma percepção apetecida pelo que se diz diferente, por aquilo que não recebe um palco nem um holofote, pelo que não vira manchete dentro dos jornais e veículos midiáticos, que Brum olha para uma dor que é surda, silenciosa, turva, inefável para aqueles que não a experienciam; a dor da invisibilidade social. Por através de 21 reportagens, Brum nos apresenta essa dor, nos direciona os olhares para pessoas que encontramos nos nossos cotidianos cheios de tautologia, corriqueiramente, em semáforos, em ruas, praças, avenidas, filas de banco, mas que negligenciamos. 21 reportagens, ou 21 vidas, ‘A vida que ninguém vê’, nos apresenta em um diálogo rápido, mas não sem complexidade, com essas pessoas que são imperceptíveis à nossa visão, ou até mesmo aquelas a quem já negligenciamos um olhar atento. Quantos vidros da janela do carro já levantamos para Camilas no semáforo vermelho? Três ou dois? Ou então quantas vezes já saltamos por cima de Alverindos (Sapo) sem sequer olhar para baixo? Duas ou três? E quantas vidas se perdem pela omissão todos os anos? Esses números não temos acesso. Com esse estigma quase naturalizado, vício descontente intrínseco que adquirimos, que Eliane Brum, com suas reportagens, dá um olhar de volta para esses olhares cheios de gana, mas em situação de invisibilidade social.
Apesar de contar uma escrita de fácil acesso, não é necessário, de fato, nenhuma bagagem acadêmica para compreensão do texto, ‘A vida que ninguém vê’ faz outras exigências de seus leitores. Em cada retrato, cada narrativa, há um enorme e inquietante ofício de empatia pelo olhar do outro. É, decerto, necessário a capacidade de inspirar a dor do outro; e uma vez feito, a leitura se torna densa, complexa, causa desassossego, amargura, revolta, indigestão e muitas vezes ‘Weltschmerz’ (Dor de mundo), que seria a dor que sentimos após tomarmos a consciência profunda do mal e do sofrimento. E a cada reportagem, a cada vida que acompanhamos, isso se torna mais inevitável; há dicotomia dentro dos textos, metade se lê, a outra é sentir. Nós cruzamos com a miséria extrema por diversas vezes dentro das reportagens. Símbolo disso é a reportagem que toma para si o nome de ‘’enterro de pobre’’, que conta a história de Antônio, em uma narrativa de uma vida financeiramente pobre, uma vida cheia de abdicações e lutas, que ‘’depois de uma vida sem lugar. Não ter lugar para morrer’’ (BRUM, 2006, p. 37). Antônio percebe que esse é o destino de pobre, dele, dos seus filhos e seus netos; em um ciclo de pobreza e impossibilidade tão simbólico quanto ‘’Vida Maria’’ ou em ‘’O menino do alto’’, história de um menino que enfrentou todos os dias o mesmo teto após ter suas pernas assassinadas por ter nascido do lado errado da cidade.
Brum, em dado momento, faz um retrato de um certo conde, Manoel Marques de Souza. O “conde decaído’’ ficou um tempo entre Duque de Caxias e a Riachuelo, mais a frente se estabeleceu em algum canto em Porto Alegre. Se trata de uma estátua de mármore de um homem que algum dia já teve inúmeras ambições. Brum julga-a como esquecida, como um mármore esculpido que ninguém mais vê. Entretanto, decerto a estátua de mármore deve ter recebido mais olhares abstraídos do que qualquer personagem presente dentro das reportagens; mas cada personagem tem certamente mais ambição que qualquer estátua em Porto Alegre. Em ‘A vida que ninguém vê’, no meio de toda miséria, testemunhamos ali muita sede, sede de realização, fome do querer. Personagens que mostrariam a fome e escreveriam o pão. Como a gana incomensurável de Dona Maria de ler o mundo, de se alfabetizar. Ato que para quem dispõe de exequibilidades pode parecer tão banal quanto a própria respiração; mas para Dona Maria é mais do que suficiente para deixar tudo para trás e ir em busca de uma realização. Adail, que quer voar, e voou. Frida, que desejava um certo vereador. As vontades são diversas, todas encontradas entrelinhas e na marginália. Vontades que partem da desimportância e da simplicidade que imaginamos da sua realização, mas que são porta voz para uma empatia com cada reportagem dentro do livro, e até da pretensão de Brum com sua obra.
Brum, além de nos fazer olhar para cima, baixo, esquerda e direita; pontua, no fim de seu livro, sobre algumas prospecções do novo jornalismo, um jornalismo mais digital que não suja os sapatos. Isto é, não vai pra rua, que não tem contato entre o entrevistador e o entrevistado. Ou um jornalismo que vai para a rua com o objetivo de preencher uma planilha pronta, talvez, por exemplo: “o que, quem, quando, onde, como, por quê?” Eliane Brum tem a pretensão de que seu livro seja lido dentro das faculdades para a quebra desse paradigma, de um jornalismo instantâneo, automatizado. Após a leitura de ‘A Vida que Ninguém Vê’ fica inegável essa importância de sujar os sapatos para uma percepção do outrem. Entretanto, é uma leitura que transcende sua importância, não se limita para somente o expediente, para o meio acadêmico, para as redações, é necessário se manifestar na vida; no nosso cotidiano. Já que faz olhar não somente para si, mas muito para o outro, não somente como um profissional em campo, mas como uma outra história, um mundo particular costurado por traumas e estigmas. É uma leitura de carga teórica nula, mas de carga emocional ostensiva. Em primeiro momento, uma compreensão do que se tratava o arco principal, do que são os indivíduos em situação de invisibilidade social gerou incômodo, reflexão, revisão de atos e movimentos próprios, foi fundamental para virar o pescoço e olhar para o redor. Por fim, para a corroboração, é basilar a menção do “Museu da Pessoa”, que é um projeto que abriga em seu acervo histórias de vidas que não viram manchetes, histórias que partem de todas as etnias, credos e idades.
REFERÊNCIAS:
BRUM, Eliane. A vida que ninguém vê. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2006. 208p.
Créditos na imagem: Reprodução: Capa do livro Eliane “A vida que ninguém vê”, de Eliane Brum, 2006.
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