Chico Buarque, um estreante?

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Parece fora de dúvida que Chico Buarque é um dos artistas mais criativos em atividade no Brasil. Sua versatilidade é surpreendente e o rigor que perpassa toda sua criação artística é quase um paradigma na cultura brasileira. Depois de estrear na canção com primeiros álbuns memoráveis e de participar ativamente na produção de uma série de peças teatrais, Chico resolveu, já no começo da década de 1990, com uma carreira absolutamente consolidada na música popular, estrear na literatura com o romance Estorvo (que completa este ano 30 anos de publicação e que ganhou da Companhia das Letras uma edição comemorativa), que na mesma década mereceu um ensaio interpretativo de Roberto Schwarz (publicado em Sequências brasileiras). A incursão literária, no entanto, não foi apenas momentânea, mas manteve-se ao longo das últimas três décadas em que ele tem publicado uma série de romances, por vezes obras memoráveis que parecem já nascer clássicas (como Leite derramado (2011) e o recente Essa Gente (2020)). Aproximando-se dos oitenta anos, Chico Buarque resolveu estrear novamente, dessa vez no gênero conto, publicando no final de outubro de 2021, Anos de chumbo e outros contos pela Companhia das Letras.

“Anos de Chumbo e outros contos”, de Chico Buarque. Companhia das Letras.

 

O óbvio a se dizer é que os contos, assim como os romances, guardam o cuidado com o trabalho da linguagem que é característico de toda a produção do autor, tanto como autor de livros quanto como letrista. E quanto a isso são realmente magistrais: a posição social dos personagens aparece caracterizada de forma precisa pela manipulação do heterodiscurso que compõe nossa vida ideológica. Veja-se como exemplo o primeiro conto, Meu tio, em que a narradora, uma garota, expõe as marcações ideológicas do tio (estuprador) por meio das sutilezas com que sua visão infantilizada percebe as manifestações dele. Depois de se envolver numa briga de trânsito, o tio entra na concessionária para conseguir um carro que substitua o seu (avariado pela briga) e briga de novo, dessa vez com o atendente da concessionária:

Meu tio levantou a voz, chamou o sujeito de babaca e perguntou pelo gerente. Respirou fundo, me deu duas notas de cem reais e pediu que eu fosse à farmácia ao lado. Não podia ir pessoalmente porque é bastante conhecido no bairro e não ficava bem para ele comprar Viagra num balcão de farmácia. O farmacêutico também usava máscara e vendeu o remédio me estranhando. Os fregueses em volta, mesmo os de máscara, dava pra ver que riam de mim. Devem ter pensado que só mesmo uma garota muito suburbana vai às compras de biquíni (BUARQUE, 2021, p. 20).

A caracterização do tio passa não apenas pelas atitudes que toma, mas também pelo envoltório verboideológico que o caracteriza: os xingamentos, a forma como fala para a sobrinha que “sentiu vontade de comer meu rabinho” (BUARQUE, 2021, p. 16), a maneira abrupta como interage com todos que o cercam. A precisão linguística serve, portanto, para a caracterização de um sujeito que conhecemos no mundo contemporâneo e que tem origens históricas: um tipo marcado pela masculinidade constantemente autoafirmativa, cuja outra face é sempre o sujeito emasculado (como os protagonistas de Essa Gente e Leite Derramado). Esse sujeito, perpetrador da violência que perpassa toda nossa história, é também ele vítima dessa violência que interrompe qualquer possibilidade de desenvolvimento subjetivo. Assim, a risada que dão os outros clientes na farmácia não é direcionada apenas à garota, que imagina o ridículo no biquíni, mas à impotência do tio, cuja violência exagerada funciona como mecanismo de encobrir sua impotência social.

Essa precisão da caracterização social (típica também do Chico Buarque compositor) aparece de alguma forma em todos os contos, geralmente caracterizando as classes sociais que já são temas constantes da prosa do autor: a classe média abastada do Rio de Janeiro, as periferias e seus tipos sociais múltiplos. Mas não é aqui que termina a maestria de Chico: em quase todos os contos há universo subterrâneo, algo onírico, que perpassa a vida dos personagens e cuja revelação é quase o motivo dos textos. Esse aspecto, que surge do social, ultrapassa-o numa tentativa de elaborar questões universais matizadas pela nossa realidade social contemporânea. Assim, por exemplo, no conto O sítio, um casal daquela classe média alta carioca, diante da necessidade do distanciamento social, aluga um sítio para sua quarentena num local afastado. O casal, formado por uma herdeira e por um escritor de livros de contos, passa o melhor dos tempos em seu recanto recluso, não fossem os corpos mortos que aparecem no rio que passa atrás da casa. O conto, narrado com uma linguagem direta, realista em todos os seus termos, é permeado por essas aparições algo assustadoras, por um caseiro sem uma das mãos e pela partida repentina e não explicada da herdeira que acompanha o escritor em sua reclusão.

Esse aspecto simbólico a que me refiro é sempre marcado pela não explicação: a naturalidade com que a narradora do primeiro conto trata sua relação com o tio e a relação de seus pais com o tio não é explicada; a partida da herdeira não é explicada; os saltos temporais do conto Os primos de Campos e a partida final em busca do pai, astro de futebol, não são explicados; o aspecto insólito e onírico de Cida, do conto homônimo, também não se explica. Essa não explicação, que na verdade funciona como mecanismo de ênfase, ressalta o aspecto universal das narrativas, que, além de um tratamento para as questões contemporâneas e as raízes históricas recentes que nos fizeram chegar até aqui, delineiam os tipos humanos que estão na base de nossa vida social. Assim, o caseiro deficiente e a herdeira que descobriu as benesses da vida campestre são tipos sociais que pela ênfase no aspecto universal transformam-se em tipos humanos.

Alguém sempre poderia interpelar minha análise dizendo que tudo a que me referi aqui não é uma característica do conto de Chico Buarque, mas sim do gênero conto, que sempre lida com uma história subterrânea que emerge em determinados momentos de uma narrativa de resto simples e com traços realistas. De fato, tudo a que me referi são características do conto como gênero, o que nos leva à questão colocada no título: esse é um livro de estreante? É óbvio que sim, trata-se do primeiro livro do autor no gênero, mas a maestria com que é capaz de manipular as potencialidades do conto faz com que sua estreia seja um ponto de maturidade de sua obra e, talvez, da própria tradição do conto brasileiro contemporâneo. A precisão com que lida com todos os elementos a sua disposição, obviamente, não foram construídos por Chico entre o último livro e este, mas são o resultado não apenas das últimas três décadas de trabalho literário, como também das décadas anteriores de trabalho como letrista. E, neste sentido, este livro evidencia uma questão que já estava presente na obra anterior do autor, mas que agora, creio, assume feição de urgência: a relação entre seu trabalho livresco e sua produção como compositor popular. A verdade é que sua estreia na literatura é quase um marco da prosa contemporânea, marcado por uma complexidade no trato com a linguagem e com a matéria social que são incomuns a estreias. E essa relação não pode ser vista apenas numa direção, ou seja, na importância do letrista para o romancista/contista (que, a rigor, é óbvia: é na letra de música que Chico aprende a lidar com a linguagem), mas também na direção oposta: se o letrista Chico Buarque faz nascer o autor de livros, há peculiaridades na sua canção que o romancista posterior pode elucidar. Esse problema – a possibilidade de ler as letras de Chico a partir das peculiaridades expressivas de um romancista – parece-me que ainda não foi enfrentado em sua totalidade e oferece uma oportunidade singular para a compreensão não apenas da obra do autor, como também das peculiaridades de uma série de gêneros pelos quais sua obra se estende.

Mas voltemos aos contos, à maestria com que Chico os elabora e ao assombro diante do fato de que esses são contos de estreia. Pensemos agora na última história, que dá nome ao livro. Este último conto retoma alguns elementos do primeiro: narrado do ponto de vista de uma criança. O conto lida com um conjunto de sujeitos, também eles necessariamente condenados à inflação da masculinidade como consequência da emasculação geral que se vive na modernidade: dois militares. Contado a partir do interesse de um garoto deficiente por causa da poliomielite pela vida militar. O conto deixa entrever a relação tensa entre os pais do narrador e de seu amigo Luiz Haroldo, que lhe empresta soldados de brinquedo. A tensão passa pela diferença hierárquica entre os dois, ou seja, pela emasculação do pai do narrador, e pelo fim das torturas que o oficial levava a cabo nos porões da ditadura. Isso se completa pela esposa que o trai exatamente com o superior, pai do amigo de seu filho, que havia ordenado o fim da tortura. O final vale uma citação direta:

Em 30 de abril de 1973 a expedição do general Custer tomou de assalto a aldeia dos Sioux, e a fim de imitar as cabanas dos índios montei vários cones com guardanapos de papel. Risquei uns fósforos, e o fogo nas cabanas desceu mais do que eu previa, criando um efeito formidável. Só que as chamas pegaram numa franja da colcha e começaram a se alastrar, me obrigando a buscar um cobertor no armário para abafar o fogaréu. O cobertor também se inflamou, meu quarto se encheu de fumaça e ainda bem que meus pais tinham adormecido, senão eu ia apanhar na certa. Passei correndo pela sala, abri a porta blindada da rua e não sei o que tinha na cabeça quanto a tranquei por fora. Pensei em ir à casa de Luiz Haroldo, mas já estava escuro, o trânsito era intenso e tive medo de atravessar a rua. Fui à sorveteria, e chupando um picolé de limão virei à esquerda, e de novo à volta no quarteirão, minha casa inteira pegava fogo. As labaredas lambiam as cortinas, e contra o fundo flamejante da sala de visitas julgo ter visto a silhueta dos meus pais agarrados nas grades das janelas. Ainda ouvi a sirene dos bombeiros, que ficaram presos no trânsito e chegaram tarde depois (BUARQUE, 2021, p. 165-66).

 

A aleatoriedade do acontecimento trágico marca sua própria ênfase, confirmada pela prosa tranquila do garoto que vai à sorveteria e que tranca os pais em casa num ato inexplicado, como que seguindo um automatismo do cotidiano. A tentativa de construir uma imagem simbólica sobre o fim da ditadura militar é evidente. Depois de uma conversa sobre o fim das torturas e sobre o que fazer com os prisioneiros enlouquecidos, o incêndio revela uma vontade de pôr fim ao passado recente? A atitude do garoto revelaria, além disso, a tendência à anistia geral, que termina com o regime militar mas não lida com seu legado concreto (como se o fim da Ditadura tivesse sido o incêndio seguido pela sorveteria)? E nesse caso, a brincadeira do garoto significaria uma naturalização da violência desde a infância? Todas essas questões estão de alguma forma presentes na finalização e no conto como um todo, que serve de quadro de fundo para esse parágrafo final. Mas, além disso, o trecho revela também o momento em que a violência exacerbada do sujeito emasculado volta-se contra ele. O pai torturador, a mãe que escuta suas reclamações como se fossem notícias que não envolvessem barbaridades: esses sujeitos para os quais a violência é a própria matéria do cotidiano são esmagados na cena final por uma forma de violência perpetrada de forma igualmente banal, como o resultado de um automatismo. Se no primeiro conto (também narrado por uma criança) a impotência revela-se como ridículo pelo riso dos clientes da farmácia, no último ela assume aspecto trágico. E, assim, vemo-nos diante de mais um detalhe construído com rigor. O espelhamento entre o primeiro e o último conto revela um dos aspectos fundamentais do livro: o presente que ora se observa e que se registra literariamente é fruto do passado mal resolvido, porque permanece como força motriz da formação das subjetividades permeadas pela violência, pela emasculação e pela inflação da masculinidade.

 

 

 


REFERÊNCIAS

BUARQUE, Chico. Anos de chumbo e outros contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. 168 p.

 

 

 


Créditos na imagem: Divulgação.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Filipe de Freitas Gonçalves

Doutorando em Estudos Literários com ênfase em Literatura Brasileira na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Estudos Literários com ênfase em Literatura Brasileira (2021) pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Graduação em Letras (Bacharelado em Língua Portuguesa, com ênfase em Estudos Literários (2017) e Licenciatura (2018)) na Faculdade de Letras da mesma instituição. O interesse de pesquisa está voltado à história da literatura brasileira, teoria da literatura (gêneros literários, especialmente o romance), a relação entre a história literária e questões sociais no Brasil. Atuou, ao longo do ano de 2021, como estagiário-docente no programa Apoio Pedagógico da Faculdade de Letras (UFMG). Trabalha com ensino de Português, Literatura e Produção de Texto para alunos do Ensino Médio e Fundamental.

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