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Ensaios e opiniões

Afinal, qual seu gênero?  

Se você nunca precisou responder a esta pergunta, você provavelmente encontra-se inserido em uma maioria psicossocial, física e fundamentalmente aceita. Em termos mais simples: você não precisa ou nunca precisou se questionar o que é, de fato, gênero e como essa pequena palavra impacta em sua vida, segurança ou direitos.

Para entendermos o que é o gênero, antes de mais nada, precisamos falar sobre três pilares: biopoder, sexualidade e feminilidade, afinal, para a incredulidade de muitos, gênero não é uma construção biológica. Gênero é controle, disciplina e doutrina.

A fim de compreender com profundidade as teses sobre biopoder, nos aproximamos das teses do historiador e filósofo contemporâneo Michel Foucault¹, e para a compreensão deste conceito, precisamos entender o que é o poder disciplinar, que é descrito pelo autor como um poder que:

 

Em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo. […] Adestra as multidões confusas, móveis, inúteis de corpos e forças para uma multiplicidade de elementos individuais – pequenas células separadas, autonomias orgânicas, identidades e continuidades genéticas, segmentos combinatórios. A disciplina “fabrica indivíduos”; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. […] O sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação, num procedimento que lhe é específico, o exame, (FOUCAULT,1987, p. 195)

 

O olhar sobre sujeitos, enquanto indivíduo livres, é a antítese de qualquer sistema de controle. Enxergar um indivíduo antes de mais nada é dar ao mesmo poder, autenticidade e domínio sobre si, sobre suas vontades e sobre seus prazeres e necessidades. O domínio sobre o corpo torna-se fundamental, pois ele está inserido nas relações, inclusive como resistência.

A partir daí surgem a “anatomia política” ou “mecânica do poder”, uma instrumentalização política e social para a manipulação sistêmica unicamente voltada para definir como os indivíduos devem agir, como devem se portar no micro e no macro comportamento, desarticulando e medindo os indivíduos para, posteriormente, recompô-los. Esse processo cria, então, sujeitos dóceis, submissos e socialmente aceitos.

Iniciando-se no século XVIII, o entendimento dos corpos dos sujeitos começa a ser o foco do controle. Na virada para o século XIX, o corpo e a percepção do ser humano como espécie e, consequentemente, a necessidade de preservação da vida dos indivíduos e a manutenção da espécie humana abre espaço para a biopolítica, que visa o controle sobre as massas. Foucault diz que:

 

Essa série de fenômenos que me parece bastante importante, a saber, o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características biológicas fundamentais vai poder entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia geral de poder. Em outras palavras, as sociedades ocidentais modernas, a partir do século XVIII, voltaram a levar em conta o fato biológico fundamental de que o ser humano constitui uma espécie humana. É em linhas gerais o que chamo, o que chamei, para lhe dar um nome, de biopoder. (FOUCAULT, 2008, p. 3)

 

Foi a partir deste ponto que a sociedade entendeu que os indivíduos necessitavam de padronização, de delimitação, de reconfiguração em escalas biológicas e cognitivas. A sociedade precisava ser controlada também em seu desejo e em sua sexualidade, pois a perpetuação da espécie tornara-se um ativo importante para o sistema, e todo esse controle se torna mais fácil quando delimitamos as possibilidades de enquadramentos dos indivíduos. Aqui cabe ressaltar que nenhum poder é eficientemente exercido através de imposição direta e sofrimento.

O controle, quando bem executado, também precisa trazer a sensação de escolha, de pertença e de amabilidade, e a forma mais eficiente desta aplicação acontece, majoritariamente pela binaridade aqui aplicado, neste contexto, inicialmente como masculina e feminina. Neste ponto, Foucault também explica em sua obra que o discurso de gênero se aplicou à sexualidade que, por sua vez, não se aplicou inicialmente ao sexo, mas ao corpo, aos órgãos sexuais, aos prazeres, às relações de aliança e às relações inter-individuais, (FOUCAULT, 1993, p. 259).

Em adjacência ao conceito de poder, temos o apagamento de indivíduos. Esse apagamento acontece articuladamente à construção da necessidade de outros em subjugar pelo poder a existência de indivíduos, subalternizando e silenciando tudo aquilo que não se encaixa no quadro de normalidade e de poder, apagando epistemicamente teóricas feministas, negras LGBTQIAP+ e sul-globalistas (TEIXEIRA, 2021, p.50) como cita o professor e intelectual Thiago Teixeira, que demonstra o que é o poder através do monólogo como recurso de produção de perspectiva:

 

O monólogo faz com que percebamos um problema ético, pois nos coloca diante do silenciamento sistemático dos outros sujeitos. O silêncio dos sujeitos precarizados é desejado e construído através de recursos de poder (TEIXEIRA,2021, p.51).

 

Aqui entramos no terceiro pilar da discussão sobre a concepção do gênero: a feminilidade. É um fato que a mulher e tudo que dela provém é historicamente  inferiorizada, fragilizada e por diversas vezes, epistemicamente apagada.  E no que se refere a gênero não foi diferente. Basta pensarmos que a própria concepção de “sujeito” considera o masculino como ponto de partida.

Atualmente Judith Butler é um dos, senão, o maior nome dentro do estudo de gênero. Em seus estudos ela sintetiza toda a evolução do estudo de gênero, com o enfoque na construção do gênero e diz:

 

O gênero nem sempre se constitui de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos históricos, e porque o gênero estabelece interseções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas. Resulta que se tornou impossível separar a noção de “gênero” das interseções políticas e culturais em que invariavelmente ela é produzida e mantida. (BUTLER, 2015, p.20)

O apagamento da figura da mulher e do feminino por si só torna o estudo do gênero, pelo menos em seu ponto de partida, como algo não biológico, mas sim uma construção relacional. Butler nos ensina que a construção de gênero precisa ser repensada de forma como construção ontológica de identidades, afinal o sujeito feminino inicialmente foi baseado em um entendimento que só se sustenta dentro da representação heteronormativa. Butler⁴ diz ainda que “o gênero é o aparelho pelo qual a produção e a normalização do masculino e do feminino ocorrem juntamente com as formas hormonais, cromossômicas, psíquicas e performativas que o gênero assume” (2004, p.42).

A concepção do gênero, portanto, não é definitiva, muito menos limitadora. Gênero é uma categoria performativa, uma identidade que é reiterada, pois aprendemos primeiro o gênero e, por consequência, o sexo, pois ambos estão envolvidos nas relações sociais e políticas, uma realização contínua de um modo de existir, tão viva quanto a sociedade e a cultura. Inclusive agora, no momento de sua leitura, intelectuais em todo mundo discorrem sobre a necessidade de atualização. A exemplo temos a luta das nossas irmãs mulheres transexuais e travestis para a quebra do entendimento do sexo biológico na categoria do gênero mulher. Aqui, cito com muito orgulho o trabalho de uma de minhas maiores referências no assunto, a pensadora e professora brasileira Letícia Nascimento.

 

Todavia, ainda circulam discursos bioessencialistas que buscam condicionar o gênero aos aspectos anatômicos de diferenciação sexual. Por isso, ao engendrar esforços em fomentar a discussão sobre gênero por meio de alguns desdobramentos históricos, políticos e epistemológicos, procuro evidenciar a necessidade de constante desnaturalização dessa categoria para que possamos abraçar cada vez mais experiências de mulheridades e feminilidades, como as vivenciadas pelas mulheres transexuais e travestis. (NASCIMENTO, 2021, p.26)

 

Percebe-se, portanto, que nenhuma delimitação de gênero possui relação com genitálias ou desejos. Por contrário, a categoria gênero não é e não pode ser percebida como algo fixo. Quem somos nós para projetarmos domínio sobre outros ou sua posição dentro deste emaranhado de contextos? Perceber a si não configura perceber o outro, e o entendimento de cada indivíduo e, antes de tudo, indecomponível.

A construção dos indivíduos, em amplo aspecto, depende da concepção de seus valores, da percepção do mundo e do que o rodeia. Com a construção da identidade do gênero não é diferente. Assim não podemos limitar nossas verdades ou como enxergamos o mundo em simples imposições da norma ou de valores previamente impostos. E o entendimento do gênero, do motivo da criação desta categoria, do impacto político, social e cultural nela existente transcende o sexo biológico, o entendimento do desejo e a cultura que carregamos em nós.

 

 

 


REFERÊNCIAS:

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão de identidade. Tradução de Renato Aguiar. 8a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015

                          . Que tem medo de falar sobre gênero? Tv Boitempo, 2017. P&B. Disponível em: . Acesso em: 05 fev. 2023.

FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Tradução e Organização de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

                        .História da sexualidade III: o cuidado de si. Graal, 1985.

                         . Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 2009.

NASCIMENTO, Letícia. Transfeminismo. São Paulo: Editora Jandaíra, 2021, pag.26 .

TEIXEIRA, Thiago. Decolonizar valores: ética e diferença. Salvador: 2021, pag. 51.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: “Gênero: teoria ou ideologia?”. Carlos Michiles, PDT, 2017.

 

 

 

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