Na introdução do livro a autora aborda as reformas urbanas que estavam em voga, bem como a preocupação das elites em encobrir as mazelas da cidade de Salvador, que estava muito distante do ideal civilizatório. Para as elites baianas, as reformas na estrutura da cidade eram insuficientes para atender a seus interesses, era preciso modificar também a interação social urbana, já que para esse grupo citado, a população era incivilizada. Para os reformistas, mesmo com as novas formas de ocupação da cidade, ela não atendia aos ideais de uma sociedade moderna. Soma-se a isso o fato das reformas arquitetônicas custarem caro para a cidade (Salvador), o que justificava a lentidão na conclusão dos projetos. Tudo isso causava muita indignação entre a elite local.

Percebe-se que as ruas da capital baiana eram palco de disputas pelo espaço urbano, uma preocupação evidente das elites. Os festejos permitem a compreensão justamente de como se davam as relações na cidade, e como a população lidava com essas problemáticas.

No ano de 1904, o engenheiro Teodoro Sampaio vai a Salvador para retomar as obras de saneamento da cidade, com o objetivo de destituir Salvador do que ele chamou de “costumes provincianos”. Para alcançar seu objetivo, ele se dedicou em mudar o perfil urbano da capital baiana. Todo esse empenho era para transformar o discurso da modernidade (incorporado pela elite) em reforma urbana. Essa preocupação advinha da necessidade de equiparar Salvador ao Rio de Janeiro, tomado como exemplo por Teodoro Sampaio.

Ao falar sobre o IGHBA, Wlamyra Ribeiro de Albuquerque cita que o mesmo se distinguia do instituto fundado em 1856, pois buscava guiar a sociedade baiana a tão sonhada modernidade. “Em tempos de crescente valorização da ciência a definição de moderno não dispensava a criação de institutos, faculdades, museus, associações literárias e científicas” (ALBUQUERQUE, 1999, p. 31). Vale ressaltar que o IGHBA teve papel importante para a elaboração dos festejos do Dois de Julho.

Outra questão muito pertinente analisada pela autora era a preocupação com a “degeneração” social, preocupação essa de Tranquilino Torres e Teodoro Sampaio. Como “solução” para tal problemática, sugeriam a imigração de europeus para a Bahia, porém, os últimos não tinham interesse em residir no estado, recorrendo a região Sul do país. Logo, a única alternativa era, então, conter a chegada de pessoas negras com destino ao país. 

No capítulo intitulado “Festejos populares, festejos cívicos”, a autora aborda aspectos propriamente dos festejos, tais como os bandos anunciadores que compunham as festividades profanas, mas também religiosas. Eles antecediam as festas com a animação da população. Essas comemorações com os bandos acabou sendo enfraquecida pela proibição do uso de máscaras por uma portaria da época. Essa marca do bando anunciador era associada também a costumes africanos, o que causava mais desprezo social (ALBUQUERQUE, 1999). O bando não foi o único a perder sua essência, outros festejos também foram afetados nos primeiros anos do Brasil republicano. 

A data central da festa continuava a ser o Dois de Julho. As comemorações podem ser consideradas como populares, mas os propósitos de celebração eram diferentes de acordo com o público social. Para autoridades do período, marcavam uma data de emancipação, mas para o povo, em sua maioria a população negra, esse também era um momento de reivindicação e protesto. Nessa data, evidenciavam-se as tensões existentes, mesmo com tentativas de silenciamento, como o caso da “Liga pela Educação Cívica”, que em conjunto com o IGHBA, buscavam disciplinar o povo.

Nas procissões os coordenadores do evento exibiam a imagem que desejavam perpetuar socialmente, demonstrando assim uma hierarquia social. As elites deveriam ocupar papel de destaque nas comemorações do Dois de Julho, pois este era o público “ideal” que saberia se portar de acordo com o esperado, diferente do restante da população. Isso explica as tentativas de controle das ruas e reeducação do povo já que para as elites locais, a população representava em sua maioria a promiscuidade e o desvio moral. Na Avenida Sete de Setembro e outros pontos centrais da cidade, os casebres eram demolidos para dar espaço a nova estrutura pensada pelos reformistas, demarcando aquele local como ponto importante da cidade, do qual nem todos mereciam circular. 

Os caboclos da Lapinha tinham destaque na festividade, e eram admirados pelo povo que prestigiava as comemorações. No palanque, as figuras dos caboclos permaneciam ali por alguns dias, pois populares devotavam suas imagens antes de seguirem para a Lapinha novamente, onde eram guardados para os festejos do ano seguinte. Por fim, a romaria de Pirajá era a última comemoração do Dois de Julho, pois foi justamente lá que aconteceu uma batalha marcante entre portugueses e brasileiros, em 1823 (ALBUQUERQUE, 1999). Quando as comemorações oficiais encerravam, as festividades ganhavam ainda mais vigor, inclusive com o cenário noturno e participação tanto das elites, quanto do povo. À população menos abastada, os principais atrativos eram os botequins e as barracas de comida, de jogos… dentre outros divertimentos.

No capítulo “Caboclos – os símbolos da independência e a devoção popular”, a autora aponta o carro dos Caboclos como um grande símbolo do Dois de Julho, sendo as atrações principais da festa. As esculturas são em homenagem aos indígenas e até a atualidade são lembradas como parte importante da comemoração. As personalidades representavam, dentre outras coisas, a liberdade tão almejada pela população escravizada, a quem eram destinadas alforrias como simbologia à conquista da liberdade da nação. 

Os símbolos da independência possuíam papeis diferentes na conjuntura social. O caboclo evoca uma figura guerreira e belicosa, contra os lusitanos, enquanto a cabocla representa a brandura e a conciliação (ALBUQUERQUE, 1999). A figura da cabocla atraia a atenção, que era dividida com as referências aos abolicionistas. Os caboclos são inspirados em sua imagem nos romances indigenistas de José de Alencar. Os carros que desfilavam pelas ruas com os símbolos também representavam as entidades da cultura afro-brasileira. Os símbolos da independência (muito conhecidos por conta do Dois de Julho) estavam muito ligados aos aspectos religiosos (entidades) do candomblé. 

Os caboclos chegaram a ser excluídos da festividade em alguns anos, fruto das mobilizações do IGHBA e da Liga de Educação Cívica, que conseguiram em conjunto, desmobilizar a participação dos populares, afastando o desfile dos carros com os caboclos da comemoração oficial, por carregarem uma simbologia “primitiva” que não se encaixava mais no perfil da república baiana, ligando-os ao período imperial. 

Os símbolos da independência tinham interpretações diversas, pois nem todos davam o mesmo significado para as representações que para alguns eram cívicas, para outros também eram religiosas. Como a autora destaca em várias passagens do livro, os carros com os caboclos dividiam as opiniões, e o IGHBA fazia larga campanha contra o desfile dos carros no Dois de Julho, por isso seus membros fizeram questão de guardar os carros que a eles foram entregues pela comissão popular, permanecendo assim, sob a tutela do instituto. 

No quarto capítulo “‘As estradas alagadas de sangue’ e os ‘salões repletos de flores’ – O Dois de Julho na História Nacional”, Albuquerque (1999) aborda como na Bahia a luta pela independência foi mais aguerrida do que em outros estados brasileiros, pois houve luta intensa da população que se engajou na conquista pela liberdade. As ruas da Bahia foram “alagadas de sangue” porque na Bahia o embate foi muito intenso, em contrapartida ao que houve no sul, com um “salão repleto de flores”, em referência a passividade. Nesse sentido, a autora busca nessa parte do texto “notar apropriações e recriações das lutas empreendidas em 1822-23” (ALBUQUERQUE, 1999, p. 112).

Com a instauração da República, a data do Dois de Julho não foi desvinculada do mito fundador do Brasil no estado, o marco festivo era reafirmado politicamente para justificar o orgulho de ser baiano (ALBUQUERQUE, 1999). Buscava-se assim dar legitimidade à Bahia e também ao país, pois foi esse estado decisivo para a liberdade nacional. Foi essa imagem de um estado essencial para a liberdade (atrelada pelos baianos ao Dois de Julho) da nação que as elites baianas queriam perpetuar não só entre os baianos, mas principalmente para o resto do país. A intencionalidade era de garantir destaque à comemoração de independência na Bahia, como marco fundador.

Os jornais tinham papel importante nesse cenário: suprimir as manifestações populares, dar ênfase para as comemorações oficiais, e assim o fizeram, encobrindo a “folgança popular” que não deixou de acontecer no centenário de 1923. O objetivo de todo esse empenho era resgatar a relevância da Bahia historicamente, deixando a posição periférica do estado para trás.                            

O livro analisado sintetiza a dinâmica das relações comemorativas do Dois de Julho na Bahia, entre 1889 e 1923. O recorte escolhido pela autora como pontapé inicial representa uma quebra na história do Brasil, pois no ano de 1889, o país passa de monarquia para república alterando a interação social, e é essa uma das questões centrais na obra de Wlamyra Albuquerque. É nesse contexto que a autora pensa a Bahia e como as dinâmicas comemorativas se alteram após essa ruptura com a monarquia, finalizando suas considerações no ano de 1923, data comemorativa dos 100 anos de Independência da Bahia.

Os argumentos utilizados pela autora conseguem sustentar a discussão, o ponto alto do livro é que ele mostra ao leitor a diversidade das comemorações da independência no estado, bem como a memória que as elites queriam perpetuar em detrimento da supressão de expressões populares que “atrasavam” a Bahia e ia contra o projeto de “civilidade”. Percebe-se como as antigas estruturas (principalmente dos casebres) causava uma aversão nas elites, isso justamente por ligá-los ao período monárquico, que remetia ao atraso, enquanto a república representava o progresso. A república estava intimamente conectada no Brasil e na Bahia, com a modernidade, daí a necessidade de alterar os símbolos populares que faziam parte das práticas culturais baianas, que a elite passa a vincular ao retrocesso.  

Todos os aspectos citados foram explorados no texto, mas a autora acabou deixando-o repetitivo, talvez na tentativa de consolidar as ideias do texto. A questão religiosa ligada aos caboclos também poderia ter sido mais destacada no livro. Além disso, o foco da autora foi a capital baiana (Salvador), sendo que o livro se trata das comemorações de independência no estado, logo, deveria trazer elementos dos festejos em todo o estado.  Fora essas questões, o livro contribui positivamente para a historiografia baiana acerca da temática escolhida pela autora, auxiliando a compreensão dos aspectos sociais, culturais, políticos e econômicos das comemorações de independência na Bahia. 

 

 

 


REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, Wlamyra Ribeiro de. Algazarra nas ruas: comemorações da Independência na Bahia (1889 – 1923). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1999.

 

 

 


Créditos da imagem: ALGAZARRA NAS RUAS – COMEMORAÇÕES DA INDEPENDÊNCIA NA BAHIA (1889-1923). Editora UNICAMP, [s.d]. Disponível em: https://editoraunicamp.com.br/catalogo/?id=1784.