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Coluna da Associação Brasileira de Ensino de História

Algumas estratégias gratificantes para nossas aulas de história, mesmo enquanto vivemos “aos trambolhões”

 

“Quem fez nas primeiras idades uma representação da vida cheia de justiça, de respeito religioso pelos direitos dos outros, de deveres morais, de supremacia do saber, de independência de pensar e agir – tudo isto de acordo com as lições dos mestres e dos livros; e choca-se com a brutalidade do nosso viver atual, não pode deixar de sofrer até o mais profundo do seu ser e ficar abalado com esse traumatismo para toda a vida, desconjuntado, desarticulado, vivendo aos trambolhões, sem norte, sem rumo e sem esperança.”

Lima Barreto, 1918

 

É possível que muitos professores e professoras de história se identifiquem atualmente com a epígrafe acima, extraída de um texto de Lima Barreto publicado originalmente na Revista Souza Cruz, em 7/12/1918, há pouco mais de 100 anos. Formados e formadas sob a égide do sistema universal dos direitos humanos, decorrente da Declaração Universal dos Direitos Humanos e de outros documentos internacionais que garantem a proteção universal a direitos diversos (VIEIRA et al., 2017) – sistema que, evidentemente, inexistia nos tempos de Lima Barreto –, tínhamos, “nas primeiras idades”, como diz a epígrafe, “uma representação da vida cheia de justiça, de respeito religioso pelos direitos dos outros, de deveres morais, de supremacia do saber, de independência de pensar e agir”. Durante nossa formação e, mais tarde, na prática docente, tínhamos noção das dificuldades que encontraríamos no exercício de nossa profissão, mas, ao mesmo tempo, raramente colocávamos em xeque nossa capacidade de enfrentá-los e de alcançar resultados importantes no que tange ao conhecimento sobre o passado e o presente. Mas a “brutalidade de nosso viver atual”, ainda no dizer da epígrafe, parece ter transformado o estudo da história em atividade irrelevante do ponto de vista de muitos estudantes, pais, colegas, coordenadores. Muitos e muitas de nós têm experimentado o desânimo em enfrentar o trabalho cotidiano no ensino básico. Se anteriormente desafios nos estimulavam, agora precisamos pensar algumas vezes antes de nos lançar em projetos instigantes. Algumas experiências recentes têm feito professoras e professores de história “sofrer até o mais profundo do seu ser”, como escreve Lima Barreto. Não que antes não houvesse momentos de desânimo e tristeza, mas estes eram suplantados mais rápida e consistentemente. Hoje, com mais frequência, parece que estamos “sem rumo e sem esperança”.

Mas, como é dessa atividade que vivemos – seja por dela tirarmos nosso sustento, seja porque, apesar de tudo, ainda nos movemos pelos ideais da docência –, talvez possamos elencar algumas estratégias que podem ser gratificantes, mesmo nas condições de “nosso viver atual”. Neste texto, gostaria de propor duas delas: o trabalho com fontes e a pesquisa orientada.

Sabemos que, quando alunos e alunas colocam a mão na massa e precisam resolver questões, tendem a aprender mais eficazmente do que quando recebem uma explicação sobre determinado conteúdo. Paulo Freire já se pronunciou sobre isso em 1968, no segundo capítulo de Pedagogia do oprimido, quando opôs as concepções “problematizadora” e “bancária” da educação. A segunda recebeu esse nome em alusão a contas de banco, nas quais fazemos “depósitos”, assim como docentes fariam com o conhecimento, a ser “depositado” nas cabeças de seus estudantes.

A estrutura escolar atual, com a carga horária fracionada, o currículo extenso e as poucas aulas de história por semana, quase que nos impele a adotar a concepção “bancária” de educação. Em consequência, o bom docente acaba sendo aquele que sabe otimizar o tempo e explicar bem o conteúdo. Nesse esquema, entretanto, quase sempre ficam de fora as experiências de aprendizado – tanto de estudantes como de docentes.

O professor e a professora de história não podem, certamente, deixar de explicar o conteúdo. Mas talvez possam, de tempos em tempos, trazer desafios e oportunidades para que seus alunos e suas alunas aprendam com a experiência suscitada pelo trabalho com fontes, tanto primárias como secundárias. Por exemplo, podemos dividir a turma em grupos, propor questões e disponibilizar documentos (escritos, sonoros, imagéticos, audiovisuais etc.) que possam ou não ser úteis na resolução de problemas. Além de procurar identificar o documento (quem o produziu, quando, por que, para quem etc.), os grupos devem se perguntar o que o documento diz, o que podemos inferir, o que ele não diz e o que/onde precisaríamos saber mais. Essa atividade tende a engajar os estudantes e permite que percebam tanto a riqueza como as limitações da produção do conhecimento histórico.

Podemos imaginar, por exemplo, as possibilidades do documento manuscrito reproduzido a seguir, encontrado no Arquivo Público de Pernambuco; trata-se de uma petição ao presidente da província de Pernambuco, datada de 3 de julho de 1874.

 

“Anna Maria do Espírito Santo casada com o escravo José, vem requerer e implorar da bondade de S. Exa. se digne conceder-lhe uma passagem grátis para o Rio de Janeiro, a fim de a suplicante ir viver em companhia de seu marido em casa do senhor em cujo poder ele se achar. O marido da suplicante, por intermédio do sr. Barão de Nazareth, foi mandado para aquela província para ser lá vendido e desse modo está a suplicante privada da companhia de seu marido.

Exmo Sr., a indissolubilidade do casamento tão garantida por nossas leis civis tem sido sempre infringida a respeito de pessoas miseráveis colocadas na triste circunstância da suplicante e, depois que apareceram leis expressas proibindo a deportação dos cônjuges escravos, tem havido uma multiplicação espantosa de casos dessa ordem, que são uma verdadeira reação para a qual o governo deve lançar suas vistas providenciais, e a única razão com que se defendem os exportadores de escravos é dizerem que não se opõem a que o cônjuge do escravo acompanhe a este, mas que, não havendo lei que obrigue o exportador do escravo pagar passagem do cônjuge livre, este deve pagá-la a sua custa.

Mas V. Exa melhor que todos sabe, nesse caso, qual é a pobreza e a miséria de pessoas colocadas para pagarem uma passagem; nem mesmo por esmola o podem fazer, porque a falta quase absoluta de dinheiro que se nota no público não favorece as subscrições.

Nessas circunstâncias e com a bondade de V. Exa. pode a suplicante esperar que poderá acompanhar seu marido. Pelo que, pede deferimento e receberá mercê.”

Acompanha a petição documento do vigário que realizou o casamento, atestando que Anna se casou com o escravo José em 1860. O pedido de Anna foi indeferido em 7 de julho de 1874.

[Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE/PE. Arquivo Permanente. Série Petições. Manuscrito. Petições de Senhores e Escravos – Recife (1851-1885). Volume 02. Página 211 a 212 verso – Petição de Ana Maria do Espírito Santo, que solicita uma passagem grátis para o Rio de Janeiro, afim de viver em companhia de seu marido que foi enviado para a citada cidade.]

 

Esse documento surpreende, pois não imaginamos, normalmente, que escravos eram casados com pessoas livres (neste caso, o casamento já durava 14 anos); tampouco imaginamos que pessoas pobres, como Anna Maria do Espírito Santo, teriam condições de apresentar petições a presidentes de província, no final do século XIX; impressiona também que aquilo que estudamos, nas aulas de história, sob o nome de “tráfico interprovincial” possa ganhar concretude através das vidas de Anna e José. Quanta riqueza podemos encontrar nessas poucas linhas. E quantas dúvidas também: era comum haver casamentos entre escravos e pessoas livres?; era comum pessoas pobres dirigirem petições a autoridades?; com ajuda de quem elas escreviam suas petições?; o que dizer da indissolubilidade do casamento e dos demais argumentos expostos na petição?; por que será que o pedido de Anna foi indeferido?; e o que aconteceu com o casal?

Algumas respostas a essas perguntas podem ser inferidas – por exemplo, talvez possamos inferir que pessoas como Anna tivessem auxílio de profissionais com funções semelhantes às dos atuais defensores públicos. Mas, mesmo a inexistência de respostas, não invalida as evidências que podemos extrair do documento – por exemplo, o fato de que havia uma real possibilidade de Anna ter seu pedido deferido, pois, do contrário, talvez não tivesse dado início à petição, e o vigário talvez não tivesse atestado a realização do casamento.

E o que dizer do vocabulário desconhecido (“a suplicante”) e das fórmulas curiosas (“e receberá mercê”)? Como será que um requerimento é redigido hoje em dia? A experiência de análise de documentos suscita muitos conhecimentos adjacentes igualmente importantes para o reconhecimento de semelhanças e diferenças no tempo.

Mas talvez o mais importante seja permitir que estudantes percebam o quanto temos de ter cuidado em fazer afirmações sobre o passado. A petição de Anna Maria do Espírito Santo documenta uma série de coisas, permite que façamos outras tantas inferências, mas também deixa muitas dúvidas sem resposta. Essa consciência talvez seja preciosa hoje em dia, em que muitas formulações irresponsáveis têm sido feitas sobre o passado. Se nossos alunos e nossas alunas tiverem o costume de se questionar sobre o que os documentos dizem, o que podemos inferir e o que eles não dizem talvez passem a ter consciência de que não podemos afirmar qualquer coisa sobre o passado e o presente.

Apontei acima o trabalho com fontes como uma das estratégias possivelmente gratificantes para nós e para nossos estudantes. A outra é a pesquisa orientada por nós. Podemos propor às nossas turmas um tema abrangente de reflexão, o qual será preciso discutir a partir de exemplos históricos específicos, a serem escolhidos pelos grupos; um verdadeiro desafio. A orientação da pesquisa seguirá então um calendário, desde a escolha do exemplo, passando pela concepção do trabalho (o que, do exemplo, será estudado, por que e de que forma?), até a apresentação do trabalho em seu formato final. Talvez esse verdadeiro desafio não encontre ressonância entre todos os estudantes, mas não é raro surpreendermo-nos com engajamentos efetivos que demonstram a autonomia e a capacidade de reflexão dos alunos e das alunas. Sendo uma pesquisa orientada por nós, será possível corrigir percursos, insistir na necessidade de recorte, na adequação da metodologia aos objetivos e na otimização da apresentação dos resultados.

Também essa estratégia tem a vantagem de tornar perceptível aos alunos e às alunas a necessidade de estudo e a consciência de nossos limites quando afirmamos algo sobre o passado e o presente. Assim, a experiência da pesquisa orientada pelos professores e pelas professoras pode ser importante na identificação e na rejeição, por parte dos estudantes, de afirmativas que não são respaldadas em evidências.

Historiadores e historiadoras sabemos que a história é feita de continuidades e rupturas; que ela é o estudo das semelhanças e diferenças no tempo e também das formas pelas quais os grupos se lembram do passado. Tudo isso torna o ensino e a aprendizagem da história especialmente complexos. Num momento em que o espaço para trabalharmos essa complexidade está cada vez mais restrito, é importante continuarmos acreditando em estratégias gratificantes para nós e para nossos estudantes.

 

 

 


REFERÊNCIAS

BARRETO, Lima. “A matemática não falha”. In: Contos completos. Org. e introdução Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo, Companhia das Letras, 2010, p. 276. Escreveu isso aos 37 anos e faleceu, em 1922, 4 anos depois, aos 41.

FREIRE. “A concepção bancária da educação como instrumento de opressão.” In: Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2005[1968], p. 65-87.

VIEIRA, Oscar Vilhena; Ghirardi, José Garcez; Feferbaum ,Marina (coord.). Direitos humanos e vida cotidiana. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2017.

 

 

 

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