Temos a Arte para não morrermos ante a verdade.
Friedrich Nietzsche
Propõe-se a relação da sublimação freudiana, que articula uma ameaça de desprazer com a construção de uma obra que traga benefícios para a comunidade, por meio do deslocamento libidinal, com o ato da criação camusiano, onde a satisfação plena não existe, mas sim uma tensão constante que mantém o indivíduo nauseado diante do mundo.
De acordo com Sigmund Freud em O mal-estar na civilização, o ser humano, por sua consciência racional, exige que o mundo se molde de acordo com seus pensamentos. (FREUD, 2005. p. 27). Se colocando, então, em busca de algo que traga para si segurança e um sentimento de concretude com o todo. Dado a sua dureza a vida é indiferente ao clamor da consciência humana que anseia por uma explicação racional para apreendê-la. Mas de acordo com Albert Camus, como água que escorre por entre nossas mãos a vida nos ultrapassa. “O fosso entre a certeza que tenho da minha existência e o conteúdo que tento dar a esta segurança jamais será superado. Para sempre serei estranho a mim” (CAMUS, 2018, p. 33). Há então, na razão humana um sentimento ilusório, na medida em que o indivíduo busca encontrar um sentido último que se choca com uma vida que não dá resposta sobre como o homem poderia se libertar desse sofrimento.
No início da vida humana, é possível observar um advento do “eu” que não existia. Ao longo do processo de desenvolvimento humano Freud denomina como princípio de prazer, o momento em que, o “eu” não era completamente autônomo. Esse “eu” atrofiado se apresenta como uma mônada de realidades que se bastam em si mesmas. Como uma clausura, fechada no corpo. Não há separação entre o “eu” e o mundo. Nesse processo há um esforço para que se possa ser mantido o prazer. A atividade psíquica afasta-se de qualquer evento que possa despertar desprazer. (FREUD, 2005, p. 34)
Quando o estado de repouso psíquico é perturbado pelas exigências internas e externas ao indivíduo com o desaparecimento da satisfação desejada e o desgosto presente, o aparelho psíquico decide construir a busca pela satisfação dos prazeres no mundo externo. Estabelecendo, portanto, o princípio da realidade, onde o que se apresente a consciência não é mais o agradável, mas sim o real, embora ele seja inóspito. (FREUD, 2003, p. 4). Se afastando do mundo exterior o indivíduo investe libido nos objetos e mantém certa felicidade da relação afetiva para com eles na medida em que nega o sentimento de desprazer e se apaixona pela idealização de uma felicidade plena.
Segundo Freud, todas as relações afetivas de alguma duração entre duas pessoas – o matrimônio, a amizade, o amor paterno ou filial – deixam um depósito de sentimentos hostis que necessitam de alguma forma de repressão para escaparem da percepção. Em sua obra Para além do princípio do Prazer o autor, tentou estabelecer relações entre a polaridade amor e ódio com uma “oposição hipotética” entre pulsão de vida e pulsão de morte. Pulsão do alemão trieb, a forma de um “querer”, é algo impessoal, maior que o indivíduo isolado. A pulsão simplesmente existe; tal qual o “impulso de respirar”, ele é a “base do próprio querer”, a base a partir da qual se gera a necessidade, a ânsia, a vontade, o querer e o desejo. Não é de imediato percebido como torturante ou desagradável, torna-se torturante se não o realizarmos – por exemplo, não respirar, não comer.
O autor, considera a compulsão à repetição um fenômeno apresentado no comportamento das crianças e no tratamento psicanalítico. Sugere que esta compulsão é algo derivado da natureza mais íntima das pulsões e capaz não só de sobrepor-se ao princípio de prazer como de, através dele, atuar como uma pulsão de destruição. É “A função de restaurar um estado anterior de coisas” (FREUD, 2005, p. 53-54). O estado da matéria inanimada que antecede à vida. Ao se perguntar como seria possível a pulsão de morte ocultar-se no interior de instintos que associamos à manutenção da vida, Freud considera que o momento de descarga do prazer sexual caracteriza-se como um momento de extinção momentânea altamente intensificada, que está relacionado “com o esforço mais fundamental de toda a substância viva: o retorno à quiescência do mundo inorgânico” (FREUD, 2005, p. 83).
Tal característica não está em oposição ao princípio do prazer, pois este, segundo ele, “é uma tendência que opera a serviço de uma função, cuja a missão é libertar inteiramente o aparelho mental de excitações, conservar a quantidade de excitação constante nele, ou mantê-la tão baixa quanto possível” (FREUD, 2003, p. 83). E, segundo o autor, quando nos submetemos a processos excitatórios, como em vários jogos ou situações que envolvem o suspense causado pelo medo ou pela ansiedade, ou como nos jogos e fantasias que conduzem à excitação sexual, não estamos fazendo mais que “preparar a excitação para sua eliminação final no prazer da descarga” (FREUD, 2003, p. 83).
As pulsões sexuais desviadas de suas finalidades representam, sob esse prisma, uma grande vantagem sobre as diretas, pois, como não podem ser plenamente satisfeitas, são mais propícias à manutenção de relações duradouras. Já as diretas, quando satisfeitas, produzem um período de baixa energia libidinal, quando o objeto perde seu valor erótico, podendo ser facilmente abandonado ou substituído. As pulsões desviadas, ou sublimadas, e as diretas podem mesclar-se em diferentes proporções, podendo, as primeiras, retornar à condição original. Já a transformação das pulsões diretas, efêmeras por si só, em laços ternos e sublimados é, segundo Freud, fato corrente e corriqueiro. Em O mal-estar na civilização a sublimação é considerada “Um aspecto particularmente do desenvolvimento cultural. É ela que torna possível às atividades psíquicas superiores, cientificas, artísticas ou ideológicas, o desempenho de um papel tão importante da vida civilizada” (FREUD, 2005, p. 118).
A sublimação é um meio de reconciliar as exigências sexuais com as da cultura, por conseguinte, reconciliá-las com a sociedade, ou reconciliar a sociedade com elas. E apesar de a maioria dos indivíduos não possuírem igual aptidão para a sublimação, pois, é uma solução restrita a poucos, tal destino pulsional propicia uma solução menos infeliz para o conflito cultural da sexualidade. Em “formulações sobre os dois princípios do prazer” a sublimação a partir da obra de arte, em Freud, ocasiona uma reconciliação entre o princípio do prazer e o princípio da realidade. O Artista para ele é originalmente um homem que se afasta da realidade e que concede a seus desejos eróticos e ambiciosas completa liberdade na vida da fantasia, fazendo o uso de dons especiais que transforma a realidade (FREUD, 1995, p. 5).
Albert Camus, por sua vez, recusa todo tipo de plena realização humana, onde a mesma só poderia se reduzir em violência, na medida em que há uma natureza humana dotada por um vazio que se lança para o mundo e se contradiz com a ciência racional, essa mesma natureza está presente em uma dimensão cosmológica a qual o ser humano não pode mensurar. O ser humano ergue seu coração em busca de um amor que dure, mas este sempre acaba e, mesmo que dure pela vida inteira, ainda assim será considerado incompleto; prendem-se uns aos outros esperando encontrar a palavra que os confortaria diante da hostilidade mundana, mas se deparam com o silêncio ou a incompreensão.
Mesmo nos mais calorosos e ternos momentos de encontros ou despedidas, respiram uma ausência, um gesto que ficou por fazer, uma palavra por dizer; seguindo sempre incompletos, imaginam a vida dos outros como dotada de coerência e plena da alegria e da tranquilidade que falta à sua, sem se dar conta que o outro olha para ele com a mesma inveja e que os problemas e os detalhes que o corroem se manifestam também no coração de todos os homens.
Ligada a tradição metafísica, essa “nostalgia de unidade”, nas palavras do autor configura o desejo profundo, arrebatador e impossível que ilustra “o movimento essencial do drama humano”: A paixão pela completude ou unidade na vida, a qual, segundo Camus, advém de uma evidência constatável, ou seja, do fato de que há uma defasagem irredutível entre o que imaginamos saber e o que realmente sabemos, uma distância que nos separa de nossas próprias criações uma vez que o mundo se oferece ao conhecimento não enquanto algo uno e passível de ser compreendido em seu sentido último, mas enquanto uma diversidade inesgotável (CAMUS, 2018, p. 35).
A paixão pela unidade, assim, eleva as aspirações humanas acima do mundo finito, transitório e sem estilo, do qual, contudo, o homem não consegue se desprender; todo seu esforço corresponderá à busca intensa e desesperada que pretende conferir à vida a forma da qual carece, de modo que esse movimento em busca da unidade, assim como conduz às religiões e às ideologias, conduzirá também à criação romanesca.
O romance para Camus será então o universo em que ação encontra sua forma, em que as palavras finais são pronunciadas, em que a vida adquire o rosto do destino. Trata-se do mesmo mundo que o nosso: as mentiras são as mesmas, o sofrimento e o amor também; os heróis falam nossa linguagem, apresentam os mesmos desvios de caráter e as mesmas virtudes que as nossas, seu universo não é mais belo nem mais edificante, mas ali os seres terminam aquilo que na vida real o homem nunca chega a consumar, ali eles seguem até o fim seus destinos. Para o autor, que a criação através da arte não visa à superação ou uma reconciliação do homem com sua realidade histórica, mas ao ultrapassamento metafísico impraticável da finitude e da incompletude características da condição humana. (CAMUS, 2018, p. 133)
No interior da nossa condição humana existe um antagonismo, de princípios ontológicos, inscritos e intrínsecos no interior de nossa existência, a Tragédia grega pode ser pensada como aceitação da vida em sua forma plena que mesmo expulsando o homem a vida é bela, produzindo então um sim radial a vida. Segundo Nietzsche, a vontade potencializada – força que podemos chamar também de efusão ou euforia –, por ele nomeada de embriaguez, é o fundo e o motor de todo o esforço de criação.
Por trás da atividade artística temos sempre uma espécie de subjetividade transbordada, intensiva, um “eu sou” que excede os limites da consciência e faz de seu júbilo a sua expressão. Essa subjetividade sem sujeito é o princípio desta estética que tem na relação entre a arte e a vontade seu problema central. Arte e vida se encontram porque o trabalho de simbolização das formas artísticas é uma experiência ética, de afirmação e exaltação da existência. Revivendo o horror da existência os gregos através do horror estético consentiram em revelar a multiplicidade das diversas forças contraditórias presentes na natureza humana. (NIETZSCHE, 1992, p. 125)
A felicidade implica a dor, logo querer exaurir as forças que são constitutivas da vida é negá-la, negar o trágico e acreditar em um mundo ideal duplica a realidade, afinal não há respostas ao sentido do mundo, ele nos engole e nos ultrapassa, abraçar a vida mesmo sabendo que tudo é inútil seria uma das formas de assumir que as questões antitéticas não estão sob nosso alcance. (CAMUS, 2018, p. 113)
Os sentimentos apreendem o que a emoção nos leva até as mais diversas faces da vida, que provém não de sua profundidade, mas sim de sua pluralidade, dar explicação a existência se torna inútil, mas a sensação de vivê-la persiste, e com essa sensação somos chamados a um universo quantitativamente infinito. O ato de criar em Camus e sublimar em Freud a partir da obra de arte marca ao mesmo tempo a morte de uma experiência e sua multiplicação, ela não oferece refúgio ao coração perturbado, mas sim é um sintoma desse mal que aflige os indivíduos se colocando diante deles lhes mostrando o caminho sem saída em que a humanidade está enlaçada.
REFERÊNCIAS
CAMUS, A. O mito de Sísifo. Trad.: Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2018.
FREUD, S. Sobre a psicanálise. In: Edição Standard das Obras completas de Sigmund Freud. Trad. Jaime Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 2003. Vol. XII
____________ Mal estar na Civilização. In. Obras Escolhidas. Trad. Paulo Cesar Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2011. Vol. 18
NIETZSCHE, F. O Nascimento da Tragédia (tradução de J. Guinsburg); São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
Créditos na imagem: Colagem: Gustavo Miranda Angel, “Naturaleza muerta”.
[vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”SOBRE A AUTORA” color=”juicy_pink”][vc_column_text][authorbox authorid = “124”][/authorbox]
Sarah Rocha
Related posts
Notícias
História da Historiografia
História da Historiografia: International
Journal of Theory and History of Historiography
ISSN: 1983-9928
Qualis Periódiocos:
A1 História / A2 Filosofia
Acesse a edição atual da revista