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Ensaios e opiniões

As agruras e delícias da hospitalidade na passagem de Darwin pelo Rio De Janeiro de 1832

Charles Darwin com 22 anos de idade integrou a tripulação do Beagle na sua viagem científica ao redor do mundo. Após abandonar o curso de Medicina, Darwin foi para a Universidade de Cambridge cursar Artes e tornar-se clérigo anglicano. Nessa instituição conheceu John S. Henslow, naturalista dedicado aos estudos de Botânica. Henslow foi quem indicou Darwin para participar da expedição do Beagle, embarcando em 27 de dezembro de 1831. Durante cinco anos coletou e observou diversas formas de vida ao redor do mundo, observando as mudanças ocorridas nas espécies. Em abril de 1832, chegou ao Rio de Janeiro registrando suas impressões da Mata Atlântica nas regiões fluminense percorridas.

Neste ensaio, através dos estudos etnológicos de Marcel Mauss, sobrinho do sociólogo Durkheim, desenvolve-se reflexões sobre o conceito de hospitalidade na passagem de Darwin pelo Brasil. Como é conhecido, Mauss realizou estudos clássicos nos quais buscou revelar as formas elementares das relações sociais humanas. O Ensaio sobre Dom (1925) tem como subtítulo ‘forma e razão da troca nas sociedades arcaicas’. Nesta obra, o etnólogo perscruta dados etnográficos elaborados a partir de relatos e crônicas de viajantes e exploradores de sociedades de diferentes partes do planeta. Entre diversos conceitos relacionados com o tema da troca, se destacam os de reciprocidade, dádiva, dignidade, honra, entre outros. Para o escopo deste breve ensaio sobre a travessia de Darwin em terras brasileiras, especialmente o Rio de Janeiro, dar-se-á atenção mais específica ao conceito de hospitalidade, que emerge das pesquisas de Mauss sobre fatos sociais totais e as práticas ritualísticas dos povos indígenas do noroeste da América do Norte e dos povos da Melanésia no Pacífico.

Mauss, entre outras descobertas etnológicas, encontrou um regime contratual nas sociedades ditas ‘primitivas’, qual seja, relações econômicas e jurídicas anteriores à instituição dos mercadores ou mesmo da moeda. Nessas sociedades sobressaem as relações de trocas e a obrigação em dar, retribuir e restituir, sendo descritas com mais propriedade nos rituais nomeados potlatch, que em tradução aproximada significa algo entre ‘dar’, ‘nutrir’ ou ‘consumir’, revelando aspectos típicos das relações de prestações e contraprestações constituintes de um vasto sistema de dádivas trocadas.

Em suma, Mauss apresenta a natureza coletiva do contrato social entre anfitriões e convidados que, por diferentes processos e transformações históricas, veio fundamentar o direito romano arcaico e sua transição para o direito e a economia das sociedades modernas[1]. “Nas economias e nos direitos que precederam os nossos, nunca se constatam, por assim dizer, simples trocas de bens, de riquezas e de produtos num mercado estabelecido entre os indivíduos”, haja visto que troca e obrigatoriedade não é individualizada mas sim efetuada por “coletividades que se obrigam mutuamente, trocam e contratam; as pessoas presentes ao contrato são pessoas morais: clãs, tribos, famílias, que se enfrentam e se opõem seja em grupos, seja por intermédio de seus chefes, seja ainda dessas duas maneiras ao mesmo tempo“ (MAUSS, 2003, p. 190).

É nesse contexto de relações sociais elaboradas que se destaca a teoria da hospitalidade, ao colocar foco no conceito central deste ensaio reflexivo. Como se observa, toda devolução da dádiva se explica pela ‘força’ que se considera inerente a coisa dada, pelo ‘espírito do dom’ ao qual, na falta de um termo equivalente nos países ocidentais, Mauss dá o nome de mana, também reconhecido no hau dos Maori. Logo, o prestígio, a dignidade e a honra, virtudes implícitas no gesto da dádiva, não corresponderiam ao ego do doador, mas ao ser ao qual anseia, algo que não lhe preexiste e que deve ser produzido mediante relações de troca e reciprocidade. Assim, concluiu-se:

 

(…) a reciprocidade supõe uma preocupação pelo outro. Não se pode estar inquieto do outro sem se preocupar com suas condições de existência. Tal preocupação torna-se, portanto, hospitalidade, dádiva de alimentos e víveres, proteção, ou seja, motivos ou obrigações para produzir (SABOURIN, 2008).

 

Com base nestas orientações sociológicas, este ensaio pretende refletir sobre a teoria da hospitalidade a partir dos registros do diário de Darwin (2009), especialmente nos capítulos sobre sua passagem pelo interior do estado fluminense quando, saindo da capital, atravessou Cabo Frio e chegou a Macaé; este percurso transcorreu entre abril e julho de 1832.

 

Figura 1 – Trajetos percorridos por C. Darwin na Baixada Litorânea e Norte Fluminense.
Fonte: https://is.gd/YbpozP

 

Ao tomar o diário de Darwin como ponto de partida, considerou-se a possibilidade de trabalhar este registro como fonte etnográfica ao apresentar as variações e contradições na sua relação com os brasileiros de diferentes classes sociais, na primeira metade do século XIX. Seu relato demonstra formas diferentes de recepção, hospitalidade e convívio revelando aspectos que a teoria antropológica tomou como objeto de análises clássicas. Contudo, para o escopo dessa breve reflexão, dar-se-á luz sobre os momentos de refeição e hospedagem no transcurso de sua excursão, buscando identificar iguarias, ingredientes e especiarias presentes na culinária no período da expedição[2].

Darwin no prólogo narra como integrou a tripulação na Viagem do Beagle ao redor do mundo. Destaca-se a presença das palavras gratidão, bondade, sinceridade, etc., marcando o tom de toda a narrativa do jovem cientista, na época com pouco mais de 23 anos. Seus registros são eloquentes e significativos. Apenas no capítulo referente a passagem pelo estado do Rio de Janeiro, são 13 ocorrências de termos relacionados às ‘delícias’. Em Salvador da Bahia já havia escrito: “Delícia é um termo fraco para exprimir os sentimentos de um naturalista que, pela primeira vez, se viu perambulando por uma floresta brasileira”. Um relato repleto de adjetivos deslumbrados exaltando “exuberância geral da vegetação”, “elegância da grama”, “beleza das flores”, “verde lustroso da folhagem”: “Quanta delícia, depois de um dia de calor, sentar-se tranquilo no jardim até que a noite chegue!”.

Contudo, não foram só delícias que experimentou. Suas notas de viagem também refletem sua percepção da sociedade brasileira da época. Em várias passagens se manifesta o humanismo do naturalista recriminando reiteradas vezes a escravidão contemplada no país. Certas observações denotam preconceito etnocêntrico; em situações pontuais fez “generalizações sobre os brasileiros e às vezes julgava as pessoas pela sua aparência ou pela forma como se vestiam”[3]. Sua impaciência com a burocracia brasileira ou sua decepção com os modos rudes com que foi tratado por habitantes locais motivaram comentários pouco simpáticos à população brasileira (MOREIRA, 2002).

Considerando estas observações, ora exaltando a beleza natural, ora reclamando dos habitantes, arrisca-se algumas hipóteses. Darwin como europeu moderno se confronta com relações interpessoais numa estrutura patriarcal tradicional, autoritária, agrícola, relatando eventuais adversidades na hospitalidade e aquisição de alimentos no trajeto pelo interior do estado fluminense. Roberto DaMatta (1997), em sua análise sociológica do dilema brasileiro, descortina uma sociedade profundamente hierarquizada, na qual se busca, paradoxalmente, atingir a igualdade perante a lei[4]. Destaca-se dessa perspectiva a dificuldade que todo indivíduo fora da estrutura social dominante, – seja como estrangeiro, forasteiro, aventureiro, etc. -, tem de se integrar numa sociedade altamente hierarquizada do tipo a brasileira.

A passagem de Darwin apresentou momentos díspares, recebendo tratamentos diferentes em ambientes distintos. Nos salões oficias, embaixada e casas aristocráticas e burguesas, recebeu acolhimento, apoio e distinção, com regalos e hospitalidade dignas de um representante britânico. Porém, no trato com os populares e demais habitantes dos povoados percorridos, sofreu constrangimentos de nota, não sendo sempre bem recepcionado. Embora menos conhecida do que sua famosa expedição às Ilhas Galápagos, teve um impacto significativo em sua teoria revolucionária da evolução. Além de observar a diversidade da floresta tropical, também testemunhou os horrores da escravidão durante sua estadia no país. No trajeto pelo estado fluminense passou por 12 cidades, Niterói, Maricá, Saquarema, Araruama, São Pedro da Aldeia, Cabo Frio, Casimiro de Abreu, Macaé, Conceição de Macabu, Rio Bonito e Itaboraí, etc., culminando com o testemunho da festa de São João. Alguns registros referentes a este período da expedição, com foco especial em relação a hospitalidade e refeições, revelam aspectos importantes de uma relação dialética com situações alternadas entre delícia e agrura.

Logo no primeiro dia que se instala na capital, no bairro de Botafogo, Darwin exclama o testemunho das delícias que desvelará nos melhores momentos da expedição: “Mal posso esperar o grande prazer de passar algumas semanas neste lugar muitíssimo calmo e belo. O que se pode imaginar de mais delicioso do que observar a natureza em sua forma mais grandiosa nas regiões dos trópicos? Retornamos ao Rio em grande estado de espírito e jantamos em uma table d’hôte[5]”.

No entanto, não fora testemunha de situações só agradáveis, também ocorreram muitos dissabores, com descrições de agruras em situações extremadas. Há testemunho de fome, cansaço, trapaça, modos mal-educados e desagradáveis, imundice, ausência de talheres, etc. Darwin sente e se constrange nos altos e baixos do percurso. Em Macaé chega a adoecer, renovando suas forças com canela e vinho do porto. Todavia, passado os momentos mais difíceis, renovam-se os prazeres na sequência do circuito.

Desta feita, como proposta para comunicação, julga-se esta perspectiva estimulante para compreensão do jogo dialético da hospitalidade, da alimentação e do ambiente, nos registros de Darwin. Tal perspectiva ajuda na interpretação da descrição crua feita do ‘caráter’ tradicional da jovem nação tropical, nas suas relações com os estrangeiros, na cozinha, nos modos e costumes:

 

Os brasileiros, até onde posso julgar, possuem apenas uma pequena fração daquelas qualidades que conferem dignidade à humanidade. Ignorantes, covardes e indolentes ao extremo. Hospitaleiros e bem intencionados até onde isso não lhes causa qualquer problema. Moderados, vingativos, mas não briguentos. Contentes consigo e com seus costumes, eles respondem a qualquer comentário perguntando: “Por que não podemos fazer como nossos avós faziam?

 

Após as considerações teóricas referentes à teoria da hospitalidade, da reciprocidade e da dádiva, se pode concluir que as agruras e delícias pelas quais passou Darwin na sua curta trajetória pelas cidades da Baixada Litorânea e Norte Fluminense comprovam algumas teses apresentadas. Dependendo da situação na qual se encontrava, ora como convidado ilustre na ordem social carioca, entre convivas aristocráticos e burgueses, ora nos encontros fortuitos com populares no percurso de sua excursão fluminense, testemunhou momentos contraditórios da hospitalidade brasileira. Quando se encontrava entre iguais, situado entre membros de classe social elevada, recebia as benesses e dádivas típicas do receptivo aristocrático e burguês. Porém, quando se deparava em paragens mais precárias e desprovidas de apresentação, convívio e reciprocidade, passava por momentos difíceis, recebendo comportamentos rudes, até mesmo hostis, sofrendo a escassez, a penúria de alimentos na ausência de condições mínimas de hospitalidade.

 

 

 


REFERÊNCIAS

CAILLÉ, Alais. Antropologia do dom: o terceiro paradigma. Petrópolis/RJ: Vozes, 2002.

CORREA, Alexandre Fernandes. Culinária Macaense: serviços gastronômicos e identidade regional. Projeto PIBIC/UFRJ. 2020-2024.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

DARWIN, C. R. 1997. Viagens do Adventure e do Beagle: diário e anotações, 1832-1836. Translated by Helena Barbas. Lisbon: Expo’98. 2008

DARWIN, Charles. Viaje de un naturalista alredor del mundo. Madrid: Ediciones Akal, 2009

MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003

MOREIRA, Ildeu de Castro. O escravo do naturalista: o papel do conhecimento nativo nas viagens científicas do século 19. CIÊNCIA HOJE, vol. 31, nº 184, julho de 2002.

SABOURIN, Eric. Marcel Mauss: da dádiva à questão da reciprocidade.  In, Revista Brasileira de Ciências Sociais 23 (66), Fev. 2008 https://doi.org/10.1590/S0102-69092008000100008

 

 

 


NOTAS

[1] Aspectos mais aprofundados sobre as repercussões dessa teoria na antropologia econômica ver Antropologia do Dom (Caillé, 2002).

[2] Esta perspectiva se integra a pesquisa realizada com apoio do PIBIC UFRJ desde 2020, intitulada Culinária Macaense: serviços gastronômicos e identidade regional.

[3] Darwin no Brasil, por Bernardo Esteves: https://vanderdissenha.com.br/2015/02/darwin-no-brasil/

[4] Como salientou Darwin: “Alguns brasileiros já declararam com seriedade que o único defeito que enxergam nas leis inglesas foi não identificar qualquer vantagem dos ricos e respeitáveis sobre os pobres e miseráveis.”

[5] Em francês no original. Essa expressão significa literalmente “mesa de hóspede” e é usada em inglês para designar restaurantes com uma escolha limitada de pratos e um preço único para as refeições.

 

 


Créditos na imagem de capa: Augustus Earle, Corcovado mountain, 1839 (FitzRoy, 1839, v.1, p.188)

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