Bacurau em cinco partes

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ASSISTI A “BACURAU”: Parte I

 

Bacurau é um filme simples, porém intenso e profundo. É aí que reside sua sofisticação. Sua narrativa, sua estética, sua ética politizam às ações dos personagens, de todos eles, do início ao fim da trama. Bacurau é um soco no estômago daqueles que procuram relativizar e igualar na mesma métrica a violência praticada pelo opressor com aquela exercida pelos oprimidos. Nesse sentido, o filme é um canto a resistência. Não como reação pura e simples. Mas como ação, muitas vezes também ela necessariamente violenta, em defesa da humanidade em nós. Porque a violência atroz do fascismo não se vence com flores, ciranda ou lacração. Bacurau mostra de forma crua e simples que a defesa de valores como solidariedade, respeito, aceitação da diferença e do diferente, sem julgamentos ou ofensas, assim como de tudo que nos faz humanos e que nos permite viver juntos se faz com força, com vigor, usando inclusive dos nossos instintos mais primitivos para preservar em nós aqueles traços que ainda nos mantêm irmanados e nos humanizam. A resistência dos oprimidos é e sempre será condição inalienável de sua humanidade. Bacurau lembra que não há métrica que possa igualar torturadores e torturados, senhores e escravos, fascistas e suas vítimas. Só a lógica dos perversos e desumanos é capaz de tamanha ignomínia. Bacurau antes de ser qualquer exercício de representação de nossa realidade já distópica, é um chamado a lutar por uma saída dela. Sai do cinema arrebatado!!!

 

ASSISTI A “BACURAU”: Parte II

 

Bacurau é um elogio a diferença. O filme e a cidadezinha fictícia que lhe nomeia. Essa é a própria diferença. Às margens do mundo, Bacurau é um sertão diferente, verde e chuvoso, mas ainda seco. Às margens do mundo, mas no centro da humanidade. Em bacurau há todos os tipos e cores. E elas convivem, se solidarizam, se aceitam e se respeitam como elas são. Sem julgamentos ou questionamentos. As pessoas são o que são. E isto não às torna nem mais nem menos. Não é isso que define o seu caráter. Não é sua diferença que as torna melhores ou piores, mas é justamente o que as humaniza e que as permitem viverem juntas e lutarem para assim continuar, com suas virtudes e com seus defeitos. Bacurau é isso: diferença encarnada. É o Brasil como ele é: múltiplo, plural, diverso e diferente, apesar de tudo aquilo que lhe quer preto e cinza ou extinto. É um sertão verde, vivo, vigoroso, teimoso pois diferente de tudo aquilo que se aguarda dele. Bacurau é livre e assim quer continuar, e assim vai continuar pelo vigor de querer lutar pra viver diferente.

 

ASSISTI A “BACURAU”: Parte III

 

Bacurau é pastiche. É um filme de varias camadas. Tempos sobre tempos. Tons sobre tons. Antropofagia. Uma distopia de um futuro cheio de passados e prenhe de presentes. Todos se superpondo, de sobrepondo, se trespassando. O moderno, o pós-moderno, a tradição, a negação, a barbárie, a civilização. Tudo na sua exata contemporaneidade. Bacurau é grito decolonial no meio da mais brutal colonização. Bacurau é cosmopolita no meio do nada, em lugar nenhum. Parida da violência imemorial dos tempos fez dela sua condição de rexistência. Bacurau é livre por ser muitas. Por que quem nasce em bacurau “é gente”. E é exatamente por isso que Bacurau nos toca, nos arrebata. Por ser muito gente ela nos humaniza ao lembrar que ainda somos ou precisamos continuar lutando para ser como ela.

 

ASSISTI A “BACURAU”: Parte IV

 

Bacurau é uma celebração a alegria. Não, Bacurau não é um filme triste. Ele é profundamente revigorante. E o é porque transborda alegria do início ao fim. Mesmo na morte, Bacurau, seus personagens são alegres, festivos, transbordam afetos alegres. Bebem, comem, trepam, gozam, festejam, riem. O corpo das personagens se expressa livremente, em suas incompletudes, imperfeições. Eles riem. Quem vai ao cinema pensado em chorar com a tragédia de nossa desumanidade sai do cinema revigorado de alegria. Bacurau não é para chorar. É para rir, rir um riso ácido na cara dos poderosos, dos opressores, de todos àqueles que querem nos subalternizar e nos submeter de algum modo. Bacurau é o mundo invertido dos charivaris, das mulheres por cima, até no sexo. Do riso dos artistas loucos, dos pretos pobres embriagados de vida e de prazer, de mundo. Um riso rexistente. Um riso vigoroso que explode como um estampido do bacamarte. Um riso contra a anestesia dos psicotrópicos que nos “deixam lesos e dementes”. O “recado está dado”, “use quem quiser usar”. Bacurau é um riso sacro-profano de redenção. É o riso sarcástico que faz tremer os poderosos. Bacurau é riso noturno, mas com a força da luz e das cores que quebra o silêncio imposto pelas sombras e pelo cinza da seriedade hipócrita dos verdugos.

 

ASSISTI A “BACURAU”: Parte V

 

Bacurau fala de Nordestes. É uma homenagem aos vários Nordestes que explodiram para o mundo nos últimos anos. É um canto a sua gente. É o redesenho de um Nordeste que sempre mostraram seco e pobre, atrasado e envergonhado, ignorante e violento. Os Nordestes de Bacurau são verdes e vivos, inclusive o do sertão, apesar da seca de água provocada pela vilania dos poderosos. Os Nordestes de Bacurau são o da luz elétrica, da internet, dos celulares e tablets conectados ao mundo, mesmo em meio ao nada. É o Nordeste das motos, dos carros, dos paredões de som. Mas ainda do mercadinho, da budeguinha de esquina, do bar “pega bebo” onde todos são solidários, inclusive na cachaça, aos amores e dissabores da vida de cada um. É o Nordeste de muitos pretos, pobres, da mulher sozinha. Mas também da alegria fácil, do riso solto, da morte ainda presente. Morte selvagem, violenta. Mas também a morte amena de quem viveu uma vida inteira e deixou sementes brotando por todo país. Nordeste resistência, Nordeste existência, Nordeste vivo. Nordeste afetuoso, empático, solidário, democrático, plural. Nordeste de luta, de Margarida Maria Alves, de João Pedro Teixeira. Nordeste de Bacurau, de Carmelita, de Teresa, de Domingas, de Pacote, de Plínio, de Lunga. Nordeste de “gente” inteligente, Nordeste de Glauber Rocha, mas também da tropicália, Nordeste Bacurau de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Nordestes hospitaleiros: “se for, vá na paz”; senão “Bacurau”: “brabo até a morte”!!!

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução Poster Bacurau, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Wagner Geminiano dos Santos

Bacharel e licenciado em História pela Universidade Federal de Campina Grande - UFCG (2005). Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE (2008). Doutor em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Ex-Professor do Departamento de História da Faculdade de Formação de Professores da Mata Sul - FAMASUL (2009-2013). Professor da rede municipal de ensino das cidades de Água Preta - PE e São José da Coroa Grande - PE. Desenvolve pesquisa nas áreas de Teoria da História, História da Historiografia e Historiografia brasileira.

SOBRE A COLUNA

Teoria, provocações e algo mais

Coluna do Fórum de Teoria da História e Historiografia.

1 comment

  1. Roberto Kenard 17 dezembro, 2019 at 18:14 Responder

    Bacurau é só mais um filme brasileiro ruim. Não é simples, é simplório. Um filme ruim com intenções políticas desserve à arte e à política.

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