Em função do primeiro filho de Dona Glória, personagem machadiana, ter nascido morto, na gestação seguinte, ela faz uma promessa: se seu próximo filho nascesse saudável, ele iria viver uma vida de dedicação à Igreja. Tal promessa se refere ao Bentinho, narrador personagem de Dom Casmurro. Quando perguntado sobre os projetos eclesiásticos de sua mãe, Bento responde, esquivo:
— Vida de padre é muito bonita.
— Sim, é bonita; mas pergunto se você gostaria de ser padre, explicou rindo.
— Eu gosto do que a mamãe quiser (ASSIS, 2009, p. 47).
Porém, no momento em que Bentinho tem idade para ir ao seminário, ele está envolvido com Capitu, seu primeiro amor. O motivo principal ou único de sua repulsa ao seminário era Capitu (ASSIS, 2009, p. 116). O jovem casal pensa em como evitar tal separação, que se dá não só por causa da vida celibatária, mas também pelo fato do seminário se situar em um lugar distante. Para tanto, Bentinho solicita a ajuda de José Dias, o agregado que vive com sua família. José Dias se dispõe a ajudá-lo. O Padre Cabral também intervém na situação, dizendo para Dona Glória que ela ”não podia por em seu filho, antes de nascido, uma vocação” (ASSIS, 2009, p. 95). Na imaginação de Bentinho, até mesmo o Imperador conversa com sua mãe a fim de convencê-la a desistir de mandá-lo para o seminário.
Apesar de diversos personagens questionarem a posição de Dona Glória, ela mantém-se firme em sua decisão. ‘’Católica e devota, sentia muito bem que as promessas se cumprem; a questão é se é oportuno e adequado fazê-las todas, e naturalmente inclinava-se à negativa” (ASSIS, 2009, p. 142). Nesse ponto, Dona Glória afastava-se de seu filho, que fazia promessas e não cumpria. Nas palavras de Bentinho: ‘’eu andava carregado de promessas não cumpridas. (…) O céu fazia-me o favor, eu adiava a paga” (ASSIS, 2009, p. 46). Isso nos leva a questionar até que ponto os filhos são capazes de corresponder aos pais.
Além disso, em uma ocasião em que Dona Glória adoece, para não ser padre, Bentinho chega a desejar em segredo que sua mãe morresse: ”mamãe defunta, acaba o seminário” (ASSIS, 2009, p. 125). Esse pensamento pode ser entendido como sintoma do tamanho sofrimento que a postura de sua mãe acarretava. Apesar de tanto relutar, no fim das contas, Bentinho vai para o seminário. No entanto, ele consegue, ao menos, um acordo: se ele não gostasse do seminário em até dois anos, poderia abandoná-lo.
Chegando ao seminário, Bentinho faz um amigo, o Escobar, a quem revela a sua angústia:
— Escobar, eu não posso ser padre. Estou aqui, os meus acreditam e esperam; mas eu não posso ser padre.
— Nem eu, Santiago.
— Nem você?
— Segredo por segredo; também tenho o propósito de não acabar o curso; meu desejo é o comércio. (…) E não é que não sou religioso, mas o comércio é a minha paixão (ASSIS, 2009, p. 158).
Esse drama vivenciado por Bentinho e Escobar não é comum somente na ficção, visto que apenas 35,8% dos estudantes afirmam que a família não teve nenhuma influência na sua escolha profissional (SCHOIER et al, 2015, p. 7). A família está sempre decidindo pela criança e pelo adolescente, impedindo que eles aprendam a lidar com as situações de escolha (NEIVA, 2007, p. 37). Nesse caso, é como se a família, furtasse do adolescente a possibilidade de que ele próprio elabore a sua ”identidade vocacional-ocupacional, ou seja, a definição do que fazer, como e onde e também a compreensão do por quê e para quê dessa decisão” (NEIVA, 2007, p. 39).
Um dos fatores que explica tal situação é que ‘’alguns pais buscam realizar-se por meio dos filhos” (BOHOSLAVSKY, 1987, apud SANTOS, 2005, p. 57). Isso compromete a capacidade que a família tem para dar apoio para o jovem no momento da escolha profissional, que está relacionada com o seu grau de expectativa, com os seus conflitos e com a sua capacidade de manejá-los (SANTOS, 2005, p. 57).
Frequentemente, o desejo dos pais é ver os filhos continuando a sua própria história (SANTOS, 2005, p. 58). Esse parece ser o caso de Dona Glória, que deu ao filho a incumbência de pagar a sua promessa que foi feita em função de um evento traumático na sua vida. Nesse contexto, o conflito de Bentinho está relacionado ao fato da escolha profissional ser uma oportunidade de provar a lealdade à família (SANTOS, 2005, p. 59).
Além disso, o que torna a escolha profissional ainda mais desafiadora é o fato de que ‘’a escolha configura-se também como uma despedida, um luto” (SANTOS, 2005, p. 57). Isso acontece porque toda escolha implica em uma não escolha, como pode-se notar no caso de Dom Casmurro: ou Escobar torna-se comerciante, ou torna-se padre; ou Bentinho namora Capitu, ou torna-se padre. Nesse sentido, toda escolha é também um ato de coragem (ibidem), pois é preciso disposição para elaborar esse luto inerente a ela.
Em suma, a situação em que Bentinho se encontra retrata a realidade de muitos adolescentes cuja família intervém no momento da escolha profissional de forma muito incisiva e pouco colaborativa. Não ter o devido apoio da família e não gozar de liberdade de escolha é muito prejudicial para o sujeito, visto que escolher uma profissão não é somente decidir o que fazer, mas, principalmente, decidir quem ser (NEIVA, 2007, p. 37). Considerando a importância dessa escolha, é essencial que a intervenção da família seja moderada, diferentemente da intervenção da Dona Glória.
REFERÊNCIAS:
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro, São Paulo: ed. Saraiva, 2009.
NEIVA, K. M. ”A escolha profissional como um processo” In: Processos de escolha e orientação profissional. São Paulo: Vetor, 2007.
SANTOS, Larissa Medeiros Marinho dos. O papel da família e dos pares na escolha profissional. Psicol. estud. Maringá , v. 10, n. 1, p. 57-66, Apr. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-73722005000100008&lng=en&nrm=iso>. access on 22 Mar. 2021.
SCHOIER, Bruna; QUADROS, Bruna; GODOY, Luthiane; PACHECO, Sinara Bock. Influência familiar na escolha do curso de graduação. Psicologia.pt: o portal dos psicólogos, Três de Maio, Rio Grande do Sul, 2015.
Créditos na imagem: Reprodução: Estudante na State Opera, 1966, Herbert List.
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