Bolívia: a profunda convulsão que leva ao desastre

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Este texto foi traduzido por Livia Vargas González a partir da versão atualizada de El Salto, publicada em 11 de novembro de 2019.[1]

 

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No último 20 de outubro ocorreram as eleições na Bolívia e eventos continuam se desdobrando com uma rapidez enorme. É muito complicado compreender o que está em jogo lá, pois nas ruas e estradas da Bolívia existe não apenas uma disputa eleitoral mas, pelo menos, uma enorme e heterogênea fúria contra dez anos de injustiças por parte de Evo e da sua forma machista-leninista pseudo plurinacional de organizar o mando político, a economia e a vida pública. Toda uma energia social de desacato e de impugnação que a população não está disposta a continuar admitindo, vem sendo cercada por uma manobra gigantesca provida das mais delirantes e machistas posturas conservadoras, capitalistas, racistas e religiosas.

Tento ensaiar a construção de uma explicação: tecer fatos e narrativas contrastadas porque, nestes momentos, se trata é de desarmar a lógica da polarização, confronto e champa guerra [guerra de baixa intensidade] que hoje despedaça as cidades e regiões da Bolívia. Trata-se, aliás, de apreender a partir da ferocidade do que está sendo confrontado.

 

1. O que não pode se esquecer:

A Bolívia encontra-se encurralada numa fraude há dez anos, desde que foram acordadas a Constituição e a permanência de grandes propriedades com os latifundiários do Oriente, desconhecendo a deliberação feita por uma ampla constelação de deputados constituintes, homens e mulheres de diversas nacionalidades que habitam o país. Se bem que, e isso é preciso lembrá-lo, tratava-se de pessoas que se tornaram constituintes através da mediação partidária MASista, a qual não só aceitou e manteve a representação partidária como única forma da atividade e participação política, mas também encontrou maneiras – enganosas – de ignorar qualquer outra forma competitiva de engajamento político, negando, desde então, a ampliação democrática. Eis a razão pela qual para muitos a injustiça é antiga.

 

2. O que deve estar presente:

Em 21 de fevereiro de 2016 foi convocado um referendo no qual homens e mulheres bolivianos maiores de idade foram questionados sobre a reeleição do Evo pela quarta vez, indo contra e por cima do texto constitucional – quer dizer, do já havia sido acordado em 2009. E a Bolívia disse NÃO. Não à reeleição indefinida de um regime político para incentivar o extrativismo – embora com uma retórica anti-imperialista e rigidamente autoritária, mesmo vestindo o disfarce plurinacional. Um regime político extrativista, portanto, ferozmente anti-comunitário e misógino. Logo, toda a ginástica jurídica e argumentativa em relação com o “direito político” à reeleição, que concentrou-se nos anos seguintes, afeitou muito mais pessoas no momento em que “habilitou” Morales para permanecer indefinidamente no governo.

 

3. dia das eleições:

Em 20 de outubro de 2019, houve eleições. Vários candidatos se confrontavam. Os dois com maiores possibilidades eram Evo Morales – postulado pelo MAS – e Carlos Mesa – candidatado pela Comunidad Ciudadana. Embora fossem distinguíveis na forma, mostravam projetos econômicos não muito diferentes: ampliação do extrativismo como o coração do funcionamento do país.

A lei eleitoral da Bolívia postula o seguinte: se nenhum candidato obtiver mais do 50% na disputa, será preciso um segundo turno eleitoral, caso a diferença entre o primeiro e o segundo candidato for menor que 10%. As primeiras contagens naquele domingo, que hoje nos parece tão distante, assinalavam que haveria segundo turno. Elas apontavam que no dezembro próximo Morales teria que se enfrentar Carlos Mesa – um ex-vice-presidente de um governo neoliberal derrubado pela mobilização comunitária, indígena e popular no ano 2003, ex-presidente interino da época rebelde e ex-âncora de notícias – e a sua Comunidad Ciudadana – coalizão política heterogênea organizada durante os últimos anos. Do nada, às 19hs40, a contagem parou.

 

4. Que sempre não:

O silêncio na contagem, sem explicação nenhuma, gerou uma enorme tensão social num país onde até há uma década, a rotatividade das pessoas nos altos cargos era considerada um princípio muito presente da atividade política comunitária, popular e sindical, justo para preservar a não eternização de qualquer um sob a figura de “líder perpétuo”, como havia acontecido, décadas atrás, com Juan Lechín na Central Obrera Boliviana (COB). Isto é algo que nos faz lembrar hoje, de novo, os mallkus e mama t’allas da nação Qhara Qhara, os quais enunciam com força que, o que se trata é que ninguém seja indispensável e “atornillarse no poder”[2].

Após o silêncio na contagem dos votos, alguns começaram a falar em “fraude”, enquanto outros decidiram por “ganhamos”. O mal-estar agravou-se e foi esse o momento em que os Comités Cívicos – particularmente o de Santa Cruz – começaram a deslocar a presença e a voz de Carlos Mesa e do seu partido político Comunidad Ciudadana. Os Comités Cívicos são instituições políticas antigas na Bolívia. Trata-se de diversas “forças vivas”, agrupadas por departamento – desde câmaras empresariais, blocos e fraternidades das festas locais, colégios profissionais, organizações sindicais, etc. – que expressam os acordos de classe, quase sempre sob a hegemonia dos empresários locais, diante o histórico “centralismo” político de La Paz e, no geral, defendendo interesses regionais.

 

5. Sobre “Evo ganhou”:

Em 22, 23 e 24 de outubro abriu-se na Bolívia um momento de deliberação intensa. Múltiplas vozes começaram ocupar o espaço público se alinhando ao redor de duas versões dos fatos do dia 20: “Não há diferença maior que 10% e, portanto, tem que haver um segundo turno” versus “Há uma diferença maior que 10% e, portanto, Evo fica”. Falaram os Comités Cívicos departamentais, um a um, embora o mais estridente foi sempre o de Santa Cruz.

Os dias dos grandes Cabildos começaram: imensas concentrações de dezenas ou centenas de milhares de pessoas, nas quais os partidários de cada partido exaltam-se entre si, afirmando sua posição e desafiando à contrária. Até então parecia uma pinça de soma zero muito conhecida: dessas que empurram e obrigam cada um a optar por uma ou outra posição, embora nenhuma delas fosse conveniente. Maria Galindo descreveu a crise política, que já se perfilava, como uma “luta de galos”, convocando à construção de alguma mediação provida das mulheres para abordar a situação de desastre que se vislumbrava.

Para muitas de nós, tal chamado fazia sentido e procuramos abrir a mediação. O jogo político parecia ter a forma de disputa entre vítima e executor: quem é a vítima e quem o agressor parecia ser o cerne do debate. Evo insistia em remover Carlos Mesa do jogo, de forma fraudulenta, ou este desconhece a discutível vitória e se rebela contra aquele. Apareceu a OEA oferecendo uma auditoria eleitoral, tendo em vista a nula credibilidade do Tribunal Eleitoral boliviano. Ainda era o momento para a palavra e para os argumentos: o assunto em disputa girava em torno dos números decimais dos resultados de uma eleição completamente mal encaminhada. Segundo turno, se houvesse até 9,9% de distância ou Evo permaneceria, se atingisse 10,1% dos votos.

 

6. Quatro fontes de sentido em confronto:

A semana que começou em 28 de outubro, ou seja, a segunda semana de convulsão, o conflito político – e cada vez mais social – que se manifestava em diversos bloqueios nas principais cidades e inúmeras concentrações na rua, desdobrou-se em quatro fontes de produção de sentido em disputa. a) O governo Evo cada vez mais teimoso na sua surdez triunfalista, se ocupando em mobilizar às organizações sociais corporatizadas que, é justo dizê-lo, não tinham iniciativa nenhuma por conta própria e, pelo contrário, ficavam esperando instruções, confiando, todas elas que a proximidade da festa de Todos os Santos acalmasse os ânimos. b) Carlos Mesa, Comunidad Ciudadana e os Comités Cívicos aliados, apelando à “defesa da democracia” e exigindo o segundo turno; convocando uma e outra vez às pessoas a se concentrarem em imensos cabildos em “defesa do voto”. Durante essa semana começou ficar plenamente visível a participação de muitíssimos jovens, estudantes de universidades privadas.

Como fonte de sentido discordante, na medida em que insistia em desarmar o cenário de desastre, começou ficar presente: c) uma crescente articulação de feministas e mulheres em luta, fazendo enormes esforços por se reunirem para debater e se conectar em La Paz, Cochabamba, Santa Cruz e, talvez, em outras cidades. A coletiva Mujeres Creando, eixo fundamental dessa articulação, organizou, em 30 de outubro, uma intervenção pública no centro de La Paz a qual chamaram “aborto coletivo” dos caudilhos ecocidas; em outras cidades, outras mulheres e coletivos feministas realizaram ações diversas: “varreram” publicamente a sujeira caudilhista em Santa Cruz, pegaram força para abrir um espaço de deliberação em El Alto e, em Cochabamba, também se reuniram para discutir e conseguiram escrever manifestos em meio a uma situação cada vez mais tensa de brigas nas ruas.

d) Uma última fonte de produção de sentido em confronto, que rapidamente adquiriu centralidade, foi Luis F. Camacho, presidente do Comité Cívico de Santa Cruz. Este personagem, num conhecidíssimo movimento de competência patriarcal, deslindou-se pouco a pouco de sua aliança para respaldar a Carlos Mesa e começou ele mesmo a se apresentar como protagonista, autorizado nem mais nem menos do que por “deus”, para encarnar a mensagem “anti-Evo” das ruas. Eis que, na terceira semana de conflito no começo do novembro e depois da festa de lembrança dos mortos, a convulsão se exacerbou e ficou mais complexa ainda.

 

7. Da “luta de galos” ao triângulo “vítima-carrasco-redentor”:

Entre os dias 31 de outubro e 4 de novembro, a exigência coletiva do segundo turno eleitoral produto da desconfiança no 0,1% de votação que daria a Evo a sua permanência de 20 anos no governo, transformou-se num completo desconhecimento dele nas mobilizações nas ruas. “Fora Evo” tornou-se a consigna espalhada desde o Comité Cívico de Santa Cruz e, seu dirigente o Macho Camacho – como ele mesmo gosta de ser chamado – começou a ir e voltar de Santa Cruz ao aeroporto de El Alto com uma “carta de renúncia” que, segundo dizia, ele se propunha entregar a Evo para este assiná-la.

Em cada retorno tencionavam-se ainda mais as coisas em La Paz entre os que não o deixavam sair do aeroporto e os que queriam acompanhá-lo até a cidade e, enquanto isso, Cochabamba transbordou em virulentas e sórdidas brigas que resultaram em um morto e dezenas de feridos, ao mesmo tempo em que vinham à tona os preconceitos racistas e misóginos mais brutais, como aconteceu na localidade de Vinto.

Inesperadamente, essa quarta voz se fez autônoma do roteiro da Comunidad Ciudadana, com dois efeitos imediatos. Por um lado, ela apagou completamente Carlos Mesa e seu discurso emitido em chave de defesa da democracia liberal processual; por outro, destruiu qualquer possibilidade de mediação que estava se construindo com grande dificuldade, para reinstalar o confronto “entre homens”, ou seja, entre machos, como o nó do conflito. Aliás, o Macho Camacho auto investiu-se em qualidade de redentor.

Então, acabou que ficamos desse jeito: Evo cada vez mais zangado, cercando junto com os seus aliados a praça Murillo – que é o coração político de La Paz –, dizendo que a sua vontade é lei no meio de distúrbios crescentes por todo o país; Carlos Mesa chateado e com a sua capacidade de fala anulada; Camacho, indo e vindo de Santa Cruz para El Alto, afirmando ele ser a salvação da nação por desígnio de deus (literalmente o diz assim num vídeo de produção profissional que circula pelas redes sociais).

Vítima-carrasco-redentor: no confronto político instaurou-se de forma amplificada o triângulo simbólico patriarcal por excelência. A aparição de Camacho-redentor desafia o Evo-verdugo e silencia o Mesa-vítima. Desta forma, a mediação da palavra feminista/feminina se fez/faz cada vez mais urgente e, ao mesmo tempo, mais difícil. É cada vez mais complicado enunciar as palavras e desenhar as ações que trazer ar nesse trágico triângulo que acabará nos engolindo a todas nós. Algumas vozes se assustam e preferem curvar-se a algum dos redentores em oferta, outras, nos obstinamos em não fazê-lo.

A situação se torna cada vez mais obscura porque a sociedade boliviana é arrastada para as próprias entranhas da ordem simbólica patriarcal que sustenta a lógica de guerra que garante a acumulação expansiva e colonial do capital. Segundo este roteiro, já não se disputa mais o poder político, mas a Bolívia está sendo “salva ou destruída”, dependendo de quem fala. Evo pode jogar nesse jogo, mais uma vez, com grande conforto. Já não está mais no debate público se ele desconhecia ou não, repetidas vezes, os mandatos que surgiram da sociedade quando ela foi consultada; o que está em discussão é quem “salva” à Bolívia. Evo-redentor contra Camacho-carrasco / Camacho-redentor contra Evo-carrasco. E ao insistir nessa história, há já três mortos e muitos feridos.

 

8. Desarmar este cenário é o desafio:

Não está claro como desarmar essa situação. Não é fértil opor um discurso de “pacificação” ao confronto violento que se intensifica. Precisamos aprofundar e desarmar, tanto quanto possível, a lógica que incentiva a produção repetida dessa forma política anticomunitária, a expropriação da voz e as decisões coletivas, disciplinares dos corpos, profundamente misóginas, que são ridiculamente exibidas hoje, entre homens raivosos que se mostram bíblias. Confira o/a leitor/leitora, o discurso patético do “brilhante marxista” García Linera ontem.

Algo que sabemos: precisamos fortalecer uma voz coletiva e pública que torne audíveis as palavras, propostas e desejos feministas, as vozes das mulheres presas na luta patriarcal pelo domínio e controle de nossas vidas, as decisões das comunidades que rejeitam a extrativismo acelerado e as idéias de homens não violentos.

Precisamos uma mediação política que consiga destravar a situação. E temos que construí-la nós mesmas em Assembleia permanente: não será a Igreja, nem as universidades, nem as instâncias internacionais que podem mediar. Precisamos, enquanto mulheres e enquanto feministas, reforçar e desdobrar a nossa própria capacidade política, ligando-a às diversas agrupações comunitárias, vizinhais, sindicais, sociais e intelectuais que vão se afastando do cenário da ruína e do silêncio.

 

Domingo, 10 de novembro pela noite (atualização para El Salto):

Por que o triângulo do confronto estéril e incompreensível parece estar engolindo a todxs nós?

Os aliados que o MAS escolheu anos atrás – os empresários do Oriente – quando decidiram limitar seu “processo de mudança” a uma expansão das elites econômicas e políticas, negociadas de cima para desenvolver vigorosamente o extrativismo, efetivamente lhe deram uma facada.

A cúpula do MAS que hoje renunciou, deixou um país incendiado e fervendo na caldeira do ódio. Eles não sofrerão as consequências do que virá. Comodamente, poderão continuar contando a sua história do “golpe-cívico”, negando sua responsabilidade e se vangloriando no seu papel de vítimas, sonhando que algum dia voltarão de novo como redentores. As consequências do que possa vir serão batalhadas e sofridas pela população trabalhadora e comunitária da Bolívia; mulheres e dissidentes os sentirão em seus corpos.

Implodiu um regime político nutrido há anos por uma força coletiva heterogênea e plural; energia criativa que, depois, o próprio MAS desconheceu e disciplinou subordinando-a apenas como clientela. Isso colapsou hoje. Os governos vão embora, os povos ficam. Convém não esquecê-lo.

 

 

 


NOTAS

[1] A versão original pode ser acessada em: https://www.elsaltodiario.com/bolivia/bolivia-la-profunda-convulsion-que-lleva-al-desastre-

[2] Expressão que significa ancorar-se ou ficar grudado ao poder.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Raquel Gutiérrez Aguilar

Raquel Guitiérrez Aguilar (México, 1962) é matemática, filósofa, socióloga e ativista mexicana. É professora de sociologia e pesquisadora no Instituto de Ciências Sociais e História da Benemérita Universidade Autônoma de Puebla, com ênfase nos estudos dos movimentos de transformação social, e de resistência indígena na América Latina. Durante a década de 80 formou parte dos movimentos insurgentes das comunidades aymaras e quéchuas na Bolívia, participando da fundação do Exército Guerrilheiro Aymara Tupac Katari (EGTK), o qual operou no planalto boliviano entre 1986 e 1992.

SOBRE A TRADUTORA

Livia Vargas González

Venezuelana, militante feminista-marxista, filósofa e mestra em Filosofia e Ciências Humanas pela Universidade Central da Venezuela (UCV), é professora na Escola de Sociologia nessa mesma casa de estudos e, além disso, editora, formando parte do equipe editorial da Biblioteca Ayacucho, uma das mais importantes editoras da América Latina, bem como de El Perro y la Rana e Amalivaca Ediciones. O pensamento de Karl Marx, Jean Paul Sartre, Walter Benjamin e Daniel Bensaïd, fazem parte do seu repertório teórico fundamental, visando a construção de uma proposta teórico política que permita compreender e afrontar os desafios de nosso tempo. É autora do livro Entre libertad e historicidad. Sartre y el compromiso literario (Caracas, 2008), e de vários artigos acadêmicos e de divulgação.

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