Rio de Janeiro, 23 de maio. Num domingo ensolarado em Copacabana, a icônica avenida Atlântica assistiu a um quilométrico e ruidoso desfile de motocicletas, que tinha à frente o desmascarado presidente do Brasil. O evento reuniu milhares de apoiadores governistas e teve a deliberada intenção de ostentar força política. Num momento em que o Brasil atingia a espantosa marca de 450 mil mortes pela Covid-19, aquela aglomeração de pessoas, a maioria delas não vacinada e sem máscara, representava um atentado à sensatez e à saúde pública. Normal: essas são algumas das características do bolsonarismo.
Três dias antes, bolsonaristas do outro lado da Baía de Guanabara haviam se rebelado contra a troca do nome de uma rua. Eis o que ocorreu: com a intenção de homenagear o ator Paulo Gustavo, que falecera recentemente de Covid, a prefeitura de Niterói resolvera, após plebiscito, trocar o nome da rua Coronel Moreira César para rua Ator Paulo Gustavo. Justíssima homenagem. Paulo Gustavo, nascido e criado em Niterói, era um artista amado em todo o país por seu talento, bom humor e versatilidade no teatro, cinema e televisão. Alguns gatos pingados não gostaram. Pergunta: que tipo de mente doentia seria capaz de se incomodar com uma simples homenagem póstuma?
Resposta: a mente bolsonarista. Por mais insano que pareça, há uma lógica torpe em se contrapor à mudança no nome da rua. Subliminarmente, o poder público estava desprestigiando a memória de um militar para afagar a memória de um artista assumidamente gay. Além disso, outro fato justificaria a repulsa: Paulo Gustavo, antes de adoecer, reclamava insistentemente da falta de vacinas no Brasil. Com a morte dele, centenas de fãs e amigos choraram a sua perda prematura e reiteraram que a vacinação teria salvo o arlequim que fazia o Brasil sorrir. Ora, reclamar da falta de vacina é reclamar do governo. E artista gay que reclama do governo não merece homenagem: essa é a lógica.
O desfile motociclístico à guisa de Benito Mussolini e a intolerância absurda em Niterói são alguns exemplos das ações fascistas e violentas que se multiplicaram no Brasil com a eleição de Jair Bolsonaro. Ainda na campanha política de 2018, candidatos bolsonaristas quebraram uma placa de rua (seria algum fetiche?) que homenageava Marielle Franco. A vereadora carioca, cruelmente assassinada, era negra, lésbica, favelada e ativista de esquerda. Também no Rio, a sede de uma produtora foi atacada com coquetéis molotov, em protesto pela produção de um vídeo polêmico. Um dos responsáveis pelo atentado, ex-filiado ao partido do presidente, declarou que havia sido um ato de amor. Lembrei-me das palavras de São Paulo sobre o amor.
Com a pandemia, intensificou-se a dicotomia política e o proselitismo desmedido. O mandatário negacionista chamou a peste mundial de gripezinha, posicionou-se contra o isolamento social, desprezou as vacinas e apostou em remédios milagrosos. Para apoiar esses mandamentos, as fiéis falanges governistas produziram cenas bizarras: aglomeraram-se em passeatas carregando esquifes de isopor, queimaram máscaras, amaldiçoaram as vacinas e se apaixonaram pela cloroquina. Essa política desastrosa levou o Brasil a contar mais de 2 mortes diárias por Covid. Estudos recentes estimam que o Brasil chegue a atingir 1 milhão de mortos até setembro. Para o bolsonarismo, tudo isso é normal.
Outra face sombria desses tempos: os índios brasileiros estão morrendo mais, ou infectados pelo coronavírus ou assassinados por garimpeiros. Se juntarmos o extermínio indígena, as aglomerações irresponsáveis, os esquifes na rua e os protestos contra a memória dos mortos, o que podemos identificar em comum? La muerte. Em nome de um fanatismo cego, todas elas são atitudes que praticam, banalizam ou desrespeitam a morte. Essa é a cara da necropolítica. O desrespeito aos mortos chega a um nível tão monstruoso que bolsonaristas comemoraram a morte de uma criança de sete anos devido ao fato de que o menino era neto do maior adversário político do presidente.
Quando essa onda de fascismo começou a medrar pra todo lado, entrei a conjeturar: quem eram esses compatriotas tão abomináveis? Onde estavam antes do bolsonarismo? E agora, onde vivem? Do que se alimentam? Como se reproduzem? Pra responder a essas questões, recorri ao conceito de esporo. Em Biologia, esporos são formas reprodutivas de plantas, fungos e algas. Funcionam como sementes mais resistentes, que podem ficar adormecidas por longos períodos até que surja um ambiente favorável para sua germinação. Os comportamentos fascistas que presenciamos hoje são esporos que viviam, há várias décadas, incubados em mentes brasileiras de todas as classes sociais. O governo Bolsonaro lhes restituiu o solo ideal para germinar e crescer.
O bolsonarismo xiita representa uma feição execrável que sempre existiu na índole brasileira. Os fascistas atuais são produto de uma sociedade escravocrata, patriarcalista, conservadora, moralista, machista, preconceituosa e racista. Não é exagero. Há uma parte do Brasil (felizmente minoria) que, de forma velada ou ostensiva, cultua todos esses adjetivos.
Embora devamos ponderar que existam graus diferentes de bolsonarismo, é triste constatar que muitos desses compatriotas abomináveis são pessoas do nosso convívio, que sempre viveram entre nós, que se alimentam de feijão com arroz e que, pra nossa infelicidade, se reproduzem normalmente — e irão transmitir seus esporos da maldade às gerações vindouras. Vaticino que o governo Bolsonaro está com os dias contados, mas o bolsonarismo permanecerá, incrustado em esporos capazes de se manter dormentes até que um mau vento os desperte mais uma vez
Créditos na imagem: Reprodução. Foto: Abraão Soares/Futura Press/Estadão Conteúdo.
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Luciano Alberto De Castro
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