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Adriano Menezes: Lugar errado

carga viva

 

Um homem muito alto, uma casa baixa, depois dois homens hábeis e fortes sob a lona e seus parentes quase gigantes descendo a escada rolante de um aeroporto. Eram fragmentos de uma manhã por dentro de outra manhã, com partes de um crepúsculo vermelho, agora não mais onírico. E justo na segunda cidade desses fatos não há aquiescência à identidade. Mas na historia escrita, não sei se na noite real ou na seguinte, advindos da cidade estranha, dois diálogos parecem o mesmo. Talvez em uma entrevista de televisão ou coisa lida em algum romance, o Garcia Marques esteve em um evento público com sua mãe anciã, que se perturbou com a paralisia dos políticos presentes, pareciam-lhe doentes, todos a lhes abrir as portas, carregando seus pertences, cochichando em seus ouvidos, quase a darem colo aos homens. Ela indagara ao filho: “eles são aleijões?”. Pois bem, o caso estaria em uma página do Livro de areia. Mas sequer sei em que quarto estou a relatar uma quase lembrança entre dois escritores. Talvez o Borges esteja na mochila, entretanto, a cabeça era habitada ainda por dissonâncias pretéritas, uma festa, quem sabe. Acordara em uma casa que não se firma no presente. De pé a custo, sigo tábuas corridas e me detenho em uma sala grande com cortinas semi abertas e muita luz, talvez com uma praça ao fundo. Troco as prioridades e, na esperança de azulejos que enfim despontam ao fim do corredor, posso definir a forma de um copo sob a torneira de um filtro. Passo por ali algum tempo ouvindo o barulho da água ficando mais agudo enquanto sobe pelo vidro que se esvazia em mim – olhos fechados. Um ser peludo, ora rasteiro, ora saltitante e de voz muito aguda se agarra nas barras de minha calça. Sigo uma outra voz: “para Nina, a educação!”, “Nina, solta a perna do moço”. Dou em um alpendre em que uma velha faz tricô e ainda pergunta: “tomou café, café não, almoço, né?”. Diante de mim uma cidade completamente estranha, uma praça bem arranjada, sol. Que diabo de lugar era aquele? Vem-me então completo o nome do conto: Utopia de um homem cansado. O que fazer com essa informação? Gabo teria plagiado Borges? Foram reflexões ainda em um ignoto sofá de quarto. Aquele corpo pequeno agarrava com dentes e pernas a minha perna, enquanto eu só pensava em voltar ao filtro, atravessar as tábuas enceradas e brilhantes e entrar naquele paraíso de ladrilhos brancos, caminhar até a bancada, olhar o outro lado da praça pela janela da cozinha e decifrar que raios de cidade era aquela. Só que ali pude vislumbrar uma bandeja fumegante de pães de queijo em formatos de fuscas, fazendo o estômago aventar náuseas, o que me devolve ao sofá em que provavelmente dormi. Tento não lembrar a cena monocromática em que dois gêmeos muito grandes, depois de falarem da eternidade a que renunciaram, ensaiam o que parece um número acrobático. Um dos irmãos atléticos fazia base para o outro, estavam em um trapézio baixo, um trançava os braços musculosos na perna do segundo. Apenas um falava, e era acerca de quantos anos viveria. Lembraram-me alguém de Francis Bacon em seus círculos. As luzes desse picadeiro estavam apagadas, quando de repente percebo um escorregador que conduzia seus escorregantes para uma piscina de livros. Ocorre que um vento leve conduz as coisas para um novo pensamento, para a viagem passada. Eu e Karina dentro do fusca em uma estrada que logo é rua movimentada e que parecia estreitar à medida que avançamos. As pessoas nos bares que nos ladeavam estão potencialmente contaminadas e quanto mais avançamos, menor é a largura da rua. O carro fica então grande para transitar e como recurso, diminui de tamanho e Karina logo não está mais comigo. A redução do fusca, súbito, o transforma num jipinho de lata verde com pedalinhos. Percebo o perigo e tiro os pés dos pedais, pisando no chão abraço a lataria, fico de pé e viro o veículo, pedalando com velocidade no sentido contrário. A via vai me dando espaço novamente e recupero o carro e Karina. Mas a paisagem nem sempre é dia, nem sempre é noite. Quase sempre agora o tempo é um sol tardio. Procuro o livro e releio um pouco da história do homem muito velho e com um cansaço enorme. É doloroso ler, o fundo branco da página é agressivo. Dali mesmo alcanço a persiana azul, que desço e logo me entrego a outras lembranças. Karina gostava de ir pelas estradas vicinais comigo descobrindo distritos. Agora em quarentena, aproveita para sumir de minha vida. Mesmo em nossa última saída da cidade reticenciou o que seria amor ou sensualidade. Na pretensiosa pousadinha rural, a recepção tinha janelas de chita que precediam o país lá fora, igual ao vestido descortinando a pele de suas coxas torneadas de mulher serrana, enquanto outro movimento decompunha o mantra orelha adentro. O espírito de porco escorria da carne sob o sol vermelho da montanha a tragar a fumaça mais prosaica de um cigarro, por fim. Na volta, o vento, ela dirige, meio desatenta.

 

 

 


Créditos na imagem: Sunset Highway by Grant Haffner

 

 

 

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