Cartões

Caracas, 29/11/2018, 8:30 hs: Aquiles acaba de pegar carona para o colégio com a mãe do Luis, o seu melhor amigo na vizinhança. Foi um alívio para a gente. Pela insuficiência do transporte público em Caracas, tínhamos a semana toda indo a pé desde a casa até lá acima no alto do morro, mais ou menos uns trinta e cinco minutos caminhando bem rapidinho para não chegar atrasados.

Desde a minha chegada aqui no meu país, há exatamente uma semana, é esta a primeira vez que eu tenho coragem para escrever. Têm sido dias muito agitados emocional, mental e fisicamente e, na verdade, o meu corpo e o meu espírito só tem se dedicado a assimilar tudo quanto tem mudado desde minha ida para o Brasil em abril do ano passado… É muita coisa… Ainda hoje me sinto perdida, extraviada e os meus amigos falam-me que isso também acontece com eles o tempo todo. Por fortuna, o Ángel e o Aquiles têm me acompanhado nesta transição.

Mais cedo, enquanto preparávamos a comida do dia para levarmos ao colégio e ao trabalho, o Ángel recebeu uma mensagem: aproximadamente às 01hs da madrugada, num posto de controle na estrada que vai para a cidade de Anaco no Sul do país, a Guarda Nacional (a gendarmaria) apresou o dirigente sindical Rubén González. Ele e outrxs trabalhadorxs da empresa estatal Ferrominera do Orinoco voltavam de Caracas depois de terem participado numa manifestação de trabalhadorxs pela defesa dos direitos laborais e constitucionais. O Estado acusa-o de ter “atacado” uma sentinela, crime reconhecido só para assuntos militares, mas empregado hoje para reprimir os civis que protestam.

Eu sempre deixo a porta da casa aberta. É um velho costume que eu não quero perder por causa do medo. No corredor do andar acabou de passar um senhor cantando uma música. Ele está precisando limpar o quarto de despejo do andar e, como nenhum dos outrxs vizinhxs estava por aí, o senhor veio até a porta para me pedir a chave. Aí eu estou indo com ele:

–Ai, minha garota, eu não sei se outras pessoas têm falado isto com você, mas a gente nem sabe como é que está trabalhando. Olha só! O que a gente ganha no mês [o salário mínimo é de 1.800 BsS mensais] mal chega para comprar meio pente de ovos.

A gente continua falando enquanto ele limpa o quarto, que está lotado de “lixo”, mas de joias para ele e para muitas pessoas hoje: várias caixas de cartão, algumas pastas de escritório, monte de folhas boas para recicla-las… O senhor está contente porque com todo esse cartão ele pode conseguir alguma grana e com as folhas pode levar para o médico dar-lhe os relatórios e as receitas que ele precisa. No quarto também tem uma xícara, um copo, uns potinhos de creme para o corpo (vencidos), uns sapatos de homem (surrados), umas garrafas de rum vazias, mas uma com um pouquinho de rum ainda.

–Eu vou pegar tudo isso aí, minha garota. Esses sapatos eu vou dar para um companheiro de trabalho que tá precisando. Ele vai ficar muito feliz! Esse pouquinho de rum aí eu vou levar para o pessoal e as xícaras eu levo para casa. Ontem, menina, eu peguei monte de cartão! Com isso eu ganhei 1.000 BsS e consegui comprar meio pente de ovos!

Ángel, que estava tomando banho quando eu saí para abrir o quarto do despejo ao senhor, assomou-se na porta da casa.

–Tá tudo bem, Ángel, tô aqui falando com o senhor que limpa o quarto de despejo. De aqui a pouco ele termina.

O senhor acabou de limpar o quarto e agora está arrumando as coisas que achou para leva-las no seguinte andar. Por enquanto, lembro do diário da Carolina Maria de Jesus…

–Bom, minha garota. Muito obrigado pelo favor! Têm pessoas reclamando porque a gente não está limpando o quarto de despejo, mas se o quarto está fechado, a gente não pode entrar nele, né? Eu me chamo José António e você?

–Prazer, senhor José António. Eu me chamo Lívia. Assim que eu estiver na casa com a porta aberta, o senhor só tem que se aproximar e aí eu abro a porta do quarto de despejo para você. Tem problemas para levar as caixas? Estão pesadas? Tomara possa achar mais cartões hoje! Até a próxima, senhor José António!

–Até a próxima, minha garota!

 

SOBRE A AUTORA

Livia Vargas González

Venezuelana, militante feminista-marxista, filósofa e mestra em Filosofia e Ciências Humanas pela Universidade Central da Venezuela (UCV), é professora na Escola de Sociologia nessa mesma casa de estudos e, além disso, editora, formando parte do equipe editorial da Biblioteca Ayacucho, uma das mais importantes editoras da América Latina, bem como de El Perro y la Rana e Amalivaca Ediciones. O pensamento de Karl Marx, Jean Paul Sartre, Walter Benjamin e Daniel Bensaïd, fazem parte do seu repertório teórico fundamental, visando a construção de uma proposta teórico política que permita compreender e afrontar os desafios de nosso tempo. É autora do livro Entre libertad e historicidad. Sartre y el compromiso literario (Caracas, 2008), e de vários artigos acadêmicos e de divulgação.

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