Em meados dos anos de 1920, nos deparamos com uma virada de chave da teoria psicanalítica apresentada no famoso texto de Freud “Além do princípio do prazer”. Neste, encontra-se detalhada a segunda subversão freudiana que trata-se de uma revisão radical da teoria até então em voga da pulsão de vida enquanto pulsão sexual de autoconservação, trazendo a tona um “mais além” deste princípio. Freud vai nos dizer que o ser humano não está constituído apenas pelo princípio da autoconservação e do prazer, muito pelo contrário, na verdade, há algo no interior de todo sujeito que nos impulsiona à destruição. Porém, como tudo que gira em torno da existência humana é ambivalente, este novo desígnio da pulsão não diz respeito apenas a um sofrimento mas também a uma satisfação. Haveria uma espécie de compulsão à repetição que procura, por fim, um gozo que só irá se satisfazer no mais alto grau de nada, ou seja, com a completa zerificação da vida. A esta pulsão damos o nome de Pulsão de morte. Posteriormente, Lacan irá nomear o objeto causa do desejo o qual seria responsável pelo impulso que mantém o sujeito desejante como objeto a, para o qual não há satisfação na realidade. Como resultado das repetições movidas pela pulsão de morte se buscaria em teoria um gozo supremo que levaria ao nirvana e que, por isso, não pode ser completo e sim parcial.
Não é por acaso que esta virada teórica acontece logo no pós Primeira Guerra. Aproximadamente em 1917, Freud começou a receber em sua clínica muitos casos de soldados que, saídos da guerra, relatavam sintomas do que hoje chamaríamos de Estresse Pós-Traumático, mas que na época passou a ser conhecido como Neurose de Guerra. Eram comuns testemunhos do que Freud conceituou como sonhos de angústias, que podemos entender como relatos vívidos de momentos vivenciados durante o conflito e que voltavam em forma de sonho perturbando a mente dos soldados. Aliado a isto, alguns casos famosos de Freud começaram a ser olhados pela lente de uma virada pulsional que apontava para um tal impulso autodestrutivo. Um exemplo, é o famoso caso do Homem dos Ratos, o qual vamos nos recordar que passava por um relato que, à época da análise, chamou bastante atenção de Freud porquanto este homem demonstrava não apenas terror em relação ao castigo torturante dos ratos no ânus que relatara, mas também demonstrava um certo “semblante de prazer”, segundo Freud. Ele também se utiliza do exemplo do próprio neto que, em uma brincadeira inocente com o Ford-a, reproduzia um padrão de repetição angustiante que simulava a ausência e presença da mãe. Com esses exemplos, Freud constrói o conceito de pulsão de morte que, a partir de então, dará uma nova direção para a teoria psicanalítica. Lacan irá um pouco além no futuro e dirá que toda pulsão é uma pulsão de morte.
Mas o que a pulsão de morte tem a ver com a política? Seria possível relacionar esse conceito tão importante da teoria psicanalítica com uma leitura social mais atual? Vamos pensar o Brasil no presente. Um discurso de retorno ao conservadorismo que traz junto a si um forte sentimento de ódio e por vezes de destruição, desagregação e intolerância para com o outro. É interessante entender, primeiramente, que a pulsão de morte é silenciosa, então quando há o grito e a onda conservadora chega avassaladora é porque já havia algo anteriormente. Sendo assim, pode-se pensar que o tal “bolsonarismo” está para além da figura do Bolsonaro e que este é apenas, no momento, o objeto de projeção das fantasias fascistas que se proliferam há um tempo na mente do brasileiro. Mas qual seria a origem dessas fantasias?
O famoso psicanalista brasileiro, Christian Dunker, faz uma leitura muito interessante do discurso Bolsonarista. Ele nos aponta que o que muitos caracterizam como incitação ao ódio é um fenômeno já descrito por Freud no texto “Psicologia das massas e análise do Eu” (1920-23). Aparece como estratégia em meio a um contexto de anomia social, insegurança, desesperança, onde o país havia dado um passo à frente e agora dá 10 atrás, e assim é gerado um sentimento muito forte de não pertencimento. Torna-se tentador, então, reforçar a pertinência das pessoas a seus grupos, sejam religiosos, esportivos, de gênero. Estes grupos seriam unidos pelo ódio a um inimigo que estaria causando essa situação. O inimigo em comum mantém o laço fraternal entre os grupos. Pode-se entender, assim, que a ascensão do Fascismo corresponde a uma certa instrumentalização de frustrações.
Se nos atentarmos ao progresso da escalada do conservadorismo no Brasil encontramos um embrião (numa análise mais recente, dos últimos 10 anos) nos movimentos populares de 2013. Podemos interpretar que havia o compartilhamento de uma libido de criação muito intensa que levou milhares às ruas a fim de protestar por mudanças ferrenhas nas estruturas sociais vigentes. No entanto, é exatamente em meio ao público “diverso” que o discurso fascista encontra espaço para criar algo da ordem de uma desagregação. Percebe-se, como análise desse processo, uma apropriação da libido de criação de uma mudança social, que culmina no desenvolvimento de um sentimento ambivalente. Há uma fusão das pulsões, como se o eros de criação fosse apropriado por um discurso conservador para fins de destruição.
Para que isso ocorra podemos observar alguns fatores essenciais e um dos principais seria a deturpação do processo histórico. Há nesse sentido um esforço no apagamento de diversos tipos de violência e, para que haja sucesso nesta distorção, é muito importante que se ataquem as instituições de educação. Tanto que percebe-se muito facilmente que os primeiros desmontes de governos fascistas ocorrem sempre nas escolas e universidades. Sob a égide do mesmo discurso do “inimigo em comum”, neste caso supostamente uma ideia de “doutrinação comunista”, implanta-se dentro das instituições uma arma apontada para a liberdade de expressão dos educadores. Da mesma forma acontece com a imprensa, enquanto se fortalece o discurso das instituições religiosas e assim o fascismo vai aos poucos criando como verdade uma narrativa que nasce como uma paranoia. Paranoia que vai dizer respeito muito mais a quem ouve e segue; quem cria o objeto do ódio está mais para a perversão. Conhece-se bem sobre o fetiche alheio e se utiliza da ignorância para espalhar mentiras. Assim, o sentimento de insatisfação é desviado do seu representante e encontra um objeto (de forma paranoica) causa do problema. O negacionismo, portanto, é mais perverso do que neurótico.
Conseguimos perceber então que o discurso bolsonarista monta-se sobre uma estrutura mítica. A ideia seria retornar para um suposto Estado de paz, bem-estar e desenvolvimento que nunca existiu na realidade. Utiliza-se o significante “conservar” no sentido dos tais -conservadores- quase que como um deslocamento do “destruir”. Em última análise seria preciso então conservar valores antigos para destruir novos valores. Cria-se uma narrativa de conto de fadas em que no passado tudo era ótimo e que, para retornar ao paraíso, é necessário desmontar tudo que há no presente e está sob o domínio do inimigo, que seria supostamente a esquerda ou o comunismo.
Para criar a imagem do paraíso, que podemos aqui comparar com o que seria o nirvana (destino final da pulsão), três imagens são essenciais no discurso: Deus, pátria e família. É trazido para o simbólico algo que é essencialmente imaginário, mas que agora por ser coletivamente simbólico se espalha como uma narrativa da realidade. Essa tríade invoca um sentido de fantasia tão forte que é quase impossível competir na realidade. Em outras palavras, nem que haja um sólido programa de governo ele conseguiria barrar a fantasia generalizada que foi construída por todo o processo descrito anteriormente.
Para que essa narrativa possa ter frutos concluímos, por fim, que a ideia do retorno à uma suposta ordem e harmonia, onde tudo era bom, belo e moral suscita, em última análise, fantasias infantis de que há um poder protetor sem restrições. O poder de um pai soberano, remontando novamente a diversas estruturas míticas que o próprio Freud utilizou por vezes em seus escritos. Nos havemos aí com o mito do “pequeno grande homem” que fala sem firulas, fala as “verdades” que o povo quer ouvir, utiliza-se de uma linguagem chula e, principalmente, utiliza-se de todos os clichês populares que qualquer tio usa na mesa da família. Criada a identificação, o povo renuncia à capacidade de pensamento próprio e confia no pai, sem questionamento.
Assim, o discurso fascista se vê vitorioso não por um programa de governo que vai beneficiar as questões sociais, mas porquanto se baseia numa comunhão de afetos que remonta fantasias infantis. Estas, por sua vez, alimentam-se cada vez que o sujeito abre mão de uma opinião própria e, confiando na palavra do pai que brada e grita por si, pode, por fim, mortificar-se e conservar a si o papel de criança que apenas segue cegamente as ordens de seu protetor. O negacionismo perverso cria então negacionistas neuróticos que aproveitam-se da nova narrativa para poder gozar sem o véu da repressão. E assim vemos cenas como “motociatas” em que há homens-machos subindo na garupa de outros e utilizando-se da suposta masculinidade do ato para fazer barulho e agarrar-se junto a outros homens bem como para atropelarem-se e se matarem. O gozo é parcial mas é como se fosse completo. Vemos também cenas como milhares de bolsonaristas saindo às ruas, em plena pandemia, sem máscara para mostrar fidelidade ao “pai” enquanto exaltam e exibem em praça pública suas armas, substitutas naturalmente do falo. Ao mesmo tempo que protagonizam cenas como estas dizem estar lá em nome de “Deus”. E com esse argumento chegamos ao objetivo final da historinha. O que há para se dizer depois de Deus? Não há nada. Deus é a fantasia última e estará sempre acima da realidade, porque talvez seja o que de mais real se mostre em nossa sociedade, é o impossível de se dizer. E porque é impossível é lá que se quer chegar. Deus acima de todos, em cima de todos e esmagando a todos. Mortificando a todos nós pelo bem de nós todos.
Créditos na imagem: Ilustração de Alexandre Teles.
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