HH Magazine
Humanidades e dissonâncias

Da janela, o mundo errante: Roberto Carlos (e Belchior)

Este texto integra a pesquisa Agora não se fala nada: amor, canção e morte em 1972.
*

Porque o mais amado de todos os brasileiros não se sentiria nem amado, tampouco brasileiro, nunca, e daquele profundo trauma de rejeição, daquele vazio em abismo negro a tragar toda matéria, brotava a cada dia a paixão da identificação em seus conterrâneos, que então o amavam com a mesma intensidade que o odiavam – era, afinal, o que sentiam por eles próprios.[1]

 

Eu estava a caminho do mar pela primeira vez. No ônibus que nos levaria de Minas a Vitória, minha mãe foi junto de meu irmão e eu de meu pai. Embora tomada por alguma excitação, adormeci. Passadas algumas horas de viagem, alta madrugada, meu pai me acordou eufórico em uma das paradas. “Acorda, filha, acorda! É a terra do Rei!”. Despertei aos sobressaltos, imaginando um rei como se deve. Coroa, manto, trono. Fui tomada por um fascínio e por uma confusão. “Pai, o Brasil tem é presidente, Fernando Henrique, e você gosta do Lula”. O rosto do meu pai se frustrou. Como era possível que eu não tivesse entendido?! “É Cachoeiro do Itapemirim! Foi aqui que nasceu Roberto Carlos!”. [Alguém na poltrona de trás pede silêncio]. Eu me voltei para a janela do ônibus. Não vi sequer o mínimo. Olhei com certa piedade para meu pai. Ele estava ridiculamente feliz pela passagem na terra do cantor considerado o mais popular do país. Eu tinha oito anos quando descobri que Roberto Carlos era mais importante que o presidente. Voltei a dormir. Meu pai a cantar baixinho… Mas se não for por amor, me deixe aqui no chão[2]

A Janela

Um jovem olha pela janela e ela enquadra um horizonte. A partir dela, a liberdade da estrada [ele] pode ver. As expectativas lançam seus sonhos e pensamentos distante de onde está. Seus desejos projetam-se para além dos limites da casa. Ele conta que outros jovens já seguiram o caminho indicado por ela. Ele pausa no que pensa. Onde ela levaria? Tanta gente já se arrependeu. Desiste. Prefere ficar. Diante dessa decisão, contudo, terá que enfrentar/acatar os dilemas e conflitos do lar. Os confrontos entre pais e filho, presentes e insistentes no mundo do qual quer fugir, ganham um direcionamento: coisas da vida, choque de opiniões. Os desentendimentos seriam normais. Não haveria razão concreta para partir.[3]

A janela, entretanto, continua a seduzi-lo. Ela o convida novamente a ir embora e a experimentar o que o garoto associa à liberdade. Viver a vida que eu quiser/ Caminhar no mundo enfrentando/ Qualquer coisa que vier /Penso andar sem rumo/ Pelas ruas, pela noite sem pensar/ No que vou dizer em casa/ Nem satisfações a dar. Ele pausa no que pensa uma segunda vez. Se convence novamente a ficar.  Lá fora às vezes chove, a noite é sempre fria. O embate com seus pais seria normal, definitivamente. Coisas da vida, choque de opiniões.

A canção A janela de Roberto e Erasmo Carlos, presente do disco do artista capixaba de 1972, descreve uma tensão geracional entre um jovem e sua família. Após oscilar entre o desejo de partir e o de ficar junto aos pais, decide por permanecer na casa. Acata os conflitos como cuidados necessários de um lar amoroso. Coisas da vida. O lar burguês de certo cuidado, afeto e controle seriam mais adequados.  O mundo lá fora, para além da janela, poderia esperar (ou nem sequer ser vivido).

A decisão, contudo, não vem da persuasão dos pais, necessariamente. É o estar diante da janela e do seu enquadramento que o faz, de modo ambíguo, a cobiçar a partida e, por fim, a desistir da estrada e do risco. Ela emoldura um horizonte que o seduz e que o amedronta. Vence o receio. A vontade de ir adiante entra em latência. Vale pontuar: o horizonte panorâmico projetado pela janela era um chamado enfraquecido para se lançar no mundo caro à juventude de 1968.  Abatido, na estrada indicada, estava posto um futuro que ia se tornando passado. O choque de opiniões não seria levado à sua última instância.  Certa energia contestatória, ainda que fraca, chama, mas não convence.

*

O disco de Roberto Carlos lançado em 1972 estampa a face do cantor melancólico em preto e branco, certa altivez e tristeza no olhar perdido emoldurado pelos cabelos ondulados. No livro dedicado ao artista, Pedro Sanches observa que “quem comprasse o Roberto Carlos versão 1972 nas lojas decoradas de Natal teria a impressão de estar levando Jesus Cristo em pessoa para casa”.[4] Cristo, contudo, parece sujeito mais dado ao risco e ao caminho. O álbum de Roberto, com um tom autobiográfico e triste, é todo atravessado por um reportório de indivíduos vacilantes entre a casa e o fora, cuja tensão existencial pode se explicar assim: se o sujeito sai para conquistar o mundo corre o risco de perder-se nele, se não sai, perde o mundo. Há um forte desejo e urgência pela partida, na qual a decisão por ficar geralmente vence. Contudo, quando se lança ao risco do sonho e à aventura (geralmente amorosa) segue-se um arrependimento e frustração.

A oscilação entre segurança (casa) versus liberdade (mundo) se apresenta no disco a partir de três elementos fundamentais: o direcionamento familiar e as tensões próprias a ele, as paixões fraturadas e, em menor grau, a religiosidade, como é a caso da canção A Montanha, que apresentaria o Roberto Carlos religioso, também intérprete de canções gospels.[5] Sobre a vida familiar, na canção Você é linda, por exemplo, há uma ode a uma mulher grávida supostamente desconhecida, um elogio/destaque à função reprodutora feminina.[6] Na canção Acalanto, de autoria de Dorival Caymmi, um pai nina a criança enquanto todos dormem para que a mãe possa descansar.[7] Essa figura paternal doce sugerida pela delicadeza da canção de ninar é confrontada por outra música, Quando as crianças saírem de férias. Nela, um homem casado não suporta a rotina e as responsabilidades que se sobrepõe entre ele e a esposa. A atenção às crianças e às tarefas domésticas fragilizam a vida íntima do casal, ele não esconde a frustração pela ausência da relação sexual com a mulher. Mas o nosso amor/ Não vai longe um deles lhe chama/ Ele quer companhia e reclama/ E você vai/ E assim nosso tempo se passa/ Quando você retorna sem graça e eu me aborreço. Ele se aborrece. Admite a sobrecarga da mulher, mas a responsabiliza e deixa claro o que lhe importa e o que ambiciona de fato: Quando as crianças saírem de férias/Talvez a gente possa então se amar/ Um pouco mais. [8]

Junto dos cenários domésticos, o álbum possui uma tensão dramática constituída por paixões em fratura. Nessas canções, os amantes direcionam toda a felicidade possível para um outro no qual parece, a um só tempo, ser a possibilidade do escape e do espelhamento deles mesmos. Na clássica Como vai você?, o eu-lírico está ansioso e desesperado por notícias da ex-amante. Ao chamar a mulher ausente – Vem que a sede de te amar me faz melhor/Eu quero amanhecer ao seu redor – uma paixão egóica, voltada para aquele mesmo que ama, é presentificada na canção:  Preciso tanto me fazer feliz.[9]

Esses amores têm também na impossibilidade sua força motriz. A canção Negra repercute uma estrutura racista particular ao mundo dos afetos dos trópicos. O eu lírico, um homem branco, ama (ou diz amar) uma mulher negra, Ela é negra, negra, negra, como a noite/Cor do meu cabelo liso/Cor do asfalto onde piso. Vários estereótipos e violências estão presentes na letra. A maior delas é quando delibera pela inviabilidade daquela relação na medida em que o amante alega não ser capaz de esquecer a diferença racial entre os dois. Não há coragem, ou ao menos interesse, no questionamento concreto da herança racista que alimenta as afeições próprias à sociedade brasileira. Ah! Quem dera eu esquecer/Da minha cor tão branca/ E me perder nessa ilusão tão pura/ Nessa ilusão tão meiga/Nessa ilusão tão negra.[10] É a suposta ideia/necessidade de uma realidade e de um amor impossível e idílico, no qual a diferença deveria ser suprimida (e o racismo apagado, ao invés de combatido), que o movimenta. Ele escolhe o sofrimento.

Não seria estranho que esses personagens terminassem solitários e novamente jogados à janela: É noite amor/ E o frio entrou no quarto que foi seu e meu/ Pela janela aberta onde eu me debrucei/ Na espera inútil e você não apareceu.[11] Esquecidos. Em momentos mais dramáticos eles estão no chão, abandonados, perdidos, mas ainda orgulhosos. Esperam, contudo, que a amada venha lhes dar a mão se for por amor. Desde que esse amor seja, sem dúvidas, aquele no qual o outro é extensão de si, cujos projetos ideais precisarão se instaurar e tornar-se a medida da condição do encontro. Do contrário, que o deixassem no chão.

Mas esses homens, por vezes, abandonam a janela e procuram O Divã.[12] Na canção de Roberto e Erasmo que compõe a quinta faixa do labo B, o narrador procura ajuda psicanalítica motivado por uma nostalgia do passado familiar. Relembra sua casa, sua varanda, sua mãe com o sorriso e a lágrima a lhe avisar que tivesse cuidado na partida pro futuro. O narrador revive o dia de sua saída, a casa modesta, o pai sem dinheiro no bolso, lamenta a segurança perdida, a festa, o apito – (há uma referência à traumática experiência do acidente com o trem que amputara a perna do artista). Mas lastima, sobretudo, ter perdido a esperança que aprendera a cultivar junto aos seus familiares. Esse sujeito quando saiu de sua casa (por amor, por um tipo específico de amor) toma como medida certa segurança do lar que a realidade não é capaz de reproduzir.  Essas recordações, confrontadas com suas derrotas emocionais, matam-no existencialmente. Diante do psicanalista revela que o passado vive em tudo que [ele faz] agora. Acumulando-se sobre seu presente, ressentido.  

O disco termina com a canção Agora eu sei de Edson Ribeiro e Helena dos Santos. Quanto tempo de sonho perdido/ Quanto tempo esquecido/ É melhor nem lembrar. Com esses versos o narrador afirma certo arrependimento por ter, em algum momento do passado, sonhado. Ele se coloca em perspectiva e ridiculariza seus desejos juvenis: Eu pensei que entendia de tudo/Que sabia de tudo/Mas vivia no ar. Assim como na canção A Janela, esse eu-lírico parece ter tido conflitos com os pais. Diferentemente do primeiro personagem, entretanto, rebelou-se contra os conselhos recebidos e, mais tarde, arrependeu-se. A passagem do tempo e o acúmulo de algumas desilusões parece tê-lo mostrado certa fragilidade de seus anseios, e aqueles a quem confrontara teriam razão – Mas agora eu sei/ o que aconteceu/ quem sabe menos das coisas/ sabe muito mais que eu.[13]

Com o que ele sonhara efetivamente? E num mundo de sonho eu andava/ e só acreditava em mim/ e em você. O mundo de sonho ao qual se refere parece se esgotar entre o sujeito que ama e o ente amado. Ele acredita ter um dia rompido com a casa, mas na saída projetou, na verdade, certa felicidade num outro sempre inalcançável, no qual buscava a si mesmo, cujas tensões e dificuldades precisam ser sempre eliminadas. Ao pressupor o amor – descrita pela relação exclusiva no “eu e você” – como algo dotado de um destino especial e final, e não como um processo de construção constante, ele se frustra, desiste e acolhe o sofrimento. Indisposto a qualquer risco e a qualquer acaso, portanto, esse sujeito, após o que julga ser a inocência do sonho, considerou-se um ente sábio: Mas agora eu sei. Tomou como medida de seu mundo, os conselhos dos pais para explicar seu fracasso. Descobre, então, que não teve o lar. Não teve o caminho. “E só acreditava em mim e em você”. O futuro se confunde com o amor idílico e impossível. Seu mundo estava, portanto, deserto.

Roberto Carlos, o mais consumido cantor brasileiro, rei, portanto, deu forma, por meio de sua voz, a uma educação sentimental para dentro do lar, respondendo à fissura geracional aberta pela geração de 1968 a partir de uma reaproximação. Nesse contexto, o futuro e o amor, outrora apostas radicais, vão sendo orquestrados por certa impossibilidade dramática. Toda tensão contrastante ao desejo puro e ideal do amor torna-o motivo de fratura e abandono. Nessa forma de amar e viver, importa, sobremaneira, se apresentar como o ente que sofre, sobrecarregado pelo peso nostálgico do passado e por um futuro no qual a possibilidade do acolhimento daquilo que se apresenta, isto é, do risco, é constantemente abandonada.

Na hora do almoço

 Na invenção Nordeste, há também um jovem com problemas no lar. Ao cantar sobre o que se vê no centro da sala, diante da mesa, no fundo do prato – alerta: comida e tristeza. A família se olha, se toca, se cala. No momento em que fala se desentende. O verbo não é bem-vindo. Os entes daquela casa preferem, portanto, o silêncio. É o corpo quem fala. A mão fechada, a boca aberta, o peito deserto, a mão parada, lacrada, selada, melada… de medo! [14] A hora é a do almoço.  A mãe chama. A cabeleira negra da irmã esvoaçando. A avó reclama.  O pai na cabeceira. Calejado pelas relações embrutecidas e violentas do lar sertanejo do qual emerge, esse jovem considera inviável permanecer nele. Temeroso da morte, ele se lança no mundo antes de sua sentença o arrastar sem ter vivido outro mundo possível.

Foi com a canção Na hora do almoço que Belchior ganhou o IV Festival Universitário da Tupi de 1971 (embora ele já tivesse abandonado o curso de medicina).  O narrador da canção de Belchior (e o próprio Belchior), diferentemente do sujeito de A janela de Roberto e Erasmo, não tem dúvidas. Ele precisa partir e o faz.  O repertório de Belchior, ao cantar sua saída do Nordeste, vai constituindo uma imagem nada idílica do que encontra pelo caminho. Não há arrependimento. Também não há ilusão. Belchior performa o sujeito errante, o antídoto do sujeito da consciência infeliz presente em Roberto. É o disperso, o nômade, o vagabundo que não faz distinção entre dentro e fora, porque o mundo está para ele em toda a parte. E o amor, por isso, torna-se outra coisa.  – Hoje à noite namorar/ Sem ter medo da saudade/ E sem vontade de casar”. Em 1972, Belchior se mudou para São Paulo. Nesse ano, Elis Regina gravaria Mucuripi, parceria dele com Fagner. A prestigiada intérprete garantiria ao músico cearense a entrada no cenário da MPB. Roberto Carlos também gravaria Mucuripe no seu disco de 1975, o LP no qual mandaria novamente tudo para o inferno como fizera dez anos antes.[15] O sorriso ingênuo e franco de um rapaz novo e encantado seduzira o rei.[16] Mas vejamos como isso acaba.

(Convidamos o leitor a conferir o texto Belchior na Divina Comédia de Dante, que embora, publicado, antes, encerra esta reflexão).

 

 

 


Notas

[1] SANCHES, Pedro Alexandre. Como dois e dois são cinco. Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa). São Paulo: Boitempo, 2004, p. 17

[2] Erasmo Carlos; Roberto Carlos. Por amor. Roberto Carlos, CBS, 1972.

[3] Erasmo Carlos; Roberto Carlos. A Janela. Roberto Carlos, CBS, 1972.

[4]  SANCHES, Pedro Alexandre. Como dois e dois são cinco. Op. cit., p. 164.

[5] Erasmo Carlos; Roberto Carlos. A Montanha. Roberto Carlos, CBS, 1972.

[6] Erasmo Carlos; Roberto Carlos. Você é linda. Roberto Carlos, CBS, 1972.

[7] Dorival Caymmi. Roberto Carlos, CBS, 1972.

[8] Erasmo Carlos; Roberto Carlos. Quando as crianças saírem de férias. Roberto Carlos, CBS, 1972.

[9] Antônio e Mario Marcos. Como vai você? Roberto Carlos, CBS, 1972.

[10] Maurício Ducob e Carlos Colla. Negra. Roberto Carlos, CBS, 1972.

[11] Fred Jorge. Você já me esqueceu. Roberto Carlos, CBS, 1972.

[12] Erasmo e Roberto Carlos. O Divã. Roberto Carlos, CBS, 1972.

[13] Edson Ribeiro e Helena dos Santos. Agora eu sei. Roberto Carlos, CBS, 1972.

[14] Belchior. Na hora do almoço. Single. Copacabana, 1971.

[15]  Erasmo Carlos; Roberto Carlos. Quero que vá tudo para o inferno. Jovem Guarda. CBS, 1965. Roberto Carlos. CBS, 1975.

[16]  Belchior; Fagner. Mucuripe. Elis, Elis Regina.  Phonogram, 1972.

 

 

 


Crédito da Imagem: Capa do disco Roberto Carlos, CBS, 1972.

 

 

 

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