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Proust Suburbano

De puchero, infância e amigo dos anos 90

 

para Gilberto Figueiredo Martins

 

Desci as escadas do sobrado para ir esquentar a verossimilhança de puchero que cozinhei pro meu almoço de ontem e sobrou pra janta de ontem e pro almoço de hoje. Era dia ainda. Depois que terminei de almoçar, era noite como agora. Três da tarde. Chove. Há uma escuridão no país que vai muita além desta de hoje causada pela intempérie. É uma escuridão em forma de pergunta que se chama Marielle. Uma escuridão em meio a muitas outras entre as do aparelhamento de direita, de extrema-direita neo-nazi-fascista no Ministério da Saúde. A escuridão chama-se quem mandou matar Marielle? Quem mandou o vizinho do Presidente da República matar Marielle? São três da tarde. A luz que acendo em meu escritório não responde nem as minhas dúvidas. Ela ilumina apenas a escuridão causada pela chuva. As outras do país não vejo sinal de iluminação ainda. Se o puchero era verossímil, e era saboroso, as escuridões têm o sabor amargo das injustiças.

 

Faltou batata baroa, inhame \ e cará, \ mas está valendo. \Tudo é noção. \ Nada existe sem linguagem \ e sem a noção de noção. \ Parece, a gente entende \ quando falta. Não quando perde. \ A falta nós dá a noção do \ sabor com, \ e do sabor sem. \ A falta nos dá o saber. \ O puchero de hoje é um \ puchero sem. \ Com meus avôs portugueses \ aprendi a melancolia. \ Com meus ancestrais lituanos \ a alegria. \ A alegria é uma polca na sala, \ um cozido no fogão \ e a ausência deles \ morando em mim.

 

Literatura é uma arte de invenção. inventa-se sobre algo possível, verossímil. Sobre o suposto real, mas inventa-se. Há correntes. E há correntes realistas/naturalistas de todos os tempos. E há realismos reinventados, citados, construídos, desconstruídos. Há invenção de Realismo. Um modo bem produtivo de remediar, se não sanar, tédio artístico, intelectual, artístico, ético-estético é inventar novos paradigmas, novos modelos, novos empregos para o conhecido, os existentes. mas isso pode ser utopia.

Ouvi sobre isso também na UERJ certa vez. O professor conferencista citou Sartre, do O que Pode a Literatura?, quando ele estava numa situação violenta, sofrendo uma violência urbana, uma assalto em sua casa, e amarrado no chão, olhou para a estante de livros à sua frente e viu o título do livro de Sartre.

Propôs aos ouvintes, à audiência, a frase, sem dar resposta: o que pode a literatura? O que podemos? Pergunto eu: o que podem os outros? Quebramos paradigmas? Outros paradigmas se instauram. Inventamos novos. Até quando novos?

Talvez quando o lance for não ter ou fazer ou inventar paradigmas sejamos libertos, sem dor, nem tédio.

A literatura continuará a ser literatura, uma arte de invenção. Mas de paródia também, de pastiche, de diluição. Acho que não chegamos aonde podíamos. Há tentativas de hegemonia. Há hegemonias? Mas, no plural elas nos dizem que o tempo hoje é o da diversidade. Mas da escassez também.

Disputar poder é morrer. Havia uma canção bem medíocre nos anos 80 que dizia que toda forma de poder é uma forma de morrer por nada. Não vou ficar no clichê. Mas, posso dizer que o bom é quando o nosso clichê se encosta no do outro. Quando o contato é pleno. E a experiência é inteira. E há o encontro.

Hoje era dia de, para mim, arbitrariamente, pois decidi o assunto da crônica, falar de puchero, infância e amigo dos anos 90. Isso tudo ficou pequeno perante ao intrigante alheio. Do amigo do alheio que nos rouba. Ladrões do tempo os hegemônicos pensamentos.

Então, apenas para não dizer que não falei do puchero, nem da infância, nem do amigo, eu digo.

Quando criança, minha mãe cozinhava grão de bico com carnes e legumes e raízes, e vegetais. Servia isso com arroz branco. Fazia isso, invariavelmente, quando éramos visitados por tios lituanos de meu pai, filho de lituanos. Eu, sobrinho e neto de lituanos, pensava, na infância, que puchero era um prato lituano. Não saiba ser espanhol. Não sabia nada. Nem de paradigmas, nem de Realismos. Comia o puchero e me lambia.

O que interessa nessa memória de infância é a alegria que Sinkevisquinho sentia quando os tios lituanos chegavam em casa. Eu os recebia correndo à porta e falava:

– Oi, minha mãe fez puteiro!

Não vou explicar que eu estava em fase de aquisição de linguagem. É evidente o equívoco pucheiro \ puteiro.

Puteiro não é esse mundo hegemônico. Puteiro não é essa noção de paradigma. Puteiro é local de trabalho, de trabaladoras e trabalhadores do sexo. Esse mundo é um pandeiro.

Não há saída. Sem querer ser saudosista, a saída era a alegria dos tios lituanos. A alegria é lituana. Esses meus tios dançavam polcas aos sábados.

O que pode a Lituânia? Ser invadida. Ser pobre, ser colonizada.

Nos anos 90, tive um amigo. Conheci o rapaz na USP. Ele estudou (estudava e ainda estuda) Clarice Lispector. Reencontrei-o recentemente em um site de relacionamentos. Aos poucos fomos nos lembrando um do outro. Ele me disse à certa altura:

– Engraçado como o outro compõe a nossa memória.

Madrugada passada tive vontade de cozinhar grão de bico. Não para fazer um puchero estrito senso, nem nos paradigmas, muito menos hegemônico.

Cozinhar grão de bico com cenouras e um naco de carne de vaca, e bacon.

A alegria é um puchero. E é lituana, me desculpem, não é espanhola.

Lembro-me de Gilberto na USP, mas me lembro dele numa Universidade particular em que eu e ele demos aula nos anos 90.

Lembro de um vulto, de um fantasma. Mas, lembro-me sobretudo que herdei dele umas aulas quando ele foi para Brasília.

Ah! nunca esqueci da infância de pucheros e outros sabores. Jamais me esqueci que Gilberto estudou, entre outros, a Maçã no Escuro, livro para mim muito intrigante.

O que pode a literatura? O que podem os paradigmas, as hegemonias, as quebras, invenções e construções? Nada. Pratos bem cozinhados, afetos alegres e memórias podem tudo.

 

 

 


Créditos na imagem: Correio Braziliense. Divulgação.

 

 

 

 

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