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Crônicas, contos e ficções

Deus acima de tudo [ou: Eu acima de tudo]

A lição ciceroniana de que a história é a professora da vida desconsiderou que o humano é um animal esquecido por natureza – ou seria por convenção? Diante da impotência das narrativas históricas tem-se que recorrer à ajuda de certos princípios vivenciados no cotidiano e que orientam o humano na obscena conjuntura de uma memória enfraquecida. Se há pouco falei em princípios que orientam o humano foi pelo excêntrico motivo de buscar certa segurança neste mundo da desinformação. Também pelo fato de deixar clara uma posição ética que demarque a distinção entre aquele que fala daqueles de quem falo.

De modo algum tais princípios que orientam os humanos oferecerão segurança a partir de frases retóricas e virulentas que tal como o dilúvio judaico-cristão afogam a toda uma realidade não desejada, não escolhida, não divinizada. Conquista-se a segurança com um debate aberto de idéias e não com a imposição da força. Falando em dilúvio, ao retomar a mítica passagem de Gênesis na qual Nóe, obedecendo ao seu deus, escolheu os próprios familiares e certas espécies de animais para ganharem o espaço da sobrevivência e da memória tem-se explícito um princípio que orientou o humano. Apesar da falta de nobreza o princípio foi o seguinte: o do nepotismo somado ao clamor divino. Quanto ao nepotismo de Noé é apenas uma marca constante dos integrantes da narrativa bíblica que a todo o momento compreendem que a sagrada família tradicional deve sobreviver a qualquer custo. Quanto ao clamor divino, talvez, se Noé tivesse se informado melhor nas mídias de seu tempo entenderia que foi enganado por um deus da desinformação, pois o seu deus a toda hora enviava torpedos com fake news para acabar com tudo isso aí. Claramente não houve debate aberto de idéias entre Noé e deus para que o princípio orientador fosse explicitado. Houve apenas a imposição de uma força. Imposição de um deus que vendo a violência na terra resolveu desfazê-la com um ato de maior violência (Gn,6:13). Se a narrativa bíblica for apenas uma ficção o dilúvio não existiu. Mas então, qual seria o motivo de existir aquele deus se suas obras são meras ficções? A literalidade é um horror. As interpretações são interesseiras. Que fazer?

Voltemos a Noé. Percebe-se que o princípio que orientou a Noé fez com que todo o restante dos viventes que havia sobre a face da terra fora extinto e esquecido. Com o dilúvio fora efetuada uma limpeza da existência e, posteriormente, houve a promessa divina de nunca mais a maldição recair na terra por causa do homem (Gn.8:21). Importante rememorar que mesmo após exterminar a todos e a tudo que não mais o importava, este deus, não se deu por contente, já que tudo voltou a ser como antes. Se os extermínios não seriam mais ocasionados por causa do homem, agora, era a questão do gosto do divino que ditava as abundantes limpezas. Evidente que este deus não tomou conhecimento da inquietação de uma de suas pretensas criações, o filósofo David Hume, quando o mesmo perguntou se estamos justificados a estabelecer um padrão do gosto quando nos deparamos com a diversidade de avaliações?  Justificar uma ação e estabelecer padrão não é o modus operandi de um deus que proibiu o fruto da árvore do conhecimento.

Assim, um deus desgostoso, inseguro e impotente diante de sua própria criação apequenou-se e se fez humano. Resolveu presenciar a sua criação que havia se tornado plural. Mais ou menos filho, mais ou menos pai, mais ou menos espírito santo – a confusão da trindade que gerou mortes, heresias, mortes, indignações e mortes – fez de sua existência um monumento para acabar com a sua própria vida no Monte Gólgota e instaurar nova unidade. Felizes aqueles três dias em que o mundo se viu livre de tamanha violência insaciável. A criação entregue a si mesma. A ausência da eternidade punitiva ou glorificada. Uma religião parricida surgiu e com ela a inquietante insinuação ateísta, pois quem mata o seu próprio deus? Mas, um alto custo fora pago para assegurar esta autonomia. A pedra rolou, do sepulcro saiu e na cidade santa o deus voltou.

Interessante como os exemplos de narrativas tais como as contidas na bíblia que poderiam cair no esquecimento, não caem. Estranha memória interesseira que neste caso parece imune ao esquecimento. De tal modo que de tempos em tempos novas limpezas e atentados inspirados de modo ativo ou passivo nos relatos bíblicos excitam os proto-civilizados. É aqui que a atual realidade brasileira entra. O exemplo atual de alguém excitado com a postura de higienização-cristã é o cristão Jair Bolsonaro. Batizado em 2016 pelo pastor Everaldo, presidente nacional do Partido Social Cristão (PSC), nas águas do Rio Jordão em plena votação senatorial do impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff e eleito presidente do Brasil no dia 28 de outubro de 2018 pelo Partido Social Liberal (PSL). Excitado com a possibilidade de metralhar a todos que contrariam o seu tosco pensamento propagou o slogan deus acima de todos. Já em 2016 durante o processo de crimes fictícios que levou ao impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff ouviam-se os clamores de deus acima de todos. Janaina Paschoal – aquela que chorando afirmou em 2016 ter como partido o Brasil e acabou cheia de sorrisos e eleita deputada estadual por São Paulo em 2018 pelo PSL – em sua defesa pela saída da presidenta, realizada no senado federal, vociferou que um país laico não significa um país ateu, mas não ocultou que a elaboração de sua peça de acusação teve uma ajudinha de deus. O próprio Jair Bolsonaro em seu voto a favor do impeachment, na câmara dos deputados federais, evocou deus acima de todos afirmando no mesmo pronunciamento os seus sentimentos de excitação por um torturador. Entre os discursos religiosos de cristãos desta estirpe prefiro a profana república democrática.

Falando em república democrática que tem no voto popular uma de suas marcas, talvez uma das perguntas feitas de modo incansável por muitos que acompanharam a eleição de 2018 foi como alguém que se diz cristão pode proferir discursos de ódio e violência? Penso que a insensatez dos discursos políticos de Jair Bolsonaro e do seu séquito chegou a nublar a concepção de cristianismo. Muitos, ao colocarem aquela pergunta, compreendiam que a concepção de cristianismo era a de uma religião da afirmação da paz, do respeito, da tolerância, do não julgamento, da valoração da vida, da não vingança. Ledo engano ou erro histórico-teológico crasso. Violência e cristianismo não são contraditórios, mas duas faces de uma mesma moeda. A história dos sinos e dos coturnos se confunde.

Alguns continuaram com o auto-engano ao afirmar que Jair Bolsonaro não representa o verdadeiro cristianismo de Jesus. Talvez esteja na hora de pensar que se um texto está matando e dando errado desde a sua implementação talvez, e somente talvez, o problema não seja o da prática, mas o do próprio texto. Esta idéia já fora propagada para o caso dos textos de Karl Marx e as posteriores experiências trágicas do comunismo no século XX. Então, sugerir a mesma idéia para os textos bíblicos e as experiências trágicas do cristianismo desde o século I até o XXI não é nenhuma heresia. Contudo, o “x” da questão é o seguinte: Marx não proibiu que seus textos ganhassem mudanças, releituras, descartes, etc. Jesus, ao contrário, afirmou que nenhum til da lei de deus deverá cair ou ser desconsiderado até que tudo seja cumprido (Lc.16,17). Eis o que se chama de dogmatismo e de doutrinação.

Assim, separar a ascensão de tipos como Jair Bolsonaro dos discursos cristãos self-service é continuar ignorando o fato de que a experiência religiosa é uma experiência de seletividade e de violência. Uso a expressão cristãos self-service com o intuito de caracterizar o grande grupo de cristãos que preenchem a sua marmita da fé somente com as partes saborosas do buffet bíblico. Colheradas de boas obras; garfadas de salvação seletiva; facadas de família; goles de tradição; sobremesas de costumes. Esquecem-se de que um cristão deve aceitar a tudo o que está escrito em seu livro sagrado e não apenas ao mignon bíblico. Não por acaso nos evangelhos de Lucas (16.17) e de Mateus (5.18) fora taxado que nenhuma vírgula deverá ser alterada sem que tudo seja realizado. O verdadeiro cristão não pode se servir do que gosta e retirar o que não gosta.

Se nem mesmo os evangelhos são entendidos por estes ditos cristãos, o que esperar quando falam de assuntos alheios ao campo religioso? É por isto que afirmo: as mensagens da mais hedionda violência propagadas por um deus não podem ser descoladas das mensagens violentas propagadas por alguém que se diz cumpridor das missões deste mesmo deus. Alguns, novamente buscando o auto-engano, dirão que o deus violentador é o do antigo testamento e que no novo testamento há o deus do amor. Mas a trindade é a totalidade das partes, ou seja, não há amor sem violência. Deus-pai, deus-filho, deus-espírito santo não é uma tríade separada pela conjunção alternativa “ou” e sim pela conjunção aditiva “e”. Quer o deus do amor? Tem que levar junto o deus da violência.

Não por acaso, Jair Bolsonaro, congrega o seu discurso de violência com o discurso religioso legitimado por pretensos propagadores da mensagem de amor. Parcela significativa das lideranças de camadas religiosas da sociedade brasileira concorda com o eleito – bispo Edir Macedo líder da Igreja Universal do Reino de Deus; apóstolo Rene Terra Nova do Ministério Internacional da Restauração; o casal Estevam e Sônia Hernandes líderes da Renascer em Cristo; pastor Silas Malafaia líder do ministério Vitória em Cristo; pastor-deputado Marco Feliciano da Catedral do Avivamento; pastor-deputado Hidekazu Takayama da Assembleia de Deus, dentre tantos outros. Torna-se claro, afinal, que a obscena intimidade entre o discurso de ódio e o discurso do pretenso amor pode ser vista sem mediações, sem trajes típicos, sem vergonha, apena em sua plena nudez que escancara um autoritarismo místico.

Plena nudez que revela a um deus que ao preferir atender aos seus escolhidos despedaça crianças (2 Reis 2: 23,24). Que revela a um seguidor deste deus que se diz incapaz de amar a um filho homossexual preferindo a morte do próprio filho. Que revela a um deus que ameaça aos seus próprios escolhidos afirmando que os fará comer a carne de seus filhos e filhas se não o obedecer (Lv.26.29). Que revela a um seguidor deste deus que diz para uma mulher que não a estupraria porque ela não merece. Que revela a um deus que seleciona os partícipes de sua congregação pela conservação dos testículos e do pênis (Dt 23:1). Que revela a um seguidor deste deus que se orgulha de ter educado os seus filhos para não se relacionarem com uma mulher negra.

Serei duplamente acusado de tirar do contexto tanto as afirmações bíblicas quanto as afirmações de Jair Bolsonaro. Fico a me perguntar qual seria o contexto no qual tais afirmações poderiam ser feitas sem parecem abomináveis? Quando uma mulher mereceria ser estuprada? Quando um deus poderia despedaçar crianças? Quando alguém poderia desejar a morte de um filho? Quando alguém poderia educar para não amar o outro? Fato é que a atual balança da justiça dos propagadores e seguidores deste discurso político-religioso tem em seus pratos uma arma e um pênis. Estes são os princípios que os orientam, afinal, são as leis mais sagradas de seu mundo mediocremente idolatrado. Com isto, infelizmente, a realidade brasileira é estuprada pela blasfêmia da retórica-arma e da retórica-pênis que simbolizam em seus discursos as inconseqüentes ações tomadas por brutalizados marcados por uma moral sexual repressora. Jair Bolsonaro, por exemplo, quando se coloca a falar sobre a sexualidade preconiza horrores: quilombolas que não procriam; a deputada federal (PT) Maria do Rosário que não merece ser estuprada; filho gay que deve apanhar para virar homem; nascer mulher como um sinônimo de fraquejada sexual do homem; filhos adotados por casal gay se tornariam garotos de programa. Evidente o grau de violência. Evidente que a sexualidade é traduzida em procriação, estupro, agressão e preconceito. Somente a linguagem da violência e da repressão contra tudo aquilo que lhe é diferente pode ser compreendida e propagada.

Com náusea afirmo que os responsáveis pela construção destas narrativas que atualmente se tem no Brasil extasiam-se com as chamadas verdades sufocadas de um torturador. Verdade, inclusive, é um fetiche deste tipo de sujeito. Jair Bolsonaro não cansa de citar o livro de João 8:32 “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Novamente afirmo que aqui não há contradição entre o discurso religioso e o discurso político, pois gozar com as verdades sufocadas de um torturador como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra é gozar com a verdade libertadora de um deus genocida. Quer-se cultuar a este deus que se faça nos locais próprios ao culto e a liturgia que são assegurados pela inviolável liberdade de consciência e de crença [CF. Art.5, VI], mas não nos espaços destinados ao poder legislativo, executivo e judiciário. Quanto ao coronel Ustra queria acreditar na historieta do inferno já que por aqui não está mais. Seus seguidores, porém, ainda estão.

Encerro, com ordenado desassossego, que cidadãos como Jair Bolsonaro e seus seguidores não se defrontaram com o provocativo pensamento do filósofo Ludwig Feuerbach, já que seria muita doutrinação, de que a essência da teologia é a antropologia. Nada mais certeiro: humanos que o sangue podre da carnificina come criam deuses da mesma baixa estirpe e, no interior destes deuses, estará um homenzinho comum, apequenado, violento, mimado, infeliz, sexualmente reprimido, inseguro, instável, tosco. Depois, com aguçada perseverança, se esquecem da criação e, os seus próprios criadores, tornam-na inexplicável e divina.

Se deus acima de tudo for assumido como o princípio que orientará o Brasil no século XXI será apenas um acovardamento para não anunciar a obscenidade pornográfica do Eu acima de tudo. Um eu feito conforme a semelhança de um deus que sem envergonhar-se disse “Vede agora que eu, eu o sou, e mais nenhum Deus comigo; eu mato, e eu faço viver; eu firo, e eu saro; (…) farei tornar a vingança sobre os meus adversários, e recompensarei aos meus aborrecedores” (Dt.32:39-41).


CRÉDITOS

Prof.Leandro Sousa Costa [Colegiado de Filosofia da UNESPAR campus de União da Vitória] que apresentou a noção de cristianismo self-service.

Prof.Samon Noyama [Colegiado de Filosofia da UNESPAR campus de União da Vitória] que apresentou a noção de cristão-passivo.

Crédito da imagem: “Jovem Cícero Lendo”. Afresco de 1464. Por Vincenzo Foppa, atualmente na Wallace Collection, em Londres.

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