Em 1983, Annie Ernaux publicou “O lugar”, obra que estabeleceu as bases para o projeto literário que a escritora francesa levaria adiante pelas próximas três décadas. Neste trabalho, a autora aborda a distância de classe que existiu entre ela, que conseguiu ascender socialmente graças aos estudos, e seu pai, homem de pouca instrução formal e que valorizava o trabalho físico, demonstrando pouco apreço pela intelectualidade. Dessa forma, se debruçando sobre a vida de seu pai para refletir sobre relações familiares e de classe, misturando história pessoal com sociologia, a autora demonstra sua dedicação à chamada “autossociobiografia”. Nesse formato, as experiências mais íntimas vividas pela autora – sejam relacionadas ao luto, questões de classe, sexualidade, paixões, aborto ilegal, doenças ou a percepção do tempo – se tornam objeto de reflexões sobre aspectos sociais, políticos e culturais.
As consequências de pais e filhos possuírem trajetórias educacionais totalmente diferentes, que afetaram Ernaux e seu pai, também atingem os jovens brasileiros. Segundo dados do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (Imds), no Brasil, a influência do nível de escolaridade dos pais sobre o grau de instrução dos filhos caiu. Dessa forma, os antecedentes educacionais dos genitores, suas formações e carreiras estabelecidas, antes capazes de quase determinar quais lugares os filhos poderiam alcançar, passaram a intervir cada vez menos no futuro de seus descendentes. As clássicas notícias vistas em jornais ou nas redes sociais, “filho de empregada doméstica passa em Medicina na Federal”, além de tentar disseminar discursos meritocráticos, acabam revelando como os jovens pertencentes às classes mais baixas, lentamente, vêm trilhando caminhos antes inacessíveis aos seus pais.
O movimento de mobilidade intergeracional de educação no Brasil, provavelmente, é resultado da ampliação do acesso de estudantes das camadas populares ao ensino superior e de programas de distribuição de renda, que exigem que crianças e adolescentes das famílias beneficiárias frequentem ativamente a escola. Desse modo, em comparação com gerações anteriores, a possibilidade de cursar uma graduação ou de completar o ensino médio deixou de ser um sonho distante, tornando-se realidade para muitos jovens filhos de pais com pouca instrução formal ou analfabetos.
Como Ernaux aponta em sua obra, essas relações distintas entre pais e filhos em relação à educação podem aprofundar as distâncias de classe. O pai da autora, nascido no campo e dono de uma mercearia, conquistada após anos de trabalho como operário, pertence a um mundo onde o trabalho físico estabelece o valor das coisas, pouco afeito à intelectualidade. A educação, aos seus olhos, era um sofrimento necessário para se ter uma boa condição, pois representava a possibilidade de ascender socialmente, de fazer parte de outro mundo. Ernaux, passa, justamente, por esse processo. Ao acessar o ensino superior, insere-se dentro de uma nova classe social, mudança que afetou a forma como a autora enxergava o lugar onde cresceu: “[…] as opiniões do meu meio me pareciam ridículas, os preconceitos, como “a polícia é necessária” ou “um homem só vira homem quando entra no Exército”. Meu universo, naquele momento, virou do avesso” (Ernaux, 2021, p. 48, grifo da autora). Dessa forma, o mundo do pai se diferenciava, substancialmente, do seu. Ao se intelectualizar passou a não compartilhar mais os mesmos valores com o homem que a criou: “Um dia me disse: “Os livros e a música são bons para você. Eu não preciso de nada disso para viver” (Ernaux, 2021, p. 50, grifo da autora).
Assim, surgem conflitos entre pais e filhos. Ernaux, ao colocar seus conhecimentos em prática, incomodava o pai, para quem os estudos não tinham qualquer relação com o cotidiano, já a autora revela que fazia comentários sobre a forma como seu pai comia ou falava, pedindo que ele mudasse seus hábitos à mesa. Além dessas situações do dia a dia, podem existir divergências referentes a aspectos mais relevantes, como relativas a questões políticas ou ligadas aos sentidos que cada um atribui à vida. Decisões tomadas por um dos lados, na maioria das vezes, irão gerar controvérsias e discussões, já que os membros da família não compartilham dos mesmos valores.
Por fim, a distância de classe não é o único problema enfrentado por pais e filhos que se encontram nessa situação. Com relação às questões cotidianas, outros obstáculos se impõem: o apoio financeiro, oferecido ao filho para garantir sua dedicação total aos estudos, muitas vezes requer que a família faça sacrifícios; a incerteza se o esforço irá valer a pena e a pressão sofrida pelo estudante, visto como o único capaz de transformar a realidade de seus familiares. Todas essas adversidades revelam que os jovens que lutam para alcançar lugares antes inacessíveis aos seus pais são afligidos por diversas questões, porém, provavelmente, a mais complicada envolve a distância de classe que se cria entre o estudante e seus familiares. Obter conhecimento, infelizmente, pode nos afastar de quem amamos. As coisas que verdadeiramente mexem com a gente passam a vir de lugares desconhecidos, como aconteceu com Ernaux, nos distanciando de um mundo tão familiar que, até certo momento, parecia ser o único possível. Assim, o hábito de assistir novelas juntos ao fim do dia perde o sentido, as opiniões emitidas durante o telejornal já não são as mesmas e o sentido atribuído à vida já não é mais o mesmo compartilhado pelos outros membros da família.
Referências:
ERNAUX, Annie. O lugar. São Paulo, Fósforo, 2021
INSTITUTO Mobilidade e Desenvolvimento Social. Escolaridade dos pais e realizações dos filhos na vida adulta: análise dos dados brasileiros [dataset]. versão N° 01, ago. 2021. Disponível em: < https://imdsbrasil.org/doc/Imds_Sinopse%20de%20Indicadores01_Ago2021.pdf >. Acesso em: 06 de jul. 2024.
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Compilação do autor. Montagem feita a partir de imagem de Catherine Hélie/ Gallimard e de imagem retirada do site da Amazon.