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Ensaios e opiniões

Entre a Ética e o Estético: por que precisamos aprender a conviver com os esqueletos nos armários dos nossos ídolos.

Introdução

 

Nos últimos anos, tornou-se comum assistir a tentativas de cancelar obras de arte, livros, músicas ou filmes com base na biografia ou nas posturas pessoais de seus criadores. Há debates acalorados na mídia, havendo grupos que defendem o expurgo completo de obras que carreguem traços que possam, segundo os valores desses grupos, serem consideradas incompatíveis com tais sensos. A moral dos nossos dias, impaciente e vigilante, parece exigir que todo gesto estético seja antecedido por um atestado de pureza ética. Se um artista cometeu deslizes, contradições ou até crimes — ainda que em contextos históricos profundamente diferentes — sua obra é posta sob julgamento, como se o pincel carregasse consigo as falhas da carne, e a partitura ou o parágrafo estivessem manchados por vícios morais.

É um movimento compreensível, nascido do desejo legítimo de construir um mundo mais justo, mais atento às dores causadas por séculos de opressão. Mas há uma fronteira tênue entre justiça e revisionismo punitivo, entre crítica e expurgo e é justamente nesse limiar que nossa reflexão deve pousar, cuidadosa. Não se trata de negar as dores de quem zela por valores éticos, mas de refletir sobre o risco de que esse zelo se transforme em censura disfarçada de virtude. Sobretudo em tempos de intolerância exacerbada e polarização violenta.

Paul Gauguin, por exemplo, foi pintor genial, um dos meus preferidos, diga-se — e um homem profundamente controverso. Seus quadros evocam mundos simbólicos, sonhos tropicais, atmosferas de uma beleza quase inquietante. Mas sua vida pessoal, especialmente seus relacionamentos no Taiti, escandaliza com razão os padrões morais de hoje. A pergunta que se impõe, então, é: podemos — ou devemos — separar a obra do autor? E mais do que isso: o que perdemos quando decidimos que uma biografia condenável basta para tornar uma obra invisível? E além disso: uma biografia condenável aos nossos olhos é sempre condenável aos olhos do tempo que ela foi forjada, obrigatoriamente?

Este ensaio é um convite à reflexão sobre essa fronteira turva entre ética e estética, entre a necessidade de memória crítica e o risco de apagamento. Precisamos, talvez, aprender a conviver com os esqueletos nos armários dos nossos ídolos, se quisermos continuar aprendendo com eles — inclusive sobre nossos próprios limites. E desenvolver a capacidade de deliberar sobre essas questões, não com espírito punitivo, rancoroso, mas de imparcialidade crítica.

 

Faz sentido um tribunal ético e moral retroativo?

 

Há no direito a figura da prescrição — ou seja, crimes prescrevem. O infrator não pode mais ser condenado. Significa perdão? Não. A vítima, os envolvidos, a sociedade, não tem a obrigação do perdão. Mas o criminoso não pode mais ser punido.

Essa constatação nos leva à seguinte indagação: faz algum sentido promover julgamentos —  morais, éticos, de costumes, crenças, — retroativo, em alguns casos há um século ou mais?

Quando eu era criança, duas palavras eram ditas em voz baixa, quase em sussurro: reprovado e repetente. Era assim porque constituía vexame público, vergonha suprema, perder o ano escolar, como se dizia na época. Havia inclusive uma expressão aterradora: “Fulano perdeu uma ano de vida”. O menino ou menina reprovada sentia vergonha até de sair de casa, no dia seguinte. Era uma crença, um costume, um juízo de valor, fazia parte de nosso caldo cultural. Não é mais assim. Seguindo na mesma linha, era muito comum que meninas, amigas, caminhassem de mãos dadas na rua, se abraçassem em público, sem qualquer tipo de censura ou estranhamento. Não é mais dessa forma e assim como esses costumes mudaram — para o bem ou para o mal, e isso não cabe aqui discutir —, é natural que reajamos com estranhamento a práticas passadas. Mas há uma diferença entre evoluir e reescrever retroativamente a moralidade, os usos e costumes.

O ponto, que gostaria de ressaltar aqui, é claro: comportamentos, atitudes, pensamentos, valores, são dependentes de época e de lugar. Estou falando da cidade do Rio de Janeiro, na década de 70 do século passado, não posso afirmar que tudo se passasse da mesma forma no interior do Amazonas, na mesma época. Possivelmente não, talvez sim. O fato é que, em cada momento e região, estamos invariavelmente sujeitados por conjunto de crenças e valores, determinados por uma rede intrincada de condicionantes históricos, econômicos, sociais e religiosos, e que são peculiares a cada grupo. É uma gaiola, como costumo dizer, e em geral estamos contaminados demais pela prática cotidiana irrefletida, o comportamento automático — sem mencionar o conforto de pertencermos e sermos validados pelo nosso grupo — para termos condição de abrir a porta da gaiola. Frequentemente, sequer temos consciência das grades, o que a torna uma prisão perfeita. Esse condicionamento é tão forte que, quando uma mente brilhante consegue a proeza de ver além das grades da prisão, surge um Foucault, que nos educa e alerta sobre patrulhamentos, poderes difusos. Em geral é preciso ser genial para questionar valores aparentemente intocáveis, muitos vezes sacralizados.

As considerações feitas acima valem para os simples mortais, os anônimos. Mas deixarão de valer para os expoentes do pensamento humano? O fato de alguém construir uma obra destacada — literária, filosófica, musical ou plástica — nos permite exigir, a priori, que esse criador ou criadora esteja acima dos demais, imune às condicionantes culturais, cultural aqui no sentido mais amplo da palavra, que moldaram sua formação?

Dizendo de outro modo: porque Monteiro Lobato foi capaz de esbanjar criatividade em sua fantasia infantil, estaria ele também obrigado a se libertar dos preconceitos do mundo em que viveu? Deixa ele de ser humano — profundamente imerso em seu tempo — só porque conseguiu imaginar bonecas de pano que falam, ou espigas de milho que filosofam?

Não tenho uma resposta definitiva, claro. Mas pressinto que talvez a resposta seja: não.

Mas, para que fique bem clara a posição desse ensaio, quero enfatizar que reconhecer que um autor ou autora do século XIX, ou de qualquer outra época, agiu dentro de seus limites culturais, não significa tolerar comportamentos análogos hoje. O passado deve ser buscado com as lentes da história; o presente, com as da responsabilidade. Este ensaio refere-se exclusivamente a obras e autores de períodos históricos relativamente distanciados, cujos contextos sociais já não são os nossos.

 

A obra e o autor ou autora, se confundem?

 

Tudo indica que Thomas Edison, apesar de sua notável visão empresarial e criatividade como inventor, era desprovido do mínimo senso ético. Há quem especule, inclusive, que ele tenha tentado assassinar Nikola Tesla. Pergunto: devemos banir a lâmpada elétrica de nossas vidas em nome dos valores éticos que hoje consideramos inegociáveis?

Martin Heidegger foi membro do Partido Nazista de 1933 a 1945, e a relação de Heidegger com o nazismo continua a ser alvo de debate e controvérsia. Suas ideias foram precursoras do existencialismo e Jean-Paul Sartre, um dos principais expoentes desse mesmo existencialismo, foi diretamente influenciado por ele. Talvez a obra de Sartre não tivesse a profundidade e o impacto que teve, se tivesse se recusado a ler Heidegger. E nem por isso Sartre, em qualquer momento de sua vida endossou o nazismo, muito pelo contrário, foi um ferrenho opositor ao movimento e à ocupação alemã da França durante a Segunda Guerra Mundial.

Aristóteles, por sua vez, defendia ideias que, hoje, são consideradas absurdas sobre as mulheres. Afirmava, por exemplo, que os homens tinham mais dentes do que elas. Para nós, soa ridículo, talvez até risível. Mas note: para nós, hoje.

Esse tipo de afirmação, ou a crença de superioridade masculina, fruto talvez de ignorância, misturada a valores culturais completamente diversos e afastados dos nossos, profundamente enraizados, invalidaria a obra de Aristóteles, uma das maiores e mais variadas da antiguidade, comparável apenas com a de Platão, Homero e Euclides? Macularia sua importância para a filosofia, para a lógica, para a ciência política?

Parece-me que, como em quase tudo na vida, a fim de nos socorrermos nesses momentos, devemos recorrer ao velho binômio: senso crítico e bom senso. Para usar uma metáfora já batida, mas ainda eficaz: não se joga o bebê fora junto com a água suja do banho.

Mesmo um gigante intelectual continua sendo um ser humano: falível, condicionado, frequentemente atormentado. Sujeitado. Por mais genial que seja.

Contudo, e aqui precisamos fazer um contraponto importante, há casos em que a obra é tão visceralmente ligada a crimes — inclusive contra a humanidade —, que sua preservação sem contextualização seria cumplicidade, ela mesma, criminosa. A arte nazista ou os manifestos eugenistas do século XX, por exemplo, exigem não banimento, mas museificação crítica — um lembrete dos abismos que a humanidade deve evitar. Além de senso crítico e bom senso, o senso de humanidade precisa ser norteador de nosso julgamento.

 

Colher os limões e fazer uma limonada, separar o joio do trigo e fazer o pão.

 

A história humana apresenta, ao longo dos milênios, o curioso paradoxo de se dividir entre a destruição de coisas belas e reconstrução a partir do caos. Talvez nosso futuro nos pareça tão incerto justamente em função dessa contradição, do fato de não conseguirmos decidir qual dos dois instintos prevalecerá. Transpondo para nossa a discussão, frequentemente seres humanos nos brindam com criações belíssimas, ao mesmo tempo em que recaem em comportamentos, posicionamentos, os quais, sob as lentes dos valores presentes, parecem contradições inaceitáveis. Claro que nos incomoda, e precisa mesmo incomodar, o fato de que não há episódio no qual a Tia Anastácia tire férias. Nem o Tio Barnabé.

Me parece que todos esses casos nos oferecem uma bela oportunidade para fazer dos limões uma limonada. Ficando no exemplo do Sítio do Picapau Amarelo, não privar a criança da fantasia lúdica e encantadora contida nas estórias, mas tirar proveito da excelente oportunidade representada por uma obra que atrai sua atenção, para abordar a temática do racismo internalizado, estrutural, utilizando as passagens do texto de modo a levar as crianças a perceberem o que está oculto. E transportar essa visão para o tempo presente, o único no qual podemos de fato fazer correções de rumo. Plantar na mente dos pequeninos e pequeninas, a semente do pensamento crítico, da leitura nas entrelinhas, da compreensão a partir de contexto e do entendimento de que cada época carrega seus traumas, seus desafios. A percepção de que os seres humanos, de todos os tempos e lugares, não estão imunes a isso, mas que há valores inegociáveis e que a nossa tarefa, no tempo presente, é aprender a lidar com todas essas contradições.

Não se trata de rejeitar a colheita — mas de desenvolver e aprimorar a sabedoria que nos permita separar o joio do trigo, o que nem sempre é tarefa trivial — para que possamos, com consciência, fazer o pão.

 

 

 


Créditos da imagem da capa: Egeo

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