Disclaimer: sei e entendo que o que vou fazer a seguir é complexo. Mas…. eu vou elogiar uma produção da Disney.

 

Andor (segunda temporada)

As duas temporadas de Andor (prequels ao longa “Rogue One”, 2016) estão entre as melhores produções da história e da marca Star Wars. Sim, estão. Sei que não se pode diminuir os méritos da trilogia original, criação de George Lucas e sua equipe. Eu sou admirador dos aspectos eminentemente políticos da segunda trilogia (dirigida por G. Lucas também), apesar de os filmes não serem tão emblemáticos quanto os primeiros (1977-1983).

Contudo, a série Andor e o longa Rogue One exploram aspectos marginais e de fundo, que na trilogia original apenas aparecem como circunstanciais à história principal, amparada na tópica da “jornada do herói”. Andor nos apresenta a história da resistência e o nascimento da Aliança Rebelde.

Não sou nerdola chato, que usa redes sociais pra dar chilique, detonar as produções por serem “woke” (ou wookie?) e cobrar por fan service, nostalgias infantis, e outras bobagens que envolvem super poderes, espadas de luz e outras sandices. Eu acho que Star Wars, originalmente, tem isso tudo, mas não seria necessariamente uma história de ficção científica da forma como entendo o gênero. Elementos de sci-fi estão ali. Mas era muito mais diluído entre os demais. Star Wars nasceu em um caldeirão, ou bricolagem, de gêneros cinematográficos. Filme de piratas, capa e espada, samurai, de guerra, faroeste, de espionagem, etc. Tudo ali junto e misturado, mas a ficção científica era um dos ingredientes, não o principal.

Meu ponto é: Star Wars parece ter amadurecido aqui e ali e caminhado mais na direção da ficção científica, e Andor e Rogue One são os pontos ótimos nesse sentido. Tornou-se possível ter algo mais do que apenas Jedis e Siths. Star Wars não seria mais sobre heróis da força, e quem pode ou não pode manipulá-la. Tornou-se mais sobre a resistência ao Império. Mais e mais sobre “David contra Golias”, e sobre como pequenos grupos, e diferentes pessoas lutam juntas, fazendo os sacrifícios mais dramáticos, em prol de uma causa maior, não apenas para si ou por si, mas para um futuro livre da opressão de um Império tecnológico e tirânico, cruel e absolutamente perverso. Uma luta que é coletiva e construída desde o solo da revolta e da indignação contra o arbítrio. Que não pode ser outra, senão coletiva. Que não pode ser egoísta, sob a pena de tudo se perder.

O próprio George Lucas falou (em entrevista ao James Cameron) como a resistência dos vietnamitas foi uma das inspirações de sua saga original. Derrotaram o Império das armas tecnológicas com o que tinham, por vezes varas de bambu e ferramentas de camponeses. Com a coragem e a força e sacrificando tudo.

O nascimento da Aliança Rebelde, em Andor, conta essas histórias de como e porque eclodem rebeliões, surgem rebeldes, alianças e a resistência a opressão. O que leva as pessoas a deixarem suas vidas cotidianas e se revoltarem contra a violência totalitária e as mentiras de uma forma de tirania que se impõe a partir das entranhas do sistema republicano, no interior do Senado Galático, sendo coroada com um estrondoso aplauso. Ao se engajar numa luta encarniçada sem falsas promessas, mas apenas com a esperança que alimenta a chama da resistência e da vitória custe o que custar, Andor representa o melhor que o universo Star Wars pode criar como ficção científica, agora sim, como gênero principal.

Sem treinamentos mirabolantes, sem poderes metafísicos, sem mestres (ou magos tipo Merlin, com espadas mágicas), sem terem seus nomes conhecidos pelas monumentais façanhas dos líderes, dos poderosos, das celebridades… A resistência nasceu de pessoas comuns. Pessoas que sentem medo, sentem dor, frio, calor, que tem dúvidas, fraquezas, sangram, sentem orgulho e vergonha, sentimentos de dúvida, incerteza, hesitação. Não são “super”, por isso precisam uns dos outros. Precisam construir sua solidariedade e reinventar seus valores a partir da luta coletiva e comum, apesar das suas diferenças. Do contrário, tudo pode desabar para todos.

A série é muito feliz em apresentar o lado humano (e eminentemente político) da rebelião ao apresentar o quadro caótico de desorganização e disputas internas nas células das rebeliões contra o Império Galático. Enquanto este se encontra rigidamente concentrado em alinhar todas as suas ações ao eixo de uma ordem militarista, burocrática, hierárquica, disciplinar de controle. Como o funcionamento de uma máquina.

Apesar disto, Andor complexifica também as personagens humanas no interior da máquina totalitária. O que os mantém do lado do Império? O que buscam? Assim, tornam-se perceptíveis os traços da frustração, alienação, ressentimento e da impotência nessas personagens que procuram por sentido, senso de propósito e por realização pessoal (ambição). Essa humanização não as absolve dos seus atos, mas complexifica a trama, apostando em roteiros excelentes e performances de atores e atrizes brilhantes em suas atuações.

A segunda temporada de Andor é uma coisa quase inacreditável no interior da Disney. Pensemos nos temas mobilizados pela trama: perseguição aos “ilegais”; a mentira e a propaganda nas mídias compradas; a invasão de uma terra para extrair o valioso commodity que está “debaixo da terra” sob a premissa de levar proteção e ordem; as acusações de terrorismo como pretexto para um “genocídio contra inocentes” (ver o último discurso da Senadora Mon Mothma, que o imperio tentou a todo custo censurar); a indumentária de Kleya numa de suas últimas e mais dramáticas missões remete a vestimentas como “hijab”, “Dupatta” ou “tuding”; Luthen Rael era soldado do Império que entrou em crise ao dizimar populações e cometer genocídios em territóris sitiados, e que tudo abandonou para fugir da guerra e “adotar” a pequena sobrevivente Kleya Marki. Nem preciso dizer, mas já dizendo, que “Rael” soa muito semelhante ao nome de um certo Estado envolvido com o imperialismo e o genocídio. Nomes como Aldhani, enfim…

Por tudo isso, e mais um monte de coisas, Andor é quase inacreditável de ter sido realizado pela empresa bilionária estadunidense Disney. Andor é sobre pessoas organizadas numa frente de resistência contra o horror do Império genocida, tecnocrático, inescrupuloso e perverso.

Cassian Andor é uma destas pessoas, não a única. O protagonista da série surge como um marginal cínico, um cara que vivia de roubos, que desconfiava de tudo e todos, inclusive da resistência. A história caminha na direção de ele se tornar o mais engajado militante da resistência, um líder e um companheiro fiel que não deseja deixar ninguém para trás.

Se de propósito ou não, “andor” é o nome que se dá à estrutura de madeira na qual são dispostas figuras de santos e santas em procissões religiosas. Essas estruturas não são as estrelas das procissões, mas as guardiãs do símbolo da fé, carregadas sobre os ombros das demais pessoas que as levam e seguem juntas. Símbolo que orienta e canaliza as esperanças das pessoas. Andor é como o guardião do símbolo máximo da fé na resistência, e ele precisa das pessoas que o carreguem para que todos possam ver que o símbolo segue seu caminho, assim como elas.

Acho interessante notar também que os episódios tenham sido dirigidos por pessoas de diferentes grupos, etnias e cujos nomes trazem neles as marcas de não serem tão insiders ao establishment do entretenimento estadunidense.

Muitos devem estar pensando: “devagar com esse Andor, né, André? Você não está exagerando?”. Talvez. Mas eu sigo as palavras de Ursula K. Le Guin, que dizia:

 

“A ficção científica não prevê, descreve. (…) [Escritores de ficção científica] Tudo o que tentam fazer é dizer como eles são, como você é – o que está acontecendo -, como está o tempo agora, hoje, neste momento, a chuva, o sol, olhe! Abra os olhos; ouça, ouça. (…) Escritores de ficção, pelo menos em seus momentos mais corajosos, realmente desejam a verdade: conhecê-la, dizê-la, servi-la. Mas seguem um caminho tortuoso e peculiar, que consiste em inventar pessoas, lugares e eventos que nunca existiram ou existirão de verdade, contando essas histórias fictícias de forma extensa, detalhada e com boa dose de emoção; e então, quando terminam de escrever esse monte de mentiras, dizem: ‘aí está! Eis a verdade!” (LE GUIN, U. K. “introdução”. IN: ______. A mão esquerda da escuridão. São Paulo: Aleph, 2019. p.13).

 

Então, prefiro divagar com esse Andor. Não é perfeito, claro. Nunca será perfeito. Mas é uma aposta no sentido de colocar Star Wars como ficção científica, no melhor sentido, sem grandes poderes, apenas grandes ideais num dos momentos mais corajosos da saga Star Wars. O desfecho trágico dessa história nós conhecemos em Rogue One. Mas a série, concluída no seu 12⁰ episódio de sua segunda temporada, termina com uma imagem bela e simples. Uma mãe com seu bebê no colo, olhando pro horizonte. Enquanto houver vida, haverá esperança. Enquanto houver esperança, vale a pena lutar.

 

 

 


Créditos da imagem da capa: Divulgação.