Epidemia de Bondades AC/DC: Antes e o Depois do Coronavírus

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Introdução

 

Executivo brasileiro é tão bonzinho! Teria exclamado a personagem estadunidense interpretada pela atriz Kate Lyra, meio naive que não compreendia bem o português no programa humorístico “A Praça da Alegria” que foi ao ar na televisão brasileira nos anos 1970. Neste breve ensaio, despretensiosamente inter ou transdisciplinar, chamamos @ prezad@ leit@r a refletir sobre uma competição travada no topo da pirâmide brasileira entre empresários e executivos. Em vez de pilotarem algum bólido superveloz, eles competem home-office entre si, de algum resort, por exposição explícita nas mídias e nas redes sociais – o prêmio de “caras mais legais do Brasil” contra o bichinho invisível que está estragando nossas vidas. Ok, essa estória de “caras mais legais” cheira muito (mal) aos “caras mais espertos” da Enron, da Arthur Andersen, dos mercados financeiros e quetais que ficou conhecida como um dos mais deprimentes e tristes capítulo da história do capitalismo financeiro contemporâneo, que por sinal, começou mal este século XXI. Ao menos lá nos Estados Unidos, terra da Kate Lyra, como consolo, operações e empregos foram mantidos, o baque na economia foi rapidamente absorvido e ao menos parte dos responsáveis foram presos. Ao final, deixamos a reflexão para você prezad@ leit@r! Por isso apenas nos despedimos (ou voltamos?) debruados em preto, de luto, por aqueles que precocemente se foram…

 

Para Reflexão

Rios de tinta vêm fluindo sobre como será o mundo pós-coronavírus. Há previsões para todos os gostos ou interesses: fraterno, xenófobo, sustentável, igualitário, “vegano”, etc. Na mesma proporção, as dúvidas: a economia vai se recuperar? o governo vai cair? virá outra pandemia? é mais uma de Satanás? vingança da natureza? outra fake news?

Velhos fantasmas cada vez mais distantes na memória são resgatados. Crises, guerras, revoluções, acidente de Chernobyl, gripe espanhola… e por aí vai, até onde as ferramentas de busca alcançam.

Alguns preferem recorrer a livros, filmes de ficção e música heavy metal. Mais paralelos são traçados, porém a realidade parece teimar em ser mais dura.

Em meio a esta pluralidade de palpites, que não ousamos endossa-las como previsões, há uma certa convergência que o covid-19 levou o globo a mais uma crise, a “coronacrise” e que historiadores do futuro dividirão o mundo em AC/DC, antes e depois do coronavírus.

Enquanto quase todos têm suas rotinas reviradas, um seleto grupo ou clube alimenta um hábito renovado: a superexposição de empresas e seus gestores e a crescente necessidade da vida corporativa em tempos de redes sociais em exibir uma imagem positiva à opinião pública, com a vantagem adicional que no Brasil, a filantropia reduz o pagamento de tributos (CATTANI, 2013).

Somos “informados” que, tudo bem se há uma crise com pandemia, pois de outro lado, nossa elite corporativa não está insensível, pelo contrário e sabe-se lá como, subitamente, se transformou na turma mais legal do Brasil.

Num momento em que as vendas de quase todos os produtos e serviços descem a ladeira, marqueteiros e comunicadores seguem faturando. A onda agora é divulgar filantropia. Ser in é doar, solidarizar, afinal, diz um dos bordões mais repetidos “estamos todos no mesmo barco”. Uns no convés com botes e coletes salva-vidas e a maioria nos porões com água no pescoço, acrescentamos.

Há uma verdadeira competição para mostrar com alarde nas novas e velhas mídias quem é mais altruísta. Máscaras e álcool gel no topo da lista!

Temos a oligopolista operadora de celular que deixa seu cliente sem crédito usar gratuitamente o aplicativo para solicitar o coronavoucher do governo. A empresa de transporte por aplicativos que está dando oportunidades às centenas para não deixar pessoas passando fome e para isso cobra R$ 12 e repassa R$ 3. O fabricante que doou ovos de Páscoa encalhados de R$ 90 dias antes de expirar o prazo de validade. Sem falar no banco que destinou 2 semanas de seu lucro, isto é, R$ 1 bilhão.

Os meios de comunicação, além de selecionar, destacar e legitimar problemas ou riscos, atuam como importantes agentes na construção social da realidade. Quanto maior a ênfase e quanto mais contínua é essa abordagem, maior será a importância que o público tende a lhe atribuir em sua agenda (RODAS; DI GIULIO, 2017).

Em países com educação imperfeita como o Brasil[1], a apropriação pelo clube legal é facilitada vez que a mídia expande sua atuação e acaba também ocupando aquele espaço (BUENO, 2009).

Quando um veículo tradicional (ainda) formador de opinião, com audiência estimada na casa de dezenas de milhões de pessoas como Jornal Nacional da TV Globo[2] lidera uma campanha em horário nobre exaltando a bondade de empresários, executivos e “faria limers”, muitos dos quais anunciantes e patrocinadores de big brothers, lives e outros produtos beneficiados com o confinamento, a dramaticidade da situação socioambiental e até o papel dos profissionais que atuam no front são relativizados.

Para serem bem-sucedidos em seus interesses, este clube dos mais afortunados mobiliza considerável volume de recursos sociais num sentido amplo.

Compram celebridades das mais diversas estirpes, usam espaços, meios para melhorar suas reputações e, principalmente, fazer valer seus interesses, não importando se transparentes e altruístas ou ocultos e egoístas, tal qual descritos por Renn (1992) nas disputas das arenas sociais.

Tal comportamento caracterizado pelo cinismo e hipocrisia teria como o objetivo limpar a imagem de empresas predadoras, manipular a opinião pública e apresentar soluções cosméticas para seus modos insustentáveis (BUENO, 2009).

A desigualdade entre as partes interessadas se acentua. Conflitos de interesse justificados. O espaço para o diálogo aberto entre ciência, sistema político, mercado e sociedade civil sugerido pelo sociólogo alemão Ulrick Beck não se abre ou quando muito mantém-se confinado assim como nós (BOSCO; DI GIULIO, 2015).

Nesta tática, se valem de muitos dados e estatísticas supostamente acima de qualquer suspeita para fazer prevalecer uma perspectiva com­prometida com interesses econômico-financeiros em contraponto à posição de experts (BUENO, 2009).

A concentração de poder aumenta ao cooptarem narrativas com ares de autoridades supremas como as que gozam economistas e gente “de mercado”.

Pelo histórico capitalista, a tal transformação altruísta do clube legal poderá ser cosmética e efêmera, isto é, enquanto a vacina ou medicamento não sai. A ser vista com ceticismo, quando não, como uma oportunidade de ampliar ganhos[3] e elevar a concentração de renda (BELLUZZO, 2020; KRENAK, 2020; LEVY, 2020).

Quando esta realidade de terror e morte passar. E o dia seguinte, enfim, chegar, os sobreviventes poderão então olhar para trás e retornar. Dançar e cantar, como fez AC/DC. O outro AC/DC.

Back in black / I hit the sack / I’ve been too long I’m glad to be back / Yes, I’m let loose / From the noose / That’s kept me hanging about / I’ve been looking at the sky / ‘Cause it’s gettin’ me high / Forget the hearse ‘cause I never die…[4]

 

 

 


 REFERÊNCIAS

BELLUZZO, Luiz Gonzaga. Antes e Depois. Carta Capital, 15 abr.2020. ano XXV, n.1101, p.18-19.

BOSCO, Estevão; DI GIULIO, Gabriela Marques. Ulrich Beck: Considerations on his Contributions and Challenges to the Studies in Environment and Society. Ambiente e Sociedade, v.18, n.2, p.145-156, 2015. DOI: 10.1590/1809-4422ASOCEx09V1822015en.

BUENO, Wilson da Costa. O Jornalismo Ambiental Circula na Arena da Ciência e da Política. Anuário Unesco/Metodista de Comunicação Regional, v.13, n.13, p.113-126, 2009. DOI: 10.15603/2176-0934/aum.v13n13p113-126.

CATTANI, Antonio David. A Riqueza Desmistificada. Porto Alegre: Marca Visual, 2013.

KRENAK, Ailton. O Amanhã Não Está à Venda. São Paulo: Cia. Das Letras, 2020.

LEVY, Tatiana Salem. Que Sentido Terá a Arte Produzida Pouco Antes da Pandemia? Valor Econômico, 09 abr.2020. Eu&.

RENN, Ortwin. The Social Arena Concept of Risk Debates. In: KRIMSKY, Sheldon; GOLDING, Dominic. (orgs.). Social Theories of Risk. Westport: Praeger, p.179-196, 1992.

RODAS, Caroline de Araújo; DI GIULIO, Gabriela Marques. Mídia Brasileira e Mudanças Climáticas: uma análise sobre tendências da cobertura jornalística, abordagens e critérios de noticiabilidade. Desenvolvimento e Meio Ambiente, v.40, p.101-124, abr.2017. DOI: 10.5380/dma.v40i0.49002.

 

 

 


NOTAS

[1] Último lugar no ranking do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) 2019.

[2] Não se pode perder de vista que a mídia tradicional já vinha sofrendo com a concorrência dos novos meios de comunicação e entretenimento. O recém divulgado Resultado Operacional da Globo em 2019 seguiu o ano anterior de prejuízo na casa do meio bilhão de reais, somente revertido com a consolidação de outras empresas do conglomerado.

[3] Vem passando desapercebido, micro e pequenas empresas sendo sufocadas por grandes fornecedores, locadores rentistas e principalmente bancos, os quais, ao invés de se solidarizarem, tiram proveito. Por exemplo: https://jornalggn.com.br/noticia/informacoes-da-ponta-as-exigencias-do-itau-para-liberar-emprestimo-para-a-folha/. 27/04/2020.

[4] AC/DC “Back in Black”, Angus Young/Brian Johnson/Malcolm Young, 1980.

 

 

 


Créditos na imagem: Colagem da artista dadaísta Hannah Höch (1889-1978).

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Artur Franco Bueno

Professor. Mestre em Controladoria (FEA/USP). Doutorando em Sustentabilidade (EACH/USP).

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