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Trânsitos Cotidianos

Eu não tenho pistola!

Caracas, 10 de dezembro de 18: Ontem aconteceram as eleições dxs vereadorxs distritais. Apenas 27% dos eleitores participaram do processo. Mas a notícia mais relevante não foi, talvez, o nível de abstenção num processo eleitoral que geralmente tem pouca participação, mas o comunicado do Consejo de Caciques Generales del Pueblo Pemón [comunidade indígena do Sul da Venezuela] diante do ocorrido no final de semana no Parque Nacional Canaima, onde fica Salto Ángel – a maior cachoeira do mundo. Lá moram várias etnias indígenas, além de ser o local onde mineradoras protegidas pelo programa territorial governamental Arco Minero do Orinoco fazem explorações a céu aberto. No sábado passado, nessa mesma zona, um indígena foi assassinado e mais dois ficaram feridos após uma incursão secreta de funcionários da Direção de Contra Inteligência Militar. O Consejo de Caciques declarou luto por sete dias, a suspensão do processo eleitoral na região e a ocupação das estradas.

Hoje, por causa das eleições, não houve atividades escolares. Então aproveitamos para dormir mais um pouco e, depois de acordarmos, separar um tempinho para selecionar as roupas que ganhamos de uma amiga que está emigrando com a sua família e não pode levar todas as suas coisas. Além de algumas camisas e calças para o Ángel e para o Aquiles, Ángel pegou roupas para os seus companheiros e companheiras de trabalho e para xs filhxs delxs. Com certeza ficariam contentes porque teriam roupas “novas” no Natal.

As histórias de pessoas migrando do país são muito frequentes! Justo hoje, enquanto cozinhávamos o café de manhã e o almoço, Ángel me falava de um amigo próximo que vai embora em janeiro e que está muito constrangido porque não pode levar o pai doente que estava morando com ele. Aliás, a irmã mais nova do Ángel acabou de migrar para a Colômbia e o irmão caçula está desesperado para ir embora também. Eu já havia tentado falar para eles não irem embora sendo tão novos e tendo apenas o ensino médio, mas há pouco soubemos as razões do desespero do caçula.

Há três meses aproximadamente, ele e mais dois amigos foram presos por uns funcionários da Polícia Nacional Bolivariana enquanto estavam batendo papo na praça do condomínio em que moram. Os funcionários levaram os meninos para o calabouço da polícia e falaram para eles:

–Você, rapaz, tem uma pistola! – E botou a pistola nas mãos do irmão do Ángel.

Logo depois, o mesmo policial falou para os outros meninos:

–Você estava com droga! – E aí botou uma sacola de droga [nem sei qual] num dos rapazes. – Você roubou uns cabos de cobre! – E botou os cabos nas pernas do rapaz.

– Então, a questão é a seguinte – falou outro dos funcionários. – Se vocês não quiserem ser processados por estes crimes [que evidentemente eram falsos], vocês têm que nos dar alguma coisa. O que vocês têm para nos dar?

Os meninos estavam apavorados! Não tinham feito nada para serem presos! Não tinham dinheiro ou algo de valor para se salvarem da situação. Os policiais, então, perguntaram se nas casas das famílias dos garotos havia algo. Um deles ofereceu um televisor e o outro 5.000 BsS. No entanto, o irmão mais novo do Ángel só pensava nos sacrifícios da mãe para ter as poucas coisas que foi conquistando com o tempo e, por isso, negava oferecer qualquer coisa aos policiais ou dizer onde ficava a sua casa. Coitado! O pobre rapaz apanhou e, no momento em que os policiais estavam criando o falso processo, ele se lembrou da “canaimita”, o laptop que o governo dá para os estudantes de ensino fundamental e ensino médio… E pensava na sua casa, na sua mãe, nas poucas coisas que com certeza os funcionários roubariam se fossem para lá.

–Eu tenho um laptop. É a única coisa que eu posso oferecer para vocês.

– Tá bom, então a gente se encontra dentro de duas horas na sua casa, rapaz.

– Eu não vou levar vocês na minha casa. Eu vou buscar o laptop e logo depois a gente se encontra num ponto.

Agora eu compreendo muito bem o desespero do caçula para ir embora do país!

Bom… Saímos de casa aproximadamente às 9hs para irmos trabalhar. Cruzamos a avenida e, na esquina, diante das pessoas que passavam por ali para irem aos seus trabalhos, uns policiais uniformizados acompanhavam outros policiais vestidos de civis que estavam prendendo e batendo num homem. Apavorado, o homem só gritava:

–Me deixem, me deixem! Eu não sou bandido! Eu não tenho pistola, eu não tenho pistola!

 

 

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