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Trânsitos Cotidianos

Y que viva Changó!

Caracas, 04 de dezembro de 18: Eu estou com febre e com mal-estar corporal. São três dias sem fazer nada nem sair de casa! No entanto, anteontem tivemos muito trabalho para fazer em casa e eu não dei importância à gripe. Desde a minha chegada eu não tenho parado de limpar e arrumar as coisas aqui. Tem sido parte do meu processo de adaptação, que também inclui o reconhecimento sobre o que não posso arrumar. Há pouco descobrimos umas infiltrações no banheiro e na sala de estudo e algumas paredes ficaram para serem reparadas. Com parte da grana que eu ainda tinha, comprei uma lixa e duas barras de silicone. Por sorte, ainda temos um pouco da tinta que alguma vez comprei para pintar a casa e a passei nas paredes que tinham ficado ruins pela infiltração. Enquanto Ángel e o Aquiles arrumaram os cabos do roteador e a localização dele, eu pintei o que já estava lixado. À noite, após o trabalho, o meu corpo reagiu e a febre explodiu. Mas o meu filho, que é um anjo, preparou para mim um chá de gengibre com limão e mel e me trouxe um remédio.

Acabei de acicalar à Negra, nossa cachorra doidinha. Coitada dela! Está cheia de pulgas! No dia em que cheguei, essa foi uma das coisas que me gerou mais dor e raiva. Mas pouco a pouco fui compreendendo que nem é por falta de cuidado que ela está assim. Eu trouxe do Brasil alguns produtos antipulgas para a Negra, a gente botou nela e, no entanto, as pulgas não deixaram de se reproduzir. Acontece que nos cantinhos em que ela gosta de ficar têm pulgas e, ainda que a gente limpe, elas não desaparecem. Pensei em comprar alguma coisa para tirar as pulgas de casa e aí reparei que os preços são surreais e que, nas condições atuais, a gente não tem jeito de comprá-los. Alguém me sugeriu fazer a faxina da casa com creolina para espantar os bichos, mas também a creolina está muito cara. Eu só estou esperando a bolsa cair para comprar a ração da Negra, queijo, ovos, vegetais e frutas para a gente comer outra coisa nos almoços além de arroz ou macarrão com feijão preto.

Daqui a pouco vou sair com o meu filho para acompanhá-lo a colocar um piercing na parte da cima da orelha. O Aquiles tinha “poupado” o dinheiro da sua mesada para pagar o procedimento e, além disso, o Ángel deu para ele o seu primeiro piercing. Caso o dinheiro dele não seja suficiente, eu vou inteirar o valor. Aliás, vamos aproveitar a saída para comprar uma vela grande para a Santa Bárbara, o orisha Changó dos yorubas da Cuba, pois hoje se comemora o dia dela…

… Acabamos de voltar da loja dos piercing. Estranhamente o preço tinha-se mantido e aí utilizei o dinheiro que tinha para botar no nariz um piercing que eu tinha ganhado da minha cunhada e, aliás, comprar outro piercing para o Aquiles porque aquele dado pelo pai não era adequado para o lugar em que ele queria colocá-lo. Eu tive uma felicidade enorme! Poder acompanhar o meu filho para ele botar um piercing e eu também botar um junto com ele! O Aquiles foi foda! Nem queijou-se quando o rapaz botou a agulha na cartilagem da orelha! Então eu tive que respirar profundo para também não me queixar assim que o rapaz estivesse furando o meu nariz! O amigo do Aquiles, que foi conosco, nem conseguiu acompanhar o momento do furo porque ficou nervoso e virou o rosto. Risos!

Saímos do shopping com os nossos piercing e passamos pela loja de produtos dos santos e os espíritos para comprar a vela grande para a Santa Bárbara. Fiquei surpresa com os preços! Eu pensei que poderia comprar a vela grande, mas ela custava 1.300 BsS, ou seja, quase três vezes mais do que a furada do piercing! Então acabei comprando uma vela menor e um incenso de maçã, cravo e canela para não deixar de fazer a homenagem ao Changó.

Com o assunto dos piercing, do Changó e da preparação do almoço, eu esqueci por completo que para hoje eu havia combinado ir com o Carlos para a UCV[1]. Carlos é um grande amigo e colega, professor da pós de Estudos Literários da UCV, que após ter notícias da minha chegada, entrou em contado comigo. Contei para ele o que eu precisaa fazer na universidade. Então, através de uma mensagem de voz, falou para mim:

–O meu bem. Aqui todo está colapsado. O prédio da pós de Humanidades praticamente nem funciona, os serviços não tem horário nem cronograma fixo e o mesmo acontece com a universidade toda. Tanto pelos conflitos gremiais quanto pelo deterioramento da infraestrutura, são poucos os momentos em que a universidade está funcionando. Eu acho muito engraçado você me falando que precisa buscar uns documentos do mestrado na pós e visitar os arquivos da hemeroteca da universidade. Bom… Pouco a pouco você vai assimilar como é a dinâmica aqui, mas acredito que talvez você nem consiga o que está procurando. Vamos fazer uma coisa, amanhã vamos nos encontrar para irmos juntxs à universidade. Acho bom te acompanhar e assim aproveitamos para nos dar um abraço e atualizarmos com as notícias.

Fiquei muito triste com essa mensagem. Com qual universidade eu iria me encontrar? Da “Casa que vence las sombras” à “Casa de las sombras”? Infelizmente o Carlos e eu tivemos que desmarcar o nosso encontro por causa de uma consulta dele ao cardiologista.

Saí da casa para comprar uns vegetais com a grana que a minha cunhada mandou para mim e fiquei muito, muito feliz de me encontrar por acaso com a Lucia, a companheira do Sabino Romero, o cacique yukpa[2] que lutou pelo reconhecimento do território do seu povo e que por isso foi assassinado por sicários, dois dias antes da morte do Chávez. A Lucia perguntou para mim se eu tinha algumas roupas para doar para a comunidade dela… Então reparei que não precisava delas e as estou deixando aqui.

Liguei o aparelho de som, peguei o CD da Celina e Reutílio, botei a música e comecei dançar e cantar:
– “Que viva Changó, que viva Changó, que viva Changó, que viva Changó señores!”.

 


NOTAS

 

[1] Universidade Central da Venezuela

[2] Os yukpa são uma etnia indígena localizada na Serra de Perijá, no Ocidente da Venezuela. O território dessa Serra tem sido disputado pelas transnacionais do carvão e pelos criadores de gado, os quais têm deslocado os indígenas yukpa dos seus territórios. Como parte da sua política econômica, o governo venezuelano garante o direito de exploração das transnacionais.

 

 

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