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Trânsitos Cotidianos

Entre-linhas

Caracas, 30 de novembro de 18, 10h30min: Hoje o dia nasceu ensolarado, com essa luz tão linda e tão particular que nos adverte que o dezembro, o Natal e o Pacheco[1] chegaram à cidade. Eu tinha tantas saudades dessa luz e desse clima! Eles sempre me geram muita alegria… E eu estou precisando muito disso agora.

Hoje também a gente acordou com várias notícias, uma delas é que os trabalhadores detidos na terça passada pela “justiça” militar foram levados para El Dorado, um dos mais terríveis e isolados cárceres do país. Eles foram presos por terem participado de uma greve trabalhista na Ferrominera do Orinoco em rechaço à eliminação dos contratos coletivos e de seus benefícios, mas estão sendo acusados pelos crimes de traição à Pátria, danos à Nação, associação para delinquir e restrição da liberdade ao trabalho. A outra notícia é o anúncio das novas medidas econômicas por parte do Governo, apenas depois de três meses do decreto e implementação do Plano de Recuperação Econômica: aumento do “Petro” em 150% e o aumento do salário mínimo em 4.500 BsS, um bônus “natalino” de 2.000 BsS a ser entregue só com o cartão da Pátria, um bônus do Menino Jesus de 2.000 BsS e mais um mês de décimo terceiro.

Puxa! Eu me esqueci de comprar um quilo de café. Foi o pior erro! Ontem o preço estava em 1.500 BsS e o dinheiro que eu tinha conseguido para isso, hoje não é suficiente. Já era! Agora perdi e vou ter que comprar uma quantidade menor. Assim que eu terminar de escrever aqui, vou sair logo para comprar o café. Não faço ideia do preço que ele possa ter hoje, infelizmente ainda não tenho pegado o jeito para prever as porcentagens de aumento com a hiperinflação. Tem sido um pouco difícil e complicado me adaptar à dinâmica aqui.

Sobre minha chegada. Eu peguei o avião em Manaus com Avior, uma linha aérea venezuelana que, além da Copa, é a única na América que faz voos para a Venezuela. Havia poucos passageiros no avião que aterrissou em Caracas em 22 de novembro às 6hs35min. Como tinha ficado num dos primeiros assentos, consegui sair de primeirinha. Estava ansiosa e não sabia se era pela emoção de retornar ao meu país ou pelo medo do que encontraria.

Saí. Tudo estava deserto. Tudo estava só. As escadas rolantes não funcionavam e no corredor não havia pessoas além dos que estavam no voo de Avior. O aeroporto apresentava a sua solidão e o seu abandono com adornos de Natal e com som de gaitas (uma das nossas músicas de Natal). O panorama deixou-me muito constrangida e triste, mas a expectativa de me encontrar com o meu filho e os meus afetos geravam-me muita alegria.

Foram me buscar Aquiles (meu filho), Ángel (o pai do meu filho) e Valentina (minha prima). Na subida para Caracas nos atualizamos com as notícias até chegar a casa para deixar as malas e sair logo depois para levar o Aquiles ao colégio (35 minutos a pé caminhando rapidinho, lembrem). Embora eu estivesse muitas horas sem dormir, a ansiedade e as emoções me mantiveram muito enérgica. Enquanto caminhávamos para o colégio, o Aquiles ia me falando e orientando sobre o cotidiano na cidade. Eu estava muito feliz de ver o meu filho tão grande, tão lindo e tão desenvolvido!

Fiquei surpresa com a Caracas que me recebia. A cidade estava muito suja e cheia de lixo em cada esquina, muitas pessoas caminhando e poucos carros nas avenidas. Na volta do colégio, Ángel e eu passamos perto da Torre da Viasa, que abrigou a emblemática e já falida companhia aérea venezuelana­­­). Na torre, há muito tempo invadida e ocupada por famílias “sem teto”, tem se transformado em um centro de produção de “banana chip”. Em 12 de novembro no meio-dia, poucos dias antes da minha chegada, funcionários da Força de Ações Especiais (FAES), da Polícia Nacional Bolivariana, invadiram a torre e, percorrendo andar por andar e casa por casa, foram prendendo os homens que tinham antecedentes penais, os organizaram em uma fila e os levaram logo ao terraço. Lá, com o sangue frio e a certeza de terem total liberdade e impunidade, os polícias ajustiçaram os homens da fila…


NOTAS

[1] O Pacheco é um personagem caraquenho que simboliza a chegada do frio na cidade. Ele sempre chega em dezembro, no período das férias de Natal. “Llegó Pacheco!” é a expressão usada para advertir que o frio chegou.

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