Fanáticos

OZ, Amós. Mais de uma luz: fanatismo, fé e convivência no século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

Todos os tipos de fanáticos tendem a viver num mundo em preto e branco. Num faroeste simplista de mocinhos e bandidos. O fanático é na verdade um homem que só sabe contar até 1.

Vivemos sob o risco da escola sem humanismo, daí a urgência da discussão a respeito dos valores da liberdade, solidariedade e tolerância, promovendo respostas inteligentes e necessárias às eventuais políticas antidemocráticas.

Mas, no universo infinito de textos, qual escolher para alimentar debates em sala de aula? Qual texto trataria de forma acessível o tema do fanatismo? Esta resenha tem por objetivo apresentar uma sugestão, referente ao livro “Mais de uma luz”, de autoria de Amós Oz. Trata-se de um escritor mundialmente famoso, autor de romances de grande sucesso e de uma vasta obra ensaística, na qual aborda diversos temas, entre eles, o fenômeno do fanatismo.

Entre 2016 e 2017, foram traduzidos no Brasil dois livros desse autor: “Como curar um fanático” e “Mais de uma luz”. São livros recomendados. O segundo, porém, é mais adequado a um debate em sala de aula, pois o primeiro é centrado na discussão política a respeito de Israel e Palestina. Embora essa questão também apareça no “Mais de uma luz”, nele consta um capítulo – intitulado “Caro fanático” – abrangente em relação ao tema do fanatismo e recheado de sugestões de debates. Além disso, é um texto com pouco mais de trinta páginas, o que viabiliza sua exploração detalhada ao longo de uma aula.

“O fanático é na verdade um homem que só sabe contar até 1”, afirma Oz. Qual o significado dessa frase? Eis um desafio interessante a ser levantado em sala de aula. O sentido dessa afirmação pode ser melhor compreendido no contexto mais amplo da citação: “Todos os tipos de fanáticos tendem a viver num mundo em preto e branco. Num faroeste simplista de mocinhos e bandidos”.

Em outras palavras, o fanático sabe contar apenas até 1 por ser incapaz de conceber a legitimidade do ponto de vista alheio. É incapaz de respeitar a liberdade de opiniões conquistada pela democracia. É incapaz de sentir solidariedade frente ao sofrimento alheio. É incapaz de ser tolerante perante a diversidade de credos e comportamentos.

Se você não concorda com a opinião do fanático, será xingado ou amaldiçoado. Daí, inclusive, a multiplicação, nas redes sociais da Internet, de comentaristas que passam a maior parte do tempo insultando-se uns aos outros.

Outras passagens do livro, na fronteira entre a prosa e a poesia, estimulam novos debates: “O fanático é um ponto de exclamação ambulante”.  Uma vez mais, essa passagem é melhor compreendida em seu contexto original, em que é acompanhada pela seguinte observação: “É desejável que a luta contra o fanatismo não se expresse como outro ponto de exclamação a enfrentar o primeiro”. Em outras palavras: o antifanatismo não deve se transformar em fanatismo.

É preciso estar alerta para diferenciar as modalidades de fanatismos: “Defensores agressivos da qualidade ambiental, por exemplo, ou furiosos opositores da globalização, podem se revelar fanáticos violentos. Mas o mal que causam é infinitamente menor que aquele causado por um fanático que realiza um atentado contra uma multidão”. Há, portanto, diferentes tipos de fanatismos: “Quem não for capaz de, ou não quiser, escalonar o mal pode se tornar, com isso, um servidor do mal. Todo aquele que ‘enfia num único saco’ o apartheid, o colonialismo, o Estado Islâmico, o sionismo, a violação da ordem política, as câmaras de gás, o sexismo, a fortuna dos magnatas e a poluição do ar está servindo o mal no próprio ato de se recusar a fazer uma gradação”.

Compreender esse fenômeno não significa aceitá-lo acriticamente. Porém, sem essa compreensão não se chega à raiz do problema. Eis o que afirma Amós Oz: “Fanáticos religiosos e fanáticos ideológicos de todos os tipos cometem atos criminosos de terrível violência não só porque abominam os hereges, ou o Ocidente, ou os mulçumanos, ou os esquerdistas, ou os sionistas, ou os LGBTs. Eles são sanguinários sobretudo porque querem salvar o mundo imediatamente”. Essa é a dimensão trágica do fanatismo, que luta pelo que acredita ser a salvação da humanidade, mesmo quando a está destruindo: “Eles são sanguinários sobretudo porque querem salvar o mundo imediatamente. Salvar até os hereges. Tirá-los dos abismos de sua heresia. Levar todos nós para o caminho do bem. Afastar-nos de uma vez por todas, ainda que a sangue e fogo, de nossos valores apodrecidos”.

Há, ainda, passagens no livro em que se analisa a psicologia dos fanáticos. Eles podem ser caracterizados pela ausência de humor: “Eu nunca deparei com fanáticos que tivessem senso de humor”. Esse é outro tema interessante a ser discutido em sala de aula, que consiste em cogitar se o humor é uma forma de resistência política: “O humor traz consigo um viés que permite enxergar, ao menos por um instante, coisas já conhecidas sob uma luz totalmente nova”.

Em relação à psicologia dos fanáticos, há de ser ressaltar o “lado infantil” deles, sempre ávidos “Por se mesclar, por se arrastar de volta para algum útero morno … pertencer, amontoar-se numa imensa multidão sob as asas amplas do grande pai”. Segundo o autor, essa “infantilização crescente de multidões no mundo inteiro não é casual. Há quem esteja interessado nela e há quem se aproveite dela, seja em busca de poder, seja em busca de dinheiro”.

Embora o livro em questão seja de 2017 (sendo sua edição original de um ano antes), Amós, ao analisar o contexto político mundial, parece estar se referindo ao Brasil de 2018: “Nas eleições, círculos cada vez mais amplos votam em quem consegue emocioná-los ou diverti-los, em quem dá uma banana para as regras convencionais em jogo. Cada vez mais pessoas votam pelo ‘lance’, pelo ‘irado’, pelo ‘barato’, ou pelo ‘hilário’. A palavra ‘bizarro’ é hoje um elogio entusiástico, assim como ‘chocante’, ‘impactante’, ‘sinistro’, ‘de enlouquecer’, e até mesmo ‘de morrer’ ou ‘de matar’”.

Eis alguns alertas que também poderiam ser discutidos em sala de aula. Nos tempos atuais, esse livro é de leitura recomendada. Ele não apenas apresenta e discute uma tipologia de fanatismos, como também reconhece a presença cada vez mais intensa, em vários países, de fanáticos que se apresentam como figuras pitorescas. Esses criminosos disfarçados de políticos são uma das principais ameaças de nosso tempo.

 

SOBRE O AUTOR

Renato Venancio

Doutor de História, Pesquisador do CNPq 1D e Professor de Arquivologia, na Escola de Ciência da Informação - UFMG.

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