HH Magazine
Ensaios e opiniões

Fragmentos para o presente/Fragmentos para a professora Márcia D’Aléssio

Texto escrito por Bruno Correia, Carlos Malaguti,  Elson Mattos, Paula Franco,  Roger Camacho Barrero Junior e Talita N Sanchez.  Uma homenagem de ex alunas e alunos da Unifesp para a Profa. Dra. Marcia Mansor D’Aléssio.[1]

 

“É na convivência amorosa com seus alunos e na postura curiosa e aberta que assume e, ao mesmo tempo, provoca-os a se assumirem enquanto sujeitos sócio-histórico-culturais do ato de conhecer, é que ele pode falar do respeito à dignidade e autonomia do educando. […]”

Paulo FREIRE, Pedagogia da Autonomia, 1996, p. 11.

 

Fragmentos: a lápide que monumentaliza a passagem, o epitáfio que resume a vivência. A morte não deixa de ser mais um dos fragmentos que compõem o conjunto das experiências e histórias que cabem em uma vida, uma marca de ruptura do passado com o futuro. A morte fragmenta a perda. As memórias se dissipam. Para quem fica, a morte acaba se tornando uma oportunidade de refletir sobre a trajetória de quem não está mais, mas deixou memórias vivas em quem ficou. Como bem lembram Sabina Loriga (1998) e Benito Schmidt (2012), a vida não é uma linearidade, mas um conjunto  desorganizado de fatos, temporalidades e projetos (individuais e coletivos). Contudo, tem o potencial de gerar identidade e suscitar sentimentos, os quais interferem tanto na maneira como nos enxergamos quanto na reflexão sobre o nosso entorno. Quando evocamos a memória de alguém, não deixamos de construir a nós mesmos.

No dia de hoje, 14 de agosto de 2020, muitas gerações de ex estudantes de História que tiveram a oportunidade de aprender com a Professora Doutora Marcia Barbosa Mansor D’Aléssio dedicaram-se a rememorar fragmentos. Em tempos de impossibilidade de efetivar as despedidas rituais de forma presencial, recorremos aos grupos virtuais de conversas e às redes sociais para compartilhar como lembramos da Professora Marcia. Reunimos esses esforços de rememoração e, aqui, fomos além, empreendendo outros, como o de desfragmentar sua morte, e com alguns relatos, retraçar sua vida – numa evidente tentativa de desafiar a morte-perda, fazendo-a registro vivido e recordado.

Nessas trocas, descobrimos que a citação de Freire se adequa perfeitamente às lembranças sobre a Professora Marcia, uma grande historiadora, generosa professora e uma mulher comprometida com a democracia, atingida pela repressão da ditadura. Sabíamos muito sobre sua produção e contribuição para a Teoria da História, ela deixou grandes contribuições acadêmicas. Vivíamos intensamente sua devoção de ensinar de forma generosa, ela deixou fragmentos gravados nas memórias de um grande número de estudantes, como se verá adiante. Sabíamos pouco, entretanto, da juventude dela durante os anos 1960, apesar de os rumores sobre sua participação na resistência à ditadura serem constantes e recorrentes. Em entrevista à Comissão da Verdade Marcos Lindenberg, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) (2013), ela mesma admitiu que as experiências daquela época não foram relatadas a fundo. Márcia lecionava naquela instituição desde 2009 e suas palavras foram anexadas ao Relatório Final da Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, de São Paulo.

Na ocasião, a Professora Marcia falou sobre sua graduação na Pontifícia Universidade Católica (PUC) no fim dos 1960, de sua participação assídua nas manifestações e assembleias do movimento estudantil mesmo não sendo uma militante orgânica, de sua viuvez precoce e da vida na França enquanto cursava o doutorado e se reabilitava de seu luto. Mais uma vez com extrema generosidade, dividiu conosco suas impressões sobre os afetos, as dinâmicas culturais, políticas e sociais que marcaram aqueles tempos, que marcaram sua vida.  Acreditamos que nesse momento tão duro como é a partida de alguém querida, ritualizaremos de forma escrita reunindo nesse texto pequenos fragmentos de memórias de suas alunas e alunos – cujas trajetórias foram marcadas pela grandeza acadêmica e humana que a professora Márcia teve como um de seus traços.

Em seu relato sobre aqueles anos, a professora avalia que se vivia em um ambiente de “fascínio”, e que a expectativa de uma revolução era iminente. Talvez os sonhos tenham se dissipado um pouco, nos últimos tempos temos vivido o combate a indícios de golpe contra a democracia e a pontualidade desses ataques nos tira, por vezes, a habilidade de idealizar uma mudança estrutural a partir de críticas e análises conjunturais.

 

Márcia D’Aléssio: “Isso que eu acho, assim, importante, que para as minhas memórias é uma coisa muito marcante, esse fascínio, sabe? Tanto que eu tenho muita vontade de fazer um trabalho dentro desse tema, a utopia dos comunistas”.

 

Em todo o caso, sua presença no departamento de História da UNIFESP foi sempre permeada por esses “fascínios”, de nós estudantes.

 

 

Márcia D’Aléssio: “Então, o caráter da minha exposição vai ser uma coisa muito diferente daquela coisa toda chique de outro dia, que eu ouvi. Vai ser muito informal. (…) Porque fui criada, vamos dizer, intelectualmente ou culturalmente, se vocês quiserem, nesse ambiente, então, é uma Esquerda que a gente reconhece os pares hoje, e aqueles que não são mais pares”.

 

 

Márcia D’Aléssio: “Aí, ele [professor] dava Revolução Francesa, e pela maneira como ele dava Revolução Francesa, eu me apaixonei pela História. E a minha cabeça já foi ficando assim, a “gauche” vamos dizer assim.”

 

 

Márcia D’Aléssio: “Mas, que mais eu vou falar para vocês? Isso foi o que aconteceu e depois, bom, eu, como eu disse antes, não transformei isso num fato político, que eu poderia ter transformado, é que na época era tudo reprimido.”

 

 

Márcia D’Aléssio: “E aí a Anita também frequentava, então a gente ficou amiga, e como o Vilar era muito, assim, eu era uma aluna muito próxima do professor, do ponto de vista, enfim, como aluna mesmo, a Anita ficou muito…  Porque ele, o Vilar, era muito cortejado pelos marxistas. Inclusive, ela quis ser orientanda dele, mas ele já estava aposentado. Eu acho que eu fui uma das últimas orientandas dele. Aí ele me fez uns elogios e ela queria que eu fizesse a história do Partido Comunista. “Se você quiser fazer, se você escrever sobre o Partido Comunista”. Bom, depois não deu nada certo porque, até porque eu era tão, não aproveitava as oportunidades que me apareciam, era muito, assim, não pensava com cabeça de intelectual, vamos dizer. Eu fiz a minha pesquisa, tal, mas não levei adiante.”

 

 

Márcia D’Aléssio: “Quando eu levei o tiro, o movimento estudantil imediatamente ficou sabendo e soltaram uma nota com meu nome. A Irmã Leda, que era minha diretora, e eu era uma aluna muito próxima a ela, retirou essa nota para que eu não tivesse problema com a polícia… Mesmo assim não sei como a imprensa noticiou, mas sem me identificar, soltaram uma nota, a Irmã Leda conseguiu tirar e eu me livrei de ser presa, prestar depoimento, qualquer coisa do tipo”.

 

 

Aquilo que fica da nossa passagem pela História são alguns pequenos fragmentos nas memórias das pessoas com as quais nos relacionamos durante a vida. Fragmentos, de morte, (capazes de trazerem à vida, quando nas mãos de historiadoras/os) que devem ficar registrados, afinal, enquanto indivíduos, devemos questionar sobre nosso papel na ação histórica – como a professora ensinava em suas aulas.

 

Márcia D’Aléssio: “A minha história não tem nenhum valor, do ponto de vista da memória do tempo nem politicamente, mas o que eu acho que me levou a querer contar publicamente essa história, é o nível de repressão que fez uma garota de 21 anos, que não tinha nenhum comprometimento “institucional”, oficial, com coisa alguma, ter sido violentamente prejudicada, porque eu quase morri. (…) Então, a violência de um regime que faz isso com uma garota de 21 anos, que não tinha feito nada, só estava participando de discussões e de manifestações e que quase morre… (…) Então, é isso que eu queria passar, quer dizer, denunciar o nível de repressão de um Estado que fez isso com a juventude. Mais um caso que prova o que esse Estado fez com essa juventude. Acabou com a gente. E agora a gente vive… (…) A gente tinha muito medo, a gente vivia com muito medo. Então, fizeram isso com a gente, então isso tem que ficar…  (…)  Então, qualquer coisa que apareça tem que ficar registrado, porque foi cruel demais.”

 

Tentamos reunir, assim, alguns desses fragmentos de memória da professora Márcia nesse texto, que está longe de ter o brilhantismo de seu intelecto e também não dá conta de reunir todos os fragmentos que perpassam a memória dessa incrível mulher. Mas é um esforço de reunir uma série de fragmentos de pessoas que tiveram uma relação muito específica com a professora Márcia: fomos suas alunas e seus alunos. Entre tantos fragmentos de uma trajetória de vida de uma mulher que foi tanta coisa ao longo de sua história, preferimos reunir aqui nossas memórias em relação a ela por entender que um dos traços mais marcantes da professora Márcia foi sua atuação docente. Sua preparação, sua didática e sobretudo sua generosidade em compartilhar conhecimento é a história que queremos destacar desse emaranhado de memórias que temos dela. Um exemplo muito evidente daquilo que defende Paulo Freire. A professora Márcia nos afetou e é isso que iremos levar de sua trajetória nesse mundo.

À família, amigas e amigos, um forte abraço neste triste momento.

Das alunas e dos alunos da professora Márcia, que fazem questão de usar a palavra de ordem daquelas e daqueles que marcaram nosso mundo: a professora Márcia estará sempre PRESENTE!

 

 

 


REFERÊNCIAS

D’ALÉSSIO, Márcia Barbosa Mansor. Depoimento à Comissão da Verdade Marcos Lindenberg. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo em de 05 de Dezembro de 2013.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

HISTORIADORAS E HISTORIADORES MATRICULADOS NO PPGH DA UNIFESP. O medo do Estadão: a disputa pela história e pela memória em mais um golpe contra a democracia. Carta Maior, 23 de junho de 2016 (Política). Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/O-medo-do-Estadao/4/36328. Acessado em agosto de 2020.

LORIGA, Sabina. A Biografia como problema. In: REVEL, Jacques. Jogos de Escalas: A Experiência da Microanálise. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998.

SÃO PAULO (Estado) Comissão Estadual da Verdade de São Paulo Rubens Paiva. Relatório – Tomo III – Audiências Públicas da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo – Unifesp – SP. São Paulo: ALESP, 2013.

SCHMIDT, Benito Bisso. História e Biografia. In: CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo. Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.

 

 

 


NOTAS

[1] Essa é apenas uma tentativa de reunir algumas memórias e palavras em homenagem à professora Marcia D’Aléssio. Pelas redes sociais nos deparamos a cada dia com um relato emocionante de suas alunas e alunos. Esperamos que todas aquelas pessoas que se dispuseram a rememorar as vivências com a professora Márcia possam se sentir acolhidas e representadas por esse pequeno conjunto de fragmentos entre a vasta constelação de memórias de estudantes que encontramos cotidianamente. Que sua presença se prolongue por esses atos.

 

 

 


Créditos na imagem: Angelus Novus, Paul Klee. 192o.

 

 

 

[vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”SOBRE OS AUTORES” color=”juicy_pink”][vc_column_text][authorbox authorid = “186”][/authorbox]

[authorbox authorid = “187”][/authorbox]

[authorbox authorid = “185”][/authorbox]

[authorbox authorid = “184”][/authorbox]

[authorbox authorid = “189”][/authorbox]

[authorbox authorid = “188”][/authorbox]

Related posts

Quantos combinados para tecer mundos?

Coletivo Negro Braima Mané
5 anos ago

A polêmica Schwarcz: entre repercussões negativas e o equívoco sobre o ficcional

Warley Alves Gomes
4 anos ago

O vosso reino: uma leitura do Brasil contemporâneo

Douglas de Freitas Pereira
5 anos ago
Sair da versão mobile